Guilherme d"Oliveira Martins: "A Cultura é o espaço que favorece a paz e o desenvolvimento"
É um livro de não-ficção, mas tão cheio de personagens como um romance de Tolstoi. Com o atrativo suplementar de que, neste caso, todas elas existem, ou existiram, e produziram obra de relevo e significado para as nossas próprias vidas. E para as dos que se seguirão. Falamos de A Cultura Como Enigma (edição Gradiva), de Guilherme d"Oliveira Martins, por onde, entre outros, passam Edgar Morin, Pedro Tamen, António Alçada Batista, Isabel da Nóbrega, José Ruy, Corsino Fortes, António Osório, mas também o senhor Manassés, barbeiro de Campo de Ourique, que, num dia distante, quando o bairro oitocentista ainda cheirava a novo, cortou o cabelo e fez a barba a Fernando Pessoa.
Esta multiplicidade de vozes é, como nos explica o próprio autor, uma condição natural da Cultura: "Por enigma da Cultura entenda-se essa capacidade que a leitura (mas também a Música ou as outras Artes) nos proporciona de nos relacionarmos com pessoas de várias épocas. Umberto Eco dizia que quem não lê se relaciona apenas com os seus contemporâneos, mas quem lê vive 6000 anos, porque interpela e é interpelado por pessoas de várias gerações, épocas e geografias."
Neste livro, o atual administrador-executivo da Gulbenkian, reúne um conjunto de crónicas publicadas aqui no DN e no Jornal de Letras, entre 2019 e 2023, agora organizadas não de forma cronológica, mas temática. Em comum sempre a mesma preocupação: o papel atribuído à Cultura na nossa vida em sociedade.
Esta reflexão em torno das questões culturais nasce de uma vida política e pública em que estas, de uma forma ou de outra, sempre estiveram presentes. Recorde-se que, entre outros cargos, Guilherme d"Oliveira Martins foi secretário de Estado da Administração Educativa (de 1995 a 1999), ministro da Educação (1999-2000), ministro da Presidência (2000 a 2002) e das Finanças, presidente do Tribunal de Contas (entre 2005 e 2015).
Paralelamente, foi assumindo funções diretamente relacionadas com a Cultura como representante da Assembleia da República Portuguesa na Convenção para o Futuro da Europa, secretário-geral da Comissão Portuguesa da Fundação Europeia da Cultura, presidente da Sedes, vice-presidente da Comissão Nacional da Unesco (1988-1994) e presidente do Centro Nacional de Cultura entre 2002 e 2016.
Da sua bibliografia constam obras como Oliveira Martins, uma Biografia (sobre o historiador seu antepassado, contemporâneo de Eça de Queiroz); Escola de Cidadãos; O Enigma Europeu; Educação ou Barbárie; Ministério das Finanças - Subsídios para a sua História no Bicentenário da Secretaria de Estado dos Negócios da Fazenda; Portugal - Instituições e Factos; Audácia de País Moderno; Portugal - Identidade e Diferença; Património, Herança e Memória ou Na Senda de Fernão Mendes.
No seu caso, no entanto, admite que o fascínio pelos livros é muito anterior à vida política, tendo surgido ainda na infância, na biblioteca do avô, sobre a qual escreve neste novo livro: "As minhas primeiras recordações da biblioteca fantástica do meu avô têm a ver com as enciclopédias e os dicionários. Foi por aí que comecei, na tentativa, sei hoje que vã, de procurar as saídas dos labirintos. E lembro-me bem dos sábados, passados até que a luz se desvanecesse, a correr de Herodes para Pilatos nas várias entradas do velho Dicionário de Portugal." De tal modo esse gosto tomou raízes que Oliveira Martins abre este mesmo livro a escrever: "Não concebo a hospitalidade de uma casa sem a omnipresença dos livros. E não há prazer maior do que ir à estante e folhear um livro, que já não recordamos, do qual temos uma lembrança vaga ou que julgamos ter bem presente."
É, por isso, que, ao longo das páginas, vai muito naturalmente evocando figuras como o livreiro Luís Alves Dias, fundador da livraria Ler de Campo de Ourique (ainda hoje existente), ou a escritora, jornalista e grande divulgadora cultural, Isabel da Nóbrega, hoje um pouco esquecida. De forma injusta, como sublinha. "Isabel da Nóbrega era uma leitora exemplar. E a sua escrita demonstra esse cuidado em ligar o imprevisto da vida e o rigor das palavras." Ou Eduardo Lourenço a visitá-lo no seu próprio gabinete na Gulbenkian, vindo da sala vizinha: "Ele tinha um prazer especial em usufruir de um livro alheio, que lhe parecia sempre mais apetecível e reluzente do que o seu próprio. Folheava o livro, lia uma passagem e descobria sempre uma novidade, um inesperado motivo de interesse, que começava a comentar."
