Guilherme Valente, mentiras e esoterismo

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Há qualquer coisa de espantoso no texto que Guilherme Valente (GV) escreveu, no DN de 19 de Agosto, como resposta à afirmação que fiz em entrevista de que não editaria José Rodrigues dos Santos (JRS). É ele não entender que, ao recusar-se a debater o essencial recorrendo a insinuações, jactância, mentiras e refutação do espírito crítico, compõe um devastador auto-retrato.

Na última Feira do Livro de Lisboa, quando me dirigi aos pavilhões da Gradiva para adquirir A Era do Deslumbramento, de R. Holmes, deparei com a esmagadora presença das 23 obras de JRS, que absorvia a atenção dos leitores.

Daí ter dito que a Gradiva, enquanto editora de divulgação científica, estava a ficar submersa por um autor de "best-sellers de muito duvidosa qualidade".

Em vez de discutir a substância desta crítica, GV respondeu com a arrogância intelectualmente vazia que é a sua marca de água.

Começa pela afirmação de que eu estaria a "condicionar o gosto e a inteligência dos leitores", numa tentativa intolerável que recorda tempos e "déspotas sinistros".

Desde quando não publicar JRS é um acto de censura? Não tem ele uma legião de editores interessados? O próprio GV nunca recusou um original? Não há autores que não publicaria? É evidente que é um crime grave não querer publicar JRS. Mas não haverá um certo exagero em evocar Torquemada e Hitler só por causa disso?

Confundir crítica com censura é uma confissão de indigência intelectual. O espírito crítico é uma premissa da actividade científica e um legado essencial da cultura europeia.

Há muitos leitores para a ficção de mero entretenimento, alguns deles frequentando, é claro, também a boa literatura. E assim como a boa literatura não salva o mundo também não será a má a perdê-lo. Mas a Relógio D"Água (RA) segue outro caminho, excluindo do seu catálogo a paraliteratura, no que é acompanhada por um número considerável de editoras portuguesas (Quetzal, D. Quixote, Assírio & Alvim, Tinta-da-China, Cotovia, Antígona e outras).

Mas passemos às mentiras factuais de GV.

Uma das mais descaradas é que lhe teria dito que a "Gradiva é o meu modelo de editora". Não o diria mesmo quando a Gradiva era a Gradiva e para o perceber basta comparar os respectivos catálogos.

Uma segunda afirmação inteiramente falsa é a de que a RA "terá sido desde sempre uma editora frágil", pelo que GV lhe oferece a solidariedade que estiver ao seu alcance "na situação grave em que aparenta estar". É uma frase hipócrita. Mas percebe-se que para alguém como GV o editor que não faz concessões merecia pelo menos estar falido. Há 34 anos que a RA apresenta resultados positivos, tendo crescido entre oito e dez por cento mesmo no período de crise posterior a 2007. Desde 2014 tem o estatuto de PME Líder, que certifica a solidez económica da empresa e assegura o acesso quase ilimitado a crédito a baixo juro, precisamente porque não precisa dele. Pode pois GV despreocupar-se com a RA nas suas navegações pelo Mar do Norte.

Não reparando que cai em contradição, GV fala depois dos roubos de autores que a RA teria cometido em relação a Agustina e mesmo "num caso à Gradiva". São conhecidas as condições em que Agustina se viu forçada a deixar a Guimarães. No que diz respeito à Gradiva, trata-se da edição recente pela RA do ensaio A Ideia de Europa, de G. Steiner, que a Gradiva publicara em 2005, com prefácio de Durão Barroso, então presidente da Comissão Europeia. Para a RA, que iniciou a divulgação de Steiner em Portugal na década de 90, tratou-se de uma operação de resgate. Que sintonia pode existir entre a Europa da finança de Barroso e a dos cafés e literatura de Steiner? A Ideia de Europa pode agora ser lida sem esse incómodo lastro de subserviência ao poder.

GV considera também que a RA nunca revelou um autor de mérito. Respondo-lhe apenas que, tendo em conta os seus gostos literários, ficaria preocupado se ele pensasse o contrário.

