Guichet nº 12, ou o fascismo na fronteira

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A fronteira portuguesa do aeroporto de Lisboa esteve fechada na manhã de domingo, 24. Foi o que sentiram centenas, senão milhares, de passageiros que chegaram àquela porta de Portugal. Na verdade, por aí esteve fechada a fronteira da Europa.

O avião da TAP vindo de Luanda aterrou pouco depois das cinco da manhã. Os passageiros não sabiam, porém, o que os esperava. Eu tinha vindo a ler o alerta de Madeleine Albright sobre o fascismo. E, de repente, assim mesmo de borla, pude perceber como os sindicatos tinham tido, sem querer, o seu papel na construção do fascismo europeu do início do século XX. Explico-me já: tanto Hitler como Mussolini começaram as suas carreiras em movimentos que hoje poderiam ser colados à esquerda ou a sindicatos trabalhistas. Logo, as greves e protestos, legítimos, foram aproveitados pelas duas bestas para falar em nome dos trabalhadores e do povo. Desculpem este pensamento contaminado pela proximidade temporal, eu nem a meio do livro vou. Mas não posso deixar de notar como a insatisfação da classe média europeia e dos trabalhadores está a favorecer o crescimento da extrema-direita.

Sim, na manhã de Domingo eu estava que via fascismo em quase tudo. Como no facto de uma instituição de segurança nacional se dar ao "luxo" (já digo o porquê deste luxo) de entrar em greve. Foi o que nos foi dito. O SEF estava em greve. Lembrei-me que o presidente do sindicato das polícias portuguesas apelara há dias à criação de sindicatos nos países da CPLP, vá de retro ó coisa, em Angola a Polícia é órgão paramilitar e a de intervenção está melhor treinada e melhor equipada que muitas unidades das Forças Armadas, nem os quero imaginar em greve ou em protesto que possa descambar. Em Angola, pensar em sindicato nas forças da ordem é algo de outro mundo (portanto, isto de greves é mesmo um luxo.)

No guichet nº 14 estava um inspector negro do SEF. Para os "outros passaportes" havia apenas dois a trabalhar: o do 13 e o do 14. Para os cidadãos europeus e passageiros prioritários, um homem apenas.

Vou cortar caminho: ficamos mais de três horas na fila para chegar à fronteira, aos agentes do SEF, depois de sete horas de voo. Muita gente perdeu as suas ligações. Aquele espaço do tamanho de um campo de futsal estava mais do que cheio.

Os funcionários de terra da TAP eram diligentes no que podiam, os do aeroporto também, mas tudo o que se conseguia era somar atrasos.

Reparei que na fila havia mulheres grávidas, barrigas bem visíveis, porque as angolanas criaram a cultura de parir em Portugal. Dois ou três meses depois, a TAAG e a TAP fazem de cegonhas e levam os bebés para Luanda. Quem pode, passa sete ou oito meses a poupar para dar a dar à luz em Portugal.

De repente chegou o funcionário do guichet número 12. Entrou, olhou para os aposentos. Voltou a sair e foi ao guichet 13, falou com o colega. Voltou ao 12. Voltou a sair e a entrar no 13. Colocou nas mangas as divisas do seu serviço. Era um português típico, dos que fizeram o serviço militar, encorpado, barba e bigode aparados. Levou meia hora até começar a trabalhar.

E eu a pensar que o iria chamar de fascista se fosse por ele atendido. As pessoas a julgar que a fila iria andar mais depressa com mais um inspector. Debalde, mal ele começou a trabalhar, o 13 levantou-se e foi-se embora. Eram já sete e meia.

Perguntei a um funcionário do aeroporto se não podiam ao menos dar prioridade às grávidas e às crianças, ele disse que a polícia não deixava. Olhamos os dois para o outro lado, o das prioridades, estava igual: parado.

O inspector negro continuava lá, lento. Não posso perguntar ao primeiro-ministro português se concorda com aquilo, por causa da cor da pele. Mas havia na fila um bom motivo de orgulho para os angolanos: dois membros do governo que aguentaram com um sorriso no rosto, não se puseram em bicos de pés, não exibiram a sua condição.

E eu ainda estou espantado com o civismo das pessoas, ninguém se alterou, ninguém levantou a voz, dos que vinham de Angola, do Brasil ou de outros sítios. Havia muitos chineses também. Três horas em pé era metade do tempo que fizeram de viagem.

Chegou a minha vez e calhou-me o guichet número 12, vejam a minha sorte. Pensei em como entrar com ele, uma frase indignada e não ofensiva, pelo menos diretamente. Aproximei-me. Momentos antes vira dois jovens a fotografar-se depois de passarem a fronteira, fazendo o sinal com o polegar para cima, tinham ganho a batalha da paciência. Estendi o passaporte com cara de poucos amigos, cansado. O inspector olhou para mim e perguntou com ar de velho amigo: então, como está?

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