Guerreiros da selva
Advertência: esta história é só para duros e, mesmo assim, há lágrimas no meio da conversa. Andámos no meio da mata amazónica, e só saímos de lá vivos porque estávamos com um «guerreiro de selva» do exército brasileiro. Entranhamo-nos, por isso, no espírito militar e, mesmo assim, não é logo evidente porque é que o Brasil, sendo um país de paz, tem «guerreiros de selva». Desde a semana passada estão a decorrer manobras conjuntas da marinha, exército e força aérea brasileira, simulando um cenário de guerra na Amazónia como operação de treino, mobilizando 4500 militares. A área é estratégica, considerada pulmão do mundo e cobiçada pelos EUA que por várias vezes tentaram ali comprar terras. Isto numa altura em que o desmatamento sobe 27% na região este ano. Os militares de elite estão preparados para tudo e para o pior - e dificilmente alguém, a não ser eles, estaria preparado para isso. A Organização das Nações Unidas diz que são «os melhores do mundo». São treinados para a guerra na selva da Amazónia, resgatam vidas no meio da mata cerrada, são «negociadores» de conflitos, têm missões secretas; enfrentam rebeldes. Na indefinida fronteira amazónica brasileira eles são os responsáveis por defender os cerca de 11 mil quilómetros de limites (isso é dez vezes a extensão da costa portuguesa), em pelotões especiais infiltrados na selva. Nível de dificuldade: máximo. Terapia de choqueTodo esse rol de duras missões pode ser, por vezes, uma «terapia de choque». Aos «guerreiros», formados pelo Centro de Instrução de Guerra na Selva (CIGS), em Manaus, no Brasil, arrancam-se confissões de histórias pesadas, violentas; de heroísmo. Para o capitão Luciano Casagrande, que foi destacado do Rio de Janeiro e é instrutor do CIGS, a estreia como «guerreiro de selva» foi «perturbadora». Estava no aeroporto de Letícia, na fronteira entre o Brasil e a Colômbia, a ajudar a Polícia Federal (PF) nos trâmites de imigração e uma mulher com uma criança ao colo chamou-lhe a atenção. «Tinha uma expressão nervosa como se quisesse esconder alguma coisa», recorda à NS'. Não tirou mais os olhos dela. E ela ficara cada vez mais tensa com o atraso do voo: foi o suficiente para que os oficiais percebessem o que poderia passar despercebido caso já tivesse embarcado. A criança que estava ao colo dela não se mexera nunca. Demoraram alguns minutos até conseguirem «ganhar coragem» para desmascará-la. Era «óbvio», analisa agora friamente Casagrande: a criança, morta, estava a servir de correio para levar cocaína para o Brasil. «O corpo ainda estava morno. Eu não queria acreditar que ela tinha matado o próprio filho para esconder a droga», desabafa, e as lágrimas chegam a aparecer. «Quando me tornei guerreiro de selva sabia que tínhamos sido treinados para o pior.»Guerra na selvaMantenha-os sob tensão e canse-os. (Sun Tzu, A Arte da Guerra)De Manaus até se entrar em «propriedade do exército brasileiro», no meio da floresta amazónica e onde se formam esses guerreiros, são duas horas de estrada municipal. Abre-se a cancela e dali começa uma viagem todo-o-terreno até à base militar Pedro Teixeira. São quarenta minutos de solavancos por causa do piso irregular, num jipe desconfortável e sem janelas, sob um calor assassino. Ao redor: um emaranhado de verde-selva, árvores altas e mata cerrada, rasgada por uma estrada de pó, sinuosa, que vista de cima parece um rasto de serpente.Há onças predadoras escondidas no meio daquele mato inóspito, tarântulas, cobras, e muita humidade (que desidrata o corpo em minutos, mesmo sem grande esforço). E, embora não os víssemos, havia também dezenas de homens derreados, em formação - sem dormir há dias, sem beber há horas -, a simular emboscadas como se estivessem em guerra. Alguns deles estavam a poucos dias de se tornarem «os melhores». Não o sabiam. Esses militares programados há quatro meses pelo CIGS na cultura da guerra, não sabem a quantas andam, a não ser que têm de cumprir ordens, planear