Entre a ex-primeira dama e o ex-diretor das prisões. Guatemala vota na sombra da corrupção
Há quatro anos, o antigo humorista Jimmy Morales surpreendeu ao ser eleito presidente da Guatemala. A sua promessa era acabar com a corrupção -- o seu lema era "nem corruptos, nem ladrões" -- mas quando os holofotes da Comissão Internacional Contra a Impunidade na Guatemala (Cicig, na sigla em espanhol) se viraram contra si, a sua família e aliados, lançou-se numa guerra aberta contra este organismo das Nações Unidas responsável por investigar e julgar crimes graves no país.
Este domingo, a Guatemala volta a ir às urnas, num escrutínio marcado ainda pela sombra corrupção, com quatro candidatos presidenciais (incluindo duas das favoritas) a serem obrigados a desistir da corrida por suspeita de abusos. Enquanto isso, Morales tentou expulsar a Cicig do país e, sendo travado pelo Tribunal Constitucional, acabou por não lhes renovar o mandato, que acaba em setembro de 2019.
Além do presidente (que tomará posse a 14 de janeiro do próximo ano), os 8,1 milhões de eleitores registados elegem este domingo também os 158 deputados no Congresso, 340 presidentes de câmaras e 20 deputados para o Parlamento Centro-Americano. O voto não é obrigatório, mas a participação costuma ser elevada. Em 2015, 69,7% dos eleitores foram votar. Este ano, os eleitores que vivem nos EUA vão poder fazê-lo pela primeira vez (estima-se que seis mil o façam).
Nas eleições da Guatemala, o desafio é saber quem é que ainda é candidato, depois de quatro candidaturas terem sido travadas na justiça. A certa altura da campanha, três mulheres estavam à frente da corrida: Zury Ríos, filha do falecido ditador Efraín Ríos Montt, Thelma Aldana, ex-procuradora-geral conhecida pela sua cruzada anticorrupção, e Sandra Torres, mulher do ex-presidente Álvaro Colom e antiga primeira-dama.
A pouco menos de um mês das eleições, o Tribunal Constitucional resolveu desqualificar as duas primeiras da corrida. No caso de Ríos porque a Constituição do país proíbe que familiares de líderes de golpes de Estado se possam candidatar à presidência ou vice-presidência. Já Aldana foi desqualificada por questões técnicas: os candidatos têm que apresentar um certificado que garante que não tiveram qualquer condenação ou conflito de interesses quando ocuparam cargos públicos e ela é suspeita de uma contratação ilegal enquanto procuradora-geral. O caso, que Aldana diz ter motivos políticos, ainda não avançou, mas a candidata está em El Salvador desde março, depois de ter sido emitido um mandato de captura contra ela.
Outros dois candidatos viram também recusada a candidatura. Foi o caso de Maurício Radford, que foi acusado de abuso de autoridade durante o seu mandato à frente do Registo Nacional de Pessoas (equivalente ao Instituto dos Registos e Notariado português). Já Mario Estrada, que tentava pela quarta vez ser eleito presidente, foi obrigado a sair da corrida depois de ter sido detido em Miami, por suspeita de ligação ao cartel mexicano de Sinaloa.
Dos candidatos iniciais, restam só 19. E lá porque Sandra Torres, candidata da Unidade Nacional de Esperança (esquerda) era uma das favoritas, isso não significa que tenha garantida a vitória. Desde logo porque também está a ser investigada pelo Tribunal Constitucional por suspeita de financiamento ilegal na campanha de 2015 -- onde chegou à segunda volta, perdendo para o ex-humorista e atual presidente Jimmy Morales. A decisão final deste tribunal sobre um levantamento da imunidade ainda não foi tomada.
Apesar de ser a mais conhecida dos candidatos, a ex-primeira-dama enfrenta também um problema de popularidade: numa sondagem, 49% dos eleitores dizia que nunca seria capaz de votar nela e numa eventual segunda volta, prevista para 22 de agosto, é provável uma aliança contra ela e em apoio do ou da rival. De facto, qualquer um dos outros favoritos a passar à segunda volta vence Torres numa corrida a dois, segundo as sondagens.
