Guerra
Perguntei-lhe:- Ah, o teu pai foi combatente? Onde?Achei que havia entre nós uma espécie de irmandade. Afinal, aquele encontro de circunstância ainda podia vir a revelar-se mais íntimo do que eu esperava.
Só o que é íntimo me interessa.
Desde criança que ouço as histórias de guerra do meu pai, pára-quedista em Moçambique de 68 a 70. Com o tempo, aprendi as rações de combate e o equipamento, as rotinas de reconhecimento e os lugares - a Beira, que era um descanso; Mueda, que era um pavor.
Decorei os nomes de colegas e oficiais. Sonhei com aviões de transporte e negras esfíngicas, caminhando picada fora com cestas de palha à cabeça.
Às vezes traziam mandioca. Outras, uma criança.
Tudo isso foi, para o meu pai, num tempo anterior ao confinamento da ilha. O meu pai não é açoriano: casou com uma açoriana. Lembrar África tornou-se a sua maneira de conservar os grandes espaços - ouvi-lo lembrá-la a minha de ser do mundo e filho dele.
E agora ali estava eu, diante de outro herdeiro do Ultramar. Havia uma irmandade entre nós.
- Olha, por acaso não sei - disse ele.
Engoli em seco.
Perguntei-lhe pelo ramo das forças armadas em que o pai estivera, a ver se o ajudava. Não sabia. Perguntei-lhe que idade tinha o pai. Disse:
- 69.
Corrigiu-se:
- 70.
Fez contas de cabeça:
- Olha, não sei se é 69, se é 70. Nasceu em 1945 ou 46, agora não tenho a certeza.
E achou normal, porque afinal foi há muito tempo.
Estive para perguntar-lhe se o pai alguma vez lhe dissera ainda ter sido contemporâneo da Segunda Guerra. Mas achei que um homem que não sabe a idade do pai, em que país combateu e como esse confronto diário com a morte o mudou, também não vai saber quando foi a guerra que transformou o lugar em que vive.
Limitei-me a despedir-me. No fundo, tive pena dele: um homem que não sabe nada sobre o seu pai nunca saberá nada sobre si próprio ou sobre o mundo.