emboscadas, resgatar reféns de guerrilhas e aprender que a fome, a sede e o sono são psicológicos.Imagine-se a fórmula secreta desse ADN militar: resistência de mercenários, sageza de agentes secretos, exímios na arte da guerra. Eles esgarçam o limite da provável capacidade humana. Chegam a andar na selva apenas com um facão e um envelope branco A4 («abrir só em caso de emergência») e estão incessantemente à prova, numa elipse de desorientação, para ficarem «mais racionais e objectivos». Por isso, as primeiras reacções são uma espécie de algozes silenciosos: os instrutores já sabem quem vai ser um guerreiro de selva ou não. «Nós, militares, somos bons observadores», sintetiza Casagrande.«Em guerra você paga muito caro»Uma da tarde: ouvem-se pés a marchar, sons metálicos a roçar fardas, uma voz de comando e homens camuflados repetindo-a. Correm erguidos, apesar do peso. Cantam roucos, alto, repetindo a voz de comando. «Todo o guerreiro tem no peito uma onça/ Que ele carrega em cima do coração/ Se Deus quiser um dia eu vou ter uma/ Para eu chegar lá não vai ser mole não/ Mas essa onça vale muito mais que ouro/ Esse tesouro com meu corpo eu vou pagar/ Não adianta nem carranca, nem alavanca/ Quero ver quem é que tira nós daqui desse lugar.» Param em formação. Olhares suspensos, submissos. Casagrande grita: «Tudo pela Amazónia!» Respondem: «Selvaaaa!» Seguem-se vinte minutos para almoçar. Alvoroçam-se. Tiram um prato de metal da mochila. Separam sacos plásticos para envolvê-lo e poderem comer (a louça não é lavada quando se está no meio da selva). Fazem fila. Marcham. Ouve-se o som seco de pés a pisar o chão, alternadamente. Há vozes roucas, graves e forçadas a repetirem, de novo, uma voz autoritária, cantando. A melodia é conhecida: Rap das Armas, da dupla Cidinho e Doca, que fez parte do filme brasileiro Tropa de Elite. «Pa-ra-pa-ra-pa-ra-pa-ra-pa-pa... Perguntem o porquê de eu estar aqui/ Em busca do ideal que tanto persegui/ E para conquistá-lo é preciso mais que fé/ Paguei com sacrifício, só Deus sabe como é/ Só Deus sabe quantos já tombaram nesse chão/ Nunca importando sua origem ou religião/ E viver na selva nem que leve a vida inteira/ Enquanto muitos pensam que a vida é brincadeira/ O maior conselho para os amigos meus/ Para se agarrar na selva tem que ter a fé em Deus/ Tem que ter moral/ E um bom preparo/ A selva quando cobra, você paga muito caro.» Comem em menos de dez minutos. Alinham-se. Esvaziam as balas das armas. O descanso termina e a vigília teria mais 48 horas em missão, no meio da selva.Quantas horas de selva aguenta?A suprema arte da guerra é derrotar o inimigo sem lutar.O contingente do CIGS tem hoje mais de 25 mil homens de todos os cantos do Brasil. À entrada da sala de instrução está uma escultura de madeira, em forma de árvore com galhos altos e baixos, segurando retratos de militares. Na legenda: as horas de selva como atestado de experiência. Casagrande tem mais de mil. Afiança que poderia sobreviver nela dias a fio, que é «amiga» quando se lhe conhece os segredos. «Nenhuma missão é tão difícil que um Guerra não possa cumprir», lê-se nos manuais. E a onça que Casagrande ostenta no peito, o brevet-símbolo da categoria, sobre o camuflado de tecido grosso e pesado - demasiado quente para os mais de quarenta graus da selva - é só para quem «provou merecê-la». O CIGS tem cinco cursos anuais. Os candidatos aprendem a sobreviver na selva (o que comer, como improvisar abrigos, onde encontrar água), desenvolvem a técnica, a estratégia e operações em cenário de guerra na mata da Amazónia. Falta é revelar o fermento essencial que leveda estes homens de resistência implacável: o sacrifício - «a capacidade de esgarçar o limite e superá-lo».Passam quatro meses no meio da mata, sem noção de tempo, sem dormir, a planear emboscadas; são largados de helicóptero no meio do rio, carregados de equipamento: têm de nadar oito horas só com uma mão, um fusível na outra, vinte quilos às costas mais