Na última sondagem CID Gallup, Torres surge com 21% das intenções de voto. Segue-se, a novo pontos de distância, Alejandro Giammattei, ex-diretor do sistema penitenciário e pela quarta vez candidato às presidenciais. É o secretário-geral do partido Vamos (direita) e chegou a estar detido, acusado de participação em "execuções extrajudiciais", mas foi ilibado.
Quem também tem hipóteses de passar à segunda volta é Roberto Arzú, do Partido do Avanço Nacional (direita), que tem nove pontos na sondagem. Filho do falecido ex-presidente Álvaro Arzú, viu um juiz de Miami ordenar em março a sua prisão por não ter comparecido em tribunal num processo de dívida por um serviço de consultoria que terá feito. O candidato alega que é um processo cível que não deve interferir na sua candidatura (e de facto o Tribunal Constitucional não se pronunciou sobre o tema).
Finalmente com sete pontos surge Edmond Mulet, do Partido Humanista (direita), que fez a carreira como diplomata e foi chefe de gabinete do ex-secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, assim como secretário-geral adjunto para as operações de paz da ONU. Não está livre de escândalos, com o seu nome a surgir ligado a um escândalo que envolve adoções ilegais na Guatemala na década de 1980 -- ele alega que as acusações são ataques políticos do regime militar da altura.
Todos os outros candidatos têm menos de cinco pontos percentuais na sondagem.
Na Guatemala, o presidente só pode cumprir um mandato de quatro anos. O atual detentor do cargo é Jimmy Morales, o antigo humorista que chegou ao poder com a promessa de lutar contra a corrupção, depois de o então presidente Otto Pérez Molina e a vice-presidente Roxana Baldeti se terem demitido por envolvimento num escândalo -- Thelma Aldana, uma das candidatas agora afastadas, foi a procuradora que os investigou.
Mas, no final de 2018, Morales tentou expulsar o Cicig, órgão das Nações Unidas contra a corrupção do país (só foi travado pelo Tribunal Constitucional), depois de este o acusar de financiamento ilegal da campanha. E já no ano passado tinha investigado dois membros da família do presidente, tendo na altura este alegado que "o império da lei deve prevalecer sobre todas as coisas". Após ver travada a expulsão, Morales decidiu que não renovaria o mandato do Cicig, que deverá acabar em setembro de 2019. Isto apesar de 80% dos guatemaltecos aprovar o trabalho desta
Atualmente, mais de um quinto dos deputados estão a ser investigados por corrupção e 92% da população não confia no congresso. E no início da campanha, entre os candidatos a deputados, segundo o jornal Prensa Libre, havia pelo menos 150 que enfrentavam acusações ou injunções, que podiam afastá-los da corrida..
Nos índices internacionais, a Guatemala aparece no topo dos países com maiores desigualdades sociais e económicas, continuando atolada numa espiral de pobreza, violência de gangues organizados, corrupção e tráfico de drogas.
A pobreza atinge mais de 59% dos habitantes da Guatemala, mas o desemprego é de apenas 2,8%. O problema é que mais de 70% dos habitantes em idade ativa, têm um emprego informal -- seja como vendedores de rua, trabalham nas obras sem contrato, trabalham em casas particulares ou camponeses. Nenhum tem acesso a proteção social ou salário mínimo.
A Guatemala prepara-se para ter nos próximos anos um "dividendo demográfico", isto é, quando o número de pessoas em idade laboral é superior ao de pessoas dependentes (crianças e idosos). Mas enfrentará um problema se não conseguir garantir trabalho para os jovens, que podem virar-se para a criminalidade, para o trabalho informal ou optar por imigrar.
Segundo a ONU, estima-se que mais de um milhão de guatemaltecos tenham cruzado a fronteira com o México a caminho dos EUA, nas caravanas de imigrantes que são alvo dos ataques do presidente Donald Trump.