Festival Guimarães Jazz.Concertos: Trio de Geri Allen; Orquestra de Jazz de Bruxelas com Dave Liebman; Liberation Music Orchestra de Charlie Haden.Local: Centro Cultural Vila Flor .Datas: 16 a 18 de Novembro .Se fosse necessário partilhar as peculiaridades da criação do jazz com quem supostamente nunca tivesse fruído ao vivo esta música, assistir ao concerto realizado dia 16, no Centro Cultural Vila Flor, por Geri Allen (piano), John Hebert (contra- -baixo) e Eric McPherson (bateria), teria sido uma ocasião altamente pedagógica. .Organizada à última hora para substituir a lamentada ausência (por motivo de doença) do quarteto de Andrew Hill, a actuação dos três já referidos músicos - em relação aos quais não há referência segura de que sequer tenham tocado juntos anteriormente - tornou-se exemplar na forma como gradualmente procuraram um entendimento mínimo que depois se foi ampliando em largos momentos de interacção musical. .O apalpar de terreno, primeiro, a troca de olhares e assentimentos, depois, e a progressiva insinuação de desafios transformados num exercício de criatividade colectiva, acabaram por caracterizar um concerto excelente que se foi construindo perante os nossos olhos, para tal contribuindo o modo exuberante e quase orquestral segundo o qual Geri entende o piano, o apoio económico mas eficaz de Hebert e as luminosas desmultiplicações rítmicas de Mc- Pherson..A confirmar o brilho crescente das grandes formações europeias, a Orquestra de Jazz de Bruxelas veio igualmente reforçar, este ano, a tendência do Guimarães Jazz para nos apresentar excelentes big bands. Mesmo atacando um repertório que se sente já rodado na companhia do seu convidado de honra - o histórico e brilhante saxofonista, compositor e pedagogo norte-americano Dave Liebman - a orquestra revelou-se uma digna herdeira da real tradição e cultura jazzística de uma das mais ricas e produtivas cenas do jazz europeu..Pese embora a excessiva utilização, por Liebman, do sax-soprano em detrimento do tenor (no qual é também mestre), o repertório revelou-se mesmo assim diversificado e em muitos casos complexo e exigente em termos de composição e orquestração. E o maior elogio que se pode fazer à orquestra - para além dos reflexos de visível satisfação em Dave Liebman por tão estimulante companhia - foi a capacidade de tocar praticamente sem direcção (já que Frank Vaganee, seu director musical, estava demasiado ocupado nas suas funções de instrumentista) e de não poupar os seus próprios solistas à sombra de um tão especial convidado. Entre estes, para além do próprio Vaganee no sax-alto, estiveram em plano de destaque o trompetista Gino Lattuca, dois saxofonistas-tenores cujo nome não retive e a pianista Nathalie Loriers..Se a sistemática coesão instrumental da big band de Bruxelas foi uma característica essencial da sua actuação, já a natural "imperfeição" dessa entusiasmante trupe de músicos que sempre foi, nas suas variadas constituições, a Liberation Music Orchestra de Charlie Haden esteve em perfeita sintonia com as contradições e ressonâncias populares, solenes e eruditas do tipo de repertório apresentado no concerto de encerramento do festival..Tendo por base o seu recente álbum Not In Our Name - lema da campanha de protesto (com amplas repercussões mundiais) a propósito da intervenção militar no Iraque - Charlie Haden e seus companheiros debruçaram-se desta vez sobre um fascinante e variado repertório muito ligado ao melhor que da sua música, cultura, história, sonhos e anseios a América nos legou. Assim, e ao contrário de outros opus discográficos anteriores mais dirigidos à solidariedade internacionalista contra todos os atropelos à Liberdade, passaram pelo palco conhecidas canções, obras instrumentais, hinos, "blues" e espirituais negros, numa impressionante e amarga reflexão crítica e autocrítica - expressa, mesmo, em termos de transfiguração e subversão de carácter puramente musical - sobre a quotidiana perversão desses símbolos e desses ideais..This is not America, Amazing Grace, Going Home, America The Beautiful ou Adagio (Samuel Barber) - associados, já extra-programa e num outro quadro solidário e comunicacional, à reverência e referência sempre emocionantes de Grândola e We Shall Overcome - foram momentos altos de um concerto memorável que, para além da presença tutelar de Charlie Haden e Carla Bley e de alguma da nata do actual jazz norte-americano, ainda teve rasgos solísticos que, neste preciso contexto, seria injusto individualizar face ao colectivo instrumental.