as botas pesadas, encharcadas, em águas infestadas de jacarés. Tudo isso sem dormir, sem água, sem comer. Casagrande diz que o processo é, «na verdade, bem pior». São levados ao extremo. O stress de guerra pode ser um fosso sem retorno para «os fracos». Além de uma capacidade física «sobre-humana», garante o primeiro-sargento Anderson Gama, «é preciso ter muita força de vontade para se tornar um guerreiro da selva».Tudo por ela A estratégia sem táctica é o caminho mais lento para a vitória. Táctica sem estratégia é o ruído antes da derrota.O terceiro-sargento Fernando César está pálido, cansado, a transpirar, e com as mãos e os lábios gretados de desidratação. Estão mais de quarenta graus. Diz que não tem muito tempo para falar da experiência no curso, porque «os superiores» não tardarão a chamá-lo. Ouve atentamente as perguntas, responde assertivo, sem vacilar. «A Amazónia», esse lugar estratégico do Brasil, foi «o motivo» que o levou a querer ser um «guerra». Depois, «o prestígio da categoria» em todo o mundo. «Há maior orgulho do que bater no peito e dizer: sou um guerreiro de selva?» Nesta altura da formação, apesar do crónico desgaste e da fadiga, os alunos «já estão a pensar como estrategos», explica o tenente Leriche. Durante todo o curso, os alunos do CIGS são acompanhados por médicos e psicólogos. E o próprio stress infligido pelos instrutores depende do perfil psicológico do militar, traçado antes de a formação começar. «Eles têm de se superar», justifica o tenente.Há dias em que eles podem estar a fazer tudo correctamente. Não importa. Vão levar porrada psicológica como se estivessem a meter o pé na argola. Objectivo: perturbá-los.César preparou-se para este curso durante um ano e meio e, mesmo assim, acha que talvez não tenha sido o suficiente. «O terreno declivoso, as condições inóspitas, a pressão e a falta de água podem levar um guerreiro ao desequilíbrio emocional», desabafa. Ele treinou «muito», sobretudo natação, que é uma das modalidades mais importantes para a Amazónia, cujas estradas são os rios; programou o cérebro para uma inquebrantável motivação; leu vários manuais de estratégia e enfrentou a competição cerrada para ser seleccionado. Muitos não passam a triagem inicial; alguns desistem a meio do curso. Entram em média sessenta, saem quarenta. Por ali também já andaram dois militares portugueses: o capitão de infantaria Hélder Leoneu Pereira Abreu, em 1987, e o alferes Francisco Pereira Leite Bastos, três anos depois. Ser elite da selva amazónica já atraiu, ainda, norte-americanos, angolanos, belgas e sul-africanos. Os mais assíduos são os franceses e os latino-americanos. Quando há «espiões» no curso, graceja Casagrande, dispensam-nos do módulo de estratégia nacional, por razões de «soberania e segurança»: são segredos de defesa, caso a Amazónia seja atacada. Pôr do SolEvitar guerras é muito mais gratificante do que vencer mil batalhas.O rio Negro está calmo e o sol ainda garante quatro horas. O primeiro-sargento Clemilson está intransigente. Grita para que os futuros guerreiros se mexam, porque os barcos vão sair para uma missão, e não é «problema» dele se ficarem em terra. Um rapaz de pele muito branca e o rosto salpicado de acne tem o número 45 cosido no chapéu: vem a apertar o colete salva-vidas. Outros correm, enquanto tentam segurar a pesada espingarda na mão direita. Neste curso ninguém tem nome, só números, para garantir a distância pessoal. Há vários chapéus com algarismos puídos a embarcar como formigas alinhadas. Apenas se ouve o motor do barco. Aqueles homens vão atentos. De vez em quando o silêncio quebra-se. «Primeiro ponto de orientação: casas de ribeirinhos», alerta o número 34.Três pontos depois: os homens silenciosos desembarcam, ruidosos e desconfiados, no povoado ribeirinho do Porto de São Pedro, a uma hora de Manaus, para identificar o terreno. A população foi apanhada de surpresa. Interrogam o líder comunitário: quantas pessoas ali moram; quais os