Engana-se, no entanto, quem pense que A Cultura Como Enigma é um livro de memória e evocação de antigas afinidades eletivas. Por aqui, passam também questões relacionadas com políticas culturais, como o próprio conceito de património e seu cuidado. "Estive há poucos dias em Santiago de Compostela, num congresso sobre Património Cultural, e uma das questões ali levantadas tem a ver com a própria definição de património", diz-nos.
Isto porque, ao contrário do que talvez tenha acontecido durante muito tempo, a atual perceção deste tema tem mais em conta o seu dinamismo do que a sua suposta imobilidade. "O conceito do que é ou não património cultural é cada vez mais amplo e tem em conta novas realidades como a paisagem, a nossa própria relação com ela, mas também a do património digital, com o qual ainda não sabemos lidar. Na verdade, hoje é mais difícil ler uma disquete que usámos há 20 ou 30 anos do que uma Bíblia de Gutenberg ou um documento medieval guardado na Torre do Tombo. Na verdade, temos de estar conscientes de que o património não é uma questão do passado, mas uma construção do presente."
Como antigo ministro da Educação, Guilherme d"Oliveira Martins não perde de vista, uma vez mais, as questões relacionadas com as políticas de língua e, uma vez mais, o seu dinamismo: "Temos de estar muito conscientes de que o Português é hoje falado por 250 milhões de pessoas, podendo chegar no final do século aos 400 milhões de falantes. Ao todo, as línguas ibéricas (português e castelhano) serão faladas por 1000 milhões de pessoas. Isto é um valor inestimável."
Mas para o bom uso do idioma importa estar muito atento à qualidade do seu ensino, área que o autor, como vimos, conhece bem: "Devemos ser exigentes com a Educação. Não podemos estar satisfeitos com o que conseguimos nos últimos anos: Ter 12 anos de escolaridade obrigatória é ótimo mas precisamos de cuidar da qualidade das aprendizagens." O que defende? Mais avaliação. "Não tanto dos alunos, mas do sistema, das escolas e dos professores. Resultados bons a nível internacional, como os dos estudos PISA, são incentivos importantes, mas não podemos dar-nos por satisfeitos. Jacques Delors dizia que era indispensável aprender a lidar com os outros. E hoje as sociedades têm cada vez mais medo dos outros, daí a crispação que estamos a viver um pouco por todo o mundo."
Numa época de escassa ponderação, que papel pode, então, desempenhar a Cultura? Para o autor, pode ser o papel da mediação, se tivermos a determinação e o método de cuidar dela como de um jardim precioso: "Com a pandemia, fomos privados de viver uns com os outros em situações completamente dramáticas. Mas a Ciência conseguiu que encontrássemos uma resposta positiva a um problema tão avassalador como inesperado e isso demonstra o poder do estudo, da investigação, da criatividade porque, ao contrário do que talvez se julgue muitas vezes, o trabalho do investigador não é muito diferente do desenvolvido pelo artista."
Guilherme d"Oliveira Martins encara, pois, a Cultura como o "espaço" que favorece a "partilha de responsabilidades, a paz e o desenvolvimento". Também na vida política, onde, diz, se nota a tentação de "encontrar soluções fáceis e receitas instantâneas, que empobrecem o debate de ideias." E acrescenta: "Antes de mais, precisamos de tempo e de regulação. As decisões precipitadas não resultam. Dormir sobre os assuntos é importante."
Neste contexto, espera que as comemorações do cinquentenário do 25 de Abril, mais do que uma celebração do passado, alertem os cidadãos para o facto da "democracia portuguesa ser uma planta muito frágil que precisa de ser cuidada. Conhecemos a História de Portugal anterior a esse momento decisivo da nossa vida coletiva. Era uma História de isolamento e atraso de que levámos muito tempo a recuperar." E evoca o exemplo de moderação de Ernesto Melo Antunes, seu amigo pessoal, militar de Abril, que considera "um exemplo de ponderação decisivo para um bom exemplo numa época que, como a nossa, se caracterizou por posições extremadas."
Do enigma que é a Cultura segundo Oliveira Martins faz parte também a vida urbana e o modo como dela cuidamos. E escreve sobre o bairro que conheceu e onde viveu em miúdo: "Um bairro a sério tem os seus fantasmas. Conheci pessoalmente o senhor Manassés, o célebre barbeiro de Fernando Pessoa, na pequena loja de uma cadeira só, de madeira à antiga, sem ademanes (...). O senhor Manassés conhecia bem a casa de Pessoa. O poeta assomava à porta do barbeiro e, vendo a cadeira ocupada, fazia um pequeno cumprimento, dava meia-volta, atravessava a rua e ia para casa."
Guilherme d"Oliveira Martins admite que entristece quando vê desaparecerem dos seus lugares habituais caras e referências. Mas cabe à Cultura conferir-lhes o fôlego de uma segunda vida.