Guerra santa em nome de Lula e de Bolsonaro

Estudiosos não acreditam em conflitos comparáveis aos do mundo islâmico mas avaliam que a política, que fala cada vez mais em Deus e no diabo, pode levar intolerância a níveis perigosos. O DN está a publicar desde 1 de setembro um conjunto de reportagens sobre os 200 anos da independência do Brasil, que se celebram no próximo dia 7.
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No mesmo dia, 12 de outubro, em que o Brasil celebrava Nossa Senhora de Aparecida, a padroeira do país, Sérgio von Helder, bispo da IURD, entrou nos estúdios da TV Record, controlada pelo culto de Edir Macedo, para, numa edição do programa "Despertar da Fé", despertar uma espécie de guerra santa naquela manhã de 1995: pontapeou uma imagem de Nossa Senhora, enquanto gritava "isso aqui custa 500 reais no supermercado, será que Deus pode ser comparado a um boneco tão horrível, tão desgraçado?", para sublinhar a distinção entre a igreja católica, que adora santos, e a protestante, que os ignora.

Num tempo pré-internet, o assunto viralizou: os jornais vespertinos publicaram uma fotografia do momento do pontapé, o Jornal Nacional, principal noticiário da TV Globo, concorrente da Record, abriu com o assunto, esquadras e tribunais foram entupidos de queixas-crime de católicos e de evangélicos rivais da IURD, o presidente Fernando Henrique Cardoso alertou para "os perigos da intolerância", Macedo mandou o seu bispo para fora do país e Dom Eugênio Salles, o arcebispo do Rio de Janeiro, usou as palavras que estavam na boca de toda a gente, "guerra santa", obrigando o Papa a intervir: "católicos, não respondam ao mal praticando o mal", recomendou João Paulo II, do Vaticano.

Nunca, como naquele dia, o Brasil esteve tão perto da tal "guerra santa" que Dom Eugênio mencionou com todas as letras. E hoje? E no futuro?

A primeira-dama Michelle Bolsonaro disse, no dia 7 de agosto, que o Palácio do Planalto, no passado, esteve consagrado a satanás e hoje, a Jesus. No dia seguinte, partilhou uma imagem de Lula da Silva, principal rival do marido, Jair Bolsonaro, nas eleições de outubro, num ritual de candomblé, igreja de matriz africana, associando-a "às trevas", com a seguinte legenda: "isso pode, né? eu falar de Deus, não".

No primeiro discurso de campanha, Lula respondeu à notícia falsa, espalhada pelo deputado bolsonarista pastor Marco Feliciano, de que fecharia templos evangélicos caso eleito, chamando Bolsonaro de "fariseu" e de "possuído pelo demónio".

DestaquedestaqueA expressão "guerra santa" está hoje banalizada nas análises políticas à luta ombro a ombro, pelo voto religioso.

"As equipas de campanha vão, com certeza, avaliar se essas mensagens foram bem recebidas pelos eleitores, caso tenham sido, vão insistir nelas até a níveis potencialmente perigosos", afirma Flávio Sofiati, doutor em sociologia da religião na Universidade de Goiás, ao DN. Para Sofiati, entretanto, "esse perigo já está na intervenção de Michelle Bolsonaro sobre o candomblé". "Ela ratificou o preconceito enraizado na sociedade brasileira de associar coisas ruins a igrejas de matriz africana".

O Brasil, país onde, por exemplo, descendentes de árabes e judeus casam entre si e convivem harmoniosamente, tem fama de tolerante na religião. "Mas é-o só até certo ponto", assinala Sofiati. "Para começar, há a perseguição, já referida, às religiões de matriz africana, como candomblé e umbanda, e ao espiritismo. Por outro lado, embora não me pareça que haja elementos comparáveis no Brasil, ainda, ao contexto do mundo islâmico, há intolerância na política que pode transbordar para a religião, de que é exemplo a execução de um adepto de Lula na festa do seu aniversário por um adepto de Bolsonaro que invadiu o local".

A expressão "guerra santa" está hoje banalizada nas análises políticas à luta ombro a ombro, pelo voto religioso. "Guerra santa de Bolsonaro surte efeito em eleitores evangélicos e Lula prepara reação", lê-se num blogue do portal G1. "Nas últimas semanas, a campanha de Lula detectou uma série de movimentos nas redes sociais e em eventos com evangélicos desferidos pela equipa de Bolsonaro, tentando, na avaliação dos petistas, "demonizar" o ex-presidente", escreve o jornalista Valdo Cruz.

"Agora, a campanha de Lula vai preparar uma reação. A estratégia será combater o que os petistas estão chamando de "instrumentalização da fé e da religião" como tática para ganhar votos, principalmente explorando o medo nesta faixa do eleitorado. Segundo um integrante da campanha de Lula "o PT avalia que dormiu no ponto" e não desenvolveu uma política direcionada para esse grupo do eleitorado, enquanto Bolsonaro decidiu retomar eleitores evangélicos que haviam se afastado de sua órbita", conclui.

DestaquedestaqueO Brasil ainda é o maior país católico do mundo - mas já é, em paralelo, o terceiro maior país protestante do globo.

Em causa, o domínio, segundo as sondagens, de Lula, entre católicos, e o de Bolsonaro, entre evangélicos. O candidato do PT tem 51% das intenções de voto dos católicos, contra 26% do candidato à reeleição pelo PL. Já entre evangélicos, Bolsonaro tem 47% contra 29% de Lula.