problemas. Nas fronteiras esta actividade é uma forma de controlarem pessoas estranhas à região, normalmente ligadas ao narcotráfico. Outros homens camuflados sobem a encosta para rondar a área. Descobrem muitos terrenos queimados ilegalmente. Identificam-nos no mapa. Seria «imprudente» e desapropriado usarem o GPS. «O Brasil não tem satélites», adverte Clemilson, «não podemos depender da tecnologia dos EUA». Orientação «fiável» por ali, então: bússola, mapas cartográficos e a natureza (para onde correm os rios; para onde se inclinam as plantas, por exemplo). Para quem não conhece as manhas da mata amazónica, assustadoramente homogénea, de nada serve «a tecnologia». É sem ela que estes «duros da selva» chegam, mesmo assim, onde querem. Prova de fogo: quando o avião da companhia aérea brasileira GOL caiu em plena mata amazónica, em 2007, foram os primeiros a chegar, com a ajuda de uma tribo indígena. Para estes militares das forças especiais na Amazónia, a missão principal é «servir o Brasil e levar cidadania», resume Casagrande. Sobretudo na fronteira. «Há dezenas de brasileiros que moram em zonas tão remotas como as dos pelotões, que não sabem sequer quem é o presidente do Brasil.» O sol está quase a ir-se. Os homens embarcam de novo como formigas. O rio Negro volta como cenário para a meia hora de regresso à base militar. Há barcos de linha, cheios de gente, vindos de cidades remotas da Amazónia, a chegar a Manaus. Demoraram dias. Para muitos dos passageiros está mais perto o descanso. O pôr do Sol já tomou conta do horizonte. Para um «guerra», ele é só «metade da jornada de trabalho». Salvar vidas num pelotão de fronteiraDa primeira vez que liderou um pelotão de fronteira (PF), «os braços mais distantes do Brasil», Luciano Casagrande tinha 26 anos e acabara de formar-se como guerreiro de selva. Com a responsabilidade de liderar trinta homens, diz que a experiência o amadureceu. «Lá temos de ser padres, polícias, médicos, confidentes e psicólogos; porque a ausência do Estado e dos bens essenciais é muito grande.» Estes pelotões, além de vigiarem a fronteira, são um apoio a muitos brasileiros que ali moram. Por isso, como capitão de PF de Ipiranga na fronteira com a Colômbia, Casagrande já teve de resolver muitos conflitos. Por ali não há hospitais nem supermercados nem luz. Os únicos acessos são de avião (com voos militares incertos e para abastecimento, em geral), ou a dias de barco, em plena selva amazónica - todos os 25 pelotões estão isolados. A população que mora em redor «sente-se mais segura», afirma o capitão, «e sabe que à partida nada lhes faltará». Lembra uma história: uma caixa de água caiu em cima da perna de uma criança, por acidente. O médico do pelotão não tinha os meios necessários para o tratar e o miúdo estava a perder muito sangue. Foram horas de agonia, até que conseguiram contactar o Comando Militar da Amazónia que autorizou o envio de um helicóptero para levá-lo para o hospital de Manaus. «Se nós não estivéssemos por lá, ele não se teria salvo.»Ameaças à Amazónia- Narcotráfico: influência dos países produtores de droga- Exploração mineral: garimpo, empresas mineradoras- Crimes fiscais: evasão de dívidas, lavagem de dinheiro- Problemas de demarcação de terras indígenas: conflitos e invasões- Extractivismo ilegal: madeireiros, pescadores, seringueiros, caçadores- ONG ilegais: subterfúgios para crimes na Amazónia- Zona franca de Manaus: sonegação e evasão fiscal- Terrorismo: alianças de guerrilhas, narcotráfico_ Política: corrupção e lavagem de dinheiro- Questões fundiárias: desmatamento e conflitos de terras (apropriação ilegal).Missões dos guerreiros de selva- Vigilância da Amazónia- Controlo de fronteira: demarcação de limites, presença- Identificação de crimes- Resgate de reféns- Resgate de desaparecidos na selva amazónica- Resolução de conflitos: manifestações, por exemplo- Missões humanitárias nacionais e internacionais- Soldados de guerra- Protecção do Estado- Missões secretas