A cada editor a sua coerência

Mas vamos ao essencial.

Em vez de defender o seu principal autor, GV esquiva-se, remetendo "para outra oportunidade escrever" sobre JRS, "um autor apreciado em todo o mundo, por um larguíssimo espectro de leitores".

Ora não haveria melhor ocasião do que esta para o fazer, e apesar disso GV refugia-se no inconsistente argumento do número de leitores...

O problema que se coloca à Gradiva, com o peso esmagador que JRS tem no seu catálogo e vendas, não está apenas em se tratar de um autor de ficção de entretenimento que procura apresentar-se como literatura. Afinal, quase todos os países têm o seu Dan Brown. O problema maior é que os enredos pseudocientíficos de JRS colidem com a imagem que a Gradiva construiu como editora de ciência.

Na obra de JRS abundam as intrigas esotéricas, como as que referi na entrevista, a título de exemplo, A Fórmula de Deus, O Codex 632 e A Mão do Diabo.

No primeiro, o protagonista Tomás Noronha transporta-nos para a prova científica da existência de Deus, a partir de uma fórmula de Einstein. Em A Mão do Diabo, o intrépido Tomás Noronha tem de decifrar um criptograma enigmático e localizar um DVD com o mais perigoso segredo do mundo. Em O Codex 632, o nosso Tomás Noronha, professor de História em Lisboa e perito em criptoanálise, decifra documentos que mostram que Cristóvão Colombo era português. (Também neste caso o autor procurou o mínimo de verosimilhança com o desenvolto recurso a controversos documentos históricos.)

Já agora, e apesar da acobardada defesa que GV faz do autor de Fúria Divina, gostaria de lhe fazer uma sugestão: a de pedir a JRS que faça o seu Tomás Noronha encontrar mais um manuscrito perdido. Desta vez ficaríamos a saber que afinal Dante foi um português nascido nos arredores de Tomar em 1275, raptado para Florença por um tal Alighieri. Nem seria difícil. Basta que Noronha se encoste a uma parede do Convento de Cristo, accionando uma mola oculta, que faria girar uma porta manuelina, revelando uma câmara onde sobre uma mesa jaz um manuscrito entregue à poeira dos séculos...

Camões ficaria menos só e a Pátria orgulhosa agradeceria.

Aqui chegados, a alternativa é clara. Ou GV é uma variante de Dr. Jekyll e Mr. Hyde, que de dia lê com convicção Dawkins, Feynman e Sagan e à noite se deleita com esoterias várias ou... GV nem sequer é um leitor incondicional de JRS, mas perante as receitas que este lhe assegura não hesitou em comprometer o seu catálogo de ciência, o que não se compreende, dada a situação equilibrada que a Gradiva sempre pareceu ter.

Há ainda algumas questões secundárias.

É falso eu ter admitido ser um escritor falhado, tendo apenas dito que desisti de publicar ficção, o que é bem diferente. O primeiro romance que escrevi foi saudado pela crítica do Expresso como o nascimento de um romancista e recebeu, tal como o segundo, críticas favoráveis. Os ensaios que publiquei foram bem acolhidos e estão esgotados. O que disse na entrevista é que sempre gostei de escrever mas que dediquei alguns dos anos mais criativos da minha vida à luta contra a ditadura e a partir de 1975 fui jornalista e depois editor, actividades que me pareceram incompatíveis com o trabalho obsessivo de um bom escritor.

Há finalmente a acusação de ter recusado um original de Gonçalo M. Tavares. Como disse na entrevista, tratou-se de Água, Cão, Cavalo, Cabeça, ainda hoje a obra de GMT que menos aprecio (mas recuperámos o tempo perdido, publicando oito dos seus livros).

Como disse ao DN, já cometi muitos erros como editor, mas nenhum contra o catálogo da RA.

Nota final: à medida que escrevi este texto, fui tendo a desagradável sensação de que não pode ser esclarecedora a discussão com alguém em tão avançado estado de megalomania como GV. Por isso não voltarei a responder-lhe, confiando na inteligência dos leitores.

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

Editor da Relógio D"Água

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