Grupo de enfermeiros que fez queixa contra bastonária lança movimento para discutir profissão
A enfermagem é uma profissão com história, uma profissão que nos últimos 30 anos obteve várias conquistas: desde a integração no ensino superior aos graus académicos avançados, desde o investimento e empenho na investigação, reconhecida nacional e internacionalmente como excelente, à intervenção em todos os contextos clínicos. É ainda uma das profissões que mais contributos tem dado à saúde comunitária e que, em tempos de crise, emigra, ombreando com os melhores nas mais diferentes latitudes". No entanto, muitos dos que integram a profissão, sentem que a população portuguesa não tem noção desta realidade, que a população portuguesa é até a que "menos usufrui do atual potencial da enfermagem e da capacidade de contribuir para a sua saúde e bem-estar".
E é neste sentido que um grupo de 18 notáveis - que no início de fevereiro enviou uma participação ao Conselho Jurisdicional da Ordem contra a bastonária, devido a vários comentários públicos - decidiu avançar com o que define como um desafio à sociedade, ao poder político e aos profissionais. O desafio de aprofundar o debate sobre o rumo e o futuro da profissão, pois "é uma questão que mexe com a sociedade e com o poder político, já que o que está em causa é a resposta a nível de cuidados que o país quer dar à população", explicou ao DN o primeiro signatário do grupo que enviou a queixa à Ordem e do grupo que agora lança o movimento "Enfermagem com Futuro", Manuel Lopes.
Ao lado do professor da Universidade de Évora e ex-coordenador da Rede Nacional de Cuidados Continuados, estão outros profissionais da classe da enfermagem, como Neuza Reis, Belmiro Rocha, Liliana Sousa, Joana Pires e Helena Rebelo, que elaboraram o documento que em breve darão a conhecer à sociedade em geral através do site "enfermagem com futuro" e que será entregue em breve a vários ministérios que integram enfermeiros, Saúde, Segurança Social e Defesa, e à Comissão Parlamentar da Saúde. O mesmo documento será também entregue às instituições de ensino de enfermagem e distribuído pelos profissionais.
Manuel Lopes explica a tomada de posição que agora assumem "nada tem a ver com um aspeto pontual, mas como uma questão de fundo, estrutural, que faça pensar que papel quer Portugal para a enfermagem, comentando: "Basta ir a Espanha ou a Inglaterra para se perceber que há um aproveitamento cabal das competências dadas aos nossos profissionais, o que não é feito no nosso país". É preciso perceber porquê, é preciso perceber que cada vez mais "se deixa o tempo da doença aguda para se passar ao tempo da multimorbilidade. E neste tempo as pessoas precisam mais de cuidados do que de tratamentos. É preciso discutir o futuro, este é o desafio que lançamos", argumentou ainda o mesmo.
O professor da universidade de Évora explicou ao DN que, a este grupo inicial de enfermeiros que avançou com a participação contra a bastonária ao Conselho Jurisdicional da Ordem dos Enfermeiros, a qual acabou por ser apoiada por mais de uma centena de pessoas, outros se têm vindo a juntar a este movimento e com o objetivo preciso de que é preciso "um debate aprofundado e sem preconceitos" que leve a uma espécie de novo "pacto social" para a enfermagem, como refere o documento, a que o DN teve acesso. "Dito por outras palavras, num exercício de maximização do contributo da Enfermagem para o bem comum e como resposta ao seu principal desiderato, é nosso entendimento que a classe deve propôr uma renovação do seu contrato social, porque tem condições para ser muito mais útil e dar muito mais à sociedade do que aquilo que lhe é permitido neste momento".
Manuel Lopes sublinha que o que se pretende "não é discutir a espuma dos dias, mas um debate de fundo, com muitas outras participações, quer de dentro da classe, quer de fora", justificando também ser pertinente que tal discussão se faça agora, já que "o perfil epidemiológico da população se modificou profundamente. Estamos perante uma sociedade envelhecida, onde predomina a multimorbilidade crónica e a dependência (9 das 10 principais causas de morte são doenças crónicas)". Para se viver com bem-estar nestas circunstâncias, "é necessário desenvolver uma abordagem centrada no autocuidado e sustentada na literacia, assumindo como foco e simultaneamente como co-produtores de cuidados, a pessoa e o seu contexto sociofamiliar e como local privilegiado de prestação de cuidados a casa das pessoas", referem no documento.
Os profissionais de enfermagem que dão nome ao documento defendem ser "necessário desenvolver modelos de cuidados congruentes com isso, que garantam a integração e a continuidade de cuidados, e dentro desta, a continuidade relacional". Dão como exemplo, os tempos que vivemos, a pandemia por SARS CoV2, em que a perspetiva defendida "faz todo o sentido".
Ou seja, "para lá da enorme pressão sobre os hospitais e dentro destes, sobre as UCI, temos, a montante, uma clamorosa carência de resposta da saúde pública e a jusante mais de 95% de pessoas infetadas que permanecem em suas casas e com evