Guerra fria do futebol
No filme Pilkarski Poker (Póquer de Futebol), realizado na Polónia em 1988, um antigo futebolista polaco, que marcou dois golos à seleção da Rússia Soviética na década de 1950, é confrontado com a pergunta se, na altura, tinha "permissão" das autoridades da Polónia comunista, subservientes a Moscovo, para ganhar contra a União Soviética (URSS).
O filme apesar de ser uma comédia, revela o medo perante o poder da chamada "nação irmã", como a elite comunista polaca costumava chamar aos russos. Para ambos os lados, particularmente complicado foi o período da fundação do primeiro sindicato independente do Bloco de Leste, chamado Solidarnosc (Solidariedade).
O sindicato tentou democratizar a Polónia, subordinada ao Kremlin, no início da década de 1980. Um mês antes do registo da organização anticomunista de operários, decorreu em Moscovo uma competição olímpica de salto à vara. No confronto final, a 30 de julho de 1980, após uma luta feroz, o polaco Wladyslaw Kozakiewicz derrotou o russo Konstantin Volkov, batendo o Recorde Mundial, e, após o salto bem sucedido, fez um gesto ofensivo para o público russo que o assobiava.
"O manguito de Kozakiewicz" rapidamente se tornou um símbolo de desobediência ao regime do Kremlin. A situação, aparentemente trivial, deu origem a tensões diplomáticas. As autoridades polacas, embaraçadas, tentaram explicar a situa- ção com uma alegada cãibra muscular do atleta após o salto, o que não convenceu as ofendidas autoridades russas. O embaixador da URSS em Varsóvia, Boris Aristov, exigiu que Kozakiewicz fosse despojado da sua Medalha de Ouro. Por fim, foi-lhe retirado... o passaporte.
Alguns meses após o gesto de Kozakiewicz, os futebolistas polacos qualificaram-se para o Campeonato do Mundo de Futebol, em Espanha, onde defrontaram a Rússia Soviética no seu caminho para as meias-finais do torneio. Nessa altura, a Polónia estava sob lei marcial imposta pelo regime subordinado ao Kremlin.
A junta militar do general Wojciech Jaruzelski aboliu muitas liberdades civis e ilegalizou o sindicato Solidariedade. Entretanto, o seu nome apareceu em bandeiras e estandartes exibidos pelos adeptos durante o jogo entre a URSS e a Polónia, a 4 de julho de 1982, no estádio Camp Nou, em Barcelona. A estação de televisão, obediente às autoridades comunistas, interrompeu por várias vezes a transmissão sempre que a palavra "Solidariedade" aparecia nos ecrãs.
O duelo entre as "nações irmãs" terminou com um empate a zero, que, para a Polónia, significava a passagem às meias-finais do Mundial, com o guarda-redes Józef Mlynarczyk a revelar-se um dos heróis do encontro. Quatro anos mais tarde, o jogador viria a integrar a equipa do FC Porto.
Um ano depois do Mundial em Espanha, em 1983, os russos vingaram-se da seleção polaca em Moscovo, ganhando 2-0 numa eliminatória para o Euro1984. No Grupo 2, composto pela Polónia, Finlândia, URSS e Portugal, as duas últimas equipas dominaram a disputa.
Embora a luta tenha sido renhida até ao fim, em 28 de outubro de 1983, há precisamente 40 anos, na penúltima ronda das eliminatórias, os soviéticos já tinham quase a certeza de que se qualificariam para o Euro antes do jogo entre a Polónia e Portugal. Chegaram mesmo a enviar de Moscovo a Wroclaw uma delegação de autoridades do partido comunista, juntamente com o selecionador adjunto da URSS, Sergei Mosiagin.
O sucesso estava perto. Bastava apenas um empate dos polacos perante o seu público, o que parecia uma formalidade, uma vez que as Águias não perdiam um jogo em casa há dois anos. No final, porém, os anfitriões não puderam contar nem com o empate, nem com o público.
Aos 32 minutos, um grito de alegria irrompeu nas bancadas dominadas pelos polacos, após o golo de Carlos Manuel. No fim, os branco-vermelhos perderam por 0-1. "Eu (e os meus colegas) fomos aplaudidos... por termos perdido o jogo", disse Iwan. O antigo avançado ainda assumiu que, antes do confronto com Portugal, ele e os seu companheiros tinham recebido frigoríficos da empresa Polar (hoje inexistente) de Wroclaw, produtos muito preciosos na época comunista polaca.
"Pergunto-me (...) com que intenção foi oferecida esta prenda (da Polar)? Que iríamos ganhar ou perder? Algo me faz crer que cumprimos o desejo do doador completamente por acidente", recordou o ex-jogador, falecido em dezembro de 2022.
Já nas primeiras horas após a derrota, surgiu uma longa lista de perguntas entre os comentadores polacos sobre a atitude da equipa nacional. Os jornalistas notaram que, em comparação com o onze inicial das "Águias" do Mundial, em Espanha, o treinador da terceira equipa do mundo dispensou sete jogadores destacados, incluindo estrelas como Wladyslaw Zmuda, Zbigniew Boniek e Grzegorz Lato. Mas até hoje, o ex-selecionador Antoni Piechniczek rejeita quaisquer razões não-desportivas para a derrota da sua equipa frente à seleção portuguesa liderada por Fernando Cabrita.
O técnico afirma que os meios de comunicação social, após o jogo, "criaram um mito", de que a Polónia perdeu de propósito para irritar os russos. "Não houve qualquer conversa entre nós sobre a possibilidade de perder o jogo", sublinha Piechniczek, garantindo que era amigo do selecionador da URSS, Valeriy Lobanovskiy, e que não considerou "qualquer jogo sujo".
"Depois da nossa derrota em Moscovo, que nos tirou a oportunidade de sermos apurados, Cabrita veio ter comigo e entregou-me uma garrafa de vinho do Porto. Lobanowskiy também recebeu o mesmo. Portanto, não favoreceu nenhum de nós", explica o treinador.
A vitória em Wroclaw aproximou os portugueses da seleção soviética, liderando a tabela com nove pontos. Isso significava que a URSS não podia perder no último jogo disputado em Lisboa, em 13 de novembro de 1983. No final, porém, os russos foram derrotados por 1-0 e a equipa de Cabrita, vencendo as qualificações com 10 pontos, apurou Portugal pela primeira vez para o Europeu.
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