Nos últimos meses, Bolsonaro, cujo lema em 2018 era "o Brasil acima de tudo, Deus acima de todos", tem ido a eventos evangélicos com frequência semanal. Só em julho, esteve em encontros com fiéis no Rio de Janeiro, em Minas Gerais, São Paulo, Maranhão, Ceará, Espírito Santo e Rio Grande do Norte. A tática repete-se, embora em menores proporções, junto ao eleitorado católico. Em 16 de julho, o presidente leu passagens bíblicas e discursou ao lado de um padre em Natal sob o mote "Deus, pátria, família e liberdade", slogan quase igual ao "Deus, Pátria, Família" atribuído a Salazar.

O Brasil ainda é o maior país católico do mundo - mas já é, em paralelo, o terceiro maior país protestante do globo, atrás apenas dos EUA e da Nigéria. Alguns estudos apontam para uma ultrapassagem dos segundos aos primeiros nas próximas décadas. Outros, indicam uma estabilidade nos números atuais.

"Há autores que preveem a ultrapassagem e autores que acham que os evangélicos já chegaram ao seu teto: Walter Altmann, teólogo brasileiro importante, acreditava na ultrapassagem por alturas do censo de 2010, o que não sucedeu; o inglês Paul Freston, grande estudioso da religião na América do Sul e não só, defende que os protestantes não têm margem para ultrapassar os católicos, o que é corroborado pelas sondagens do instituto Datafolha, a melhor fonte enquanto os resultados do novo censo, previstos para 2024, não são conhecidos, segundo as quais os católicos vão caindo, mas já sem a ênfase de antes, e os evangélicos crescendo, mas já não na forma vertiginosa de antes, o que aponta para esse teto".

Em resumo, Sofiati acredita, de acordo com as projeções, que os católicos perderão a maioria absoluta "caindo para algo perto dos 50%" e os evangélicos chegarão "aos 30% mas sem subir muito mais". A guerra a valer, entretanto, pode ser travada entre lulistas e bolsonaristas.

Depois de um governo muito marcado pelo uso de Deus no discurso, a laicidade do estado brasileiro está em risco, como se teme?

A linguagem religiosa na política é mais um código sobre moral e ideologia do que sobre as religiões, como conjunto de práticas e doutrinas, em si: é por isso que pouca importa ao público evangélico se Bolsonaro é ou não evangélico como eles, tanto que ele às vezes usa gramática mais próxima dos católicos, outra vezes mais próxima dos pentecostais. O que lhes importa é que ele use aqueles códigos. Entretanto, a laicidade do estado é uma questão legal, formal e sem retorno no Brasil.

Previu a eleição de um presidente dos evangélicos. Bolsonaro, que não é, em rigor, evangélico, é esse presidente?

Pensou-se que a candidatura presidencial do pastor Everaldo, em 2014, dado o poder de lideranças religiosas na política à época, tivesse sucesso, o que não aconteceu. Segundo pesquisas, candidaturas com identidade religiosa, como essa, têm menos sucesso do que candidaturas não religiosas que usam pontualmente esse discurso, como a de Bolsonaro, em 2018. Por quê? Porque os evangélicos não funcionam como um grupo: são heterogéneos e têm disputas internas, logo, é mais eficiente apoiarem-se em alguém sem hierarquia oficial.

Líderes mediáticos, como Edir Macedo, Silas Malafaia e outros, vão continuar a tentar estar próximos do poder?

As denominações religiosas neopentecostais, que são conglomerados de media e trabalham com mercados amplos, vão continuar a tentar estar sempre próximas do poder porque elas agem por valores religiosos e também interesses económicos.

Acredita que os evangélicos continuarão próximos da direita, por causa de questões comportamentais, ou podem mover-se?

Podem mover-se. As religiões monoteístas são, em termos gerais, conservadoras mas isso não significa, desde logo, que nesses grupos não haja quem se identifique com agendas progressistas. E, depois, temos de separar o conservadorismo natural das religiões monoteístas do voto, que é movido por contextos políticos e económicos.

Nesse período de 200 anos acha que o protestantismo vai ultrapassar o catolicismo no Brasil? Se sim, quando?

Pesquisas demográficas apontam uma virada quantitativa no Brasil, de facto, porque observamos que a juventude católica é menor do que a juventude evangélica, logo, isso projeta a possibilidade de em 10, 20 ou 30 anos haver essa inversão. Mas o grupo dos sem religião cresce no Brasil e no mundo entre jovens. Podemos até ter um empate a três entre católicos, evangélicos e sem religião.

As duas principais correntes do cristianismo têm convivido relativamente bem, se compararmos com conflitos armados no islamismo, por exemplo. Há risco de, num país tão emocional e dividido, haver conflitos no futuro?

A violência religiosa no Brasil já existe, historicamente e hoje em dia, contra as religiões de matriz africana. Só não a chamamos de guerra religiosa porque está envolvida no chamado racismo estrutural. De qualquer forma, apesar das rivalidades entre católicos e evangélicos e dentro dos próprios evangélicos, há acordos estratégicos entre eles que preservam o caráter cívico e que apontam para que jamais aconteçam situações como no Médio Oriente.

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