Guiné. A Guerra Colonial morou ao lado

Mala de viagem (78). Um retrato muito pessoal da Guiné.
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A República da Guiné é também chamada Guiné-Conacri para se diferenciar da vizinha Guiné-Bissau. Quando se tornou independente em 1956, a antiga colónia francesa tornou-se num dos Estados comunistas em África. Apesar da pobreza, da corrupção e das tensões étnicas, a Guiné-Conacri foi poupada à guerra, mas assistiu bem de perto ao combate dos vizinhos. Na capital, situa-se o famoso Mercado Medina, um dos maiores da África Ocidental. Ali há de tudo: uma grande variedade de frutas e legumes, utensílios domésticos, tecidos tingidos de índigo e até revistas femininas desbotadas. Numa das lojas de papéis antigos, encontrei uns que documentam o conflito entre as forças portuguesas e o Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), na vizinha Guiné Portuguesa, mas que, em novembro de 1970, saltou a fronteira com a Guiné-Conacri. Esses papéis não estavam para venda. O comerciante guardara-os religiosamente, depois de alguém os ter vendido a seu pai, há largos anos. Agora estavam numa pasta, conjuntamente com outros antigos manuscritos. O simpático comerciante contou-me que, ainda há poucos anos, velhos clientes, entretanto já falecidos e da idade do pai, vinham ali lembrar os seis navios portugueses que viram chegar, com um grupo de mais de três centenas de soldados portugueses e guineenses dissidentes. "Eles desembarcaram perto daqui. A cidade foi atacada, com natural espanto da população local", disse. A operação ficou conhecida como "Mar Verde". Porém, antes de se retirar, o grupo revoltoso libertou 26 prisioneiros de guerra portugueses mantidos pelo PAIGC, não conseguindo, no entanto, atentar contra o diretório. Antes da operação, Spínola descobrira um movimento de dissidentes guineanos dispostos a derrubar Sékou Touré, que ajudava o PAIGC, pelo que pretendeu, secretamente, ajudar a instalar, em Conacri, um regime mais moderado e favorável às intenções portuguesas. Porém, o grupo teve algumas vicissitudes naquele dia em Conacri, como, por exemplo, por se enganarem na casa onde pensavam estar Sékou Touré, sendo a residência do arcebispo, e nunca encontrarem Amílcar Cabral, que não estava na capital guineense. Consta que o processo "Mar Verde" desapareceu. Talvez aqueles poucos documentos dactilografados e manuscritos, que eu vi numa das lojas do Mercado Medina, sejam uma pequena parte. Na época, o PAIGC já tinha realizado muitos ataques a quartéis e acampamentos do Exército Português e efetivamente controlado 2/3 da Guiné Portuguesa. Portugal iniciara uma nova campanha contra os guerrilheiros, com a chegada do novo governador da colónia, António de Spínola, que iniciou a construção maciça de escolas, hospitais, novas unidades habitacionais, melhoria das telecomunicações e um sistema de estradas. A intenção era ganhar o favor público dos guineenses. O mandato de Spínola, como governador, marcou uma viragem na guerra. Portugal começou a ganhar batalhas e conseguiu promover a referida invasão em Conacri; aliás, o PAIGC terá sido fundado ali, em 1962, segundo um historiador guineense de Bissau, Mário Sissoko. Consta que Amílcar Cabral acordou com Sékou Touré a unificação dos dois territórios guineenses numa só Guiné, mas a ideia não foi longe, porque Cabral proporia, depois, a unidade da Guiné e de Cabo Verde. Sékou Touré entendeu isso como uma traição e assim se iniciou uma desconfiança entre os dois. Conacri é, hoje, bem diferente do que era há 50 anos. Agora alberga 1/4 da população do país. A cidade tem um Palácio do Povo que fica contíguo ao Monumento do 22 de Novembro de 1970. Precisamente, este monumento celebra a derrota dos portugueses e ostenta a seguinte legenda: "Monumento de 22 de Novembro de 1970. A Revolução é Imperativa! O imperialismo encontra o seu túmulo na Guiné!"

Jorge Mangorrinha, professor universitário e pós-doutorado em turismo, faz um ensaio de memória através de fragmentos de viagem realizadas por ar, mar e terra e por olhares, leituras e conversas, entre o sonho que se fez realidade e a realidade que se fez sonho. Viagens fascinantes que são descritas pelo único português que até à data colocou em palavras imaginativas o que sente por todos os países do mundo. Uma série para ler aqui, na edição digital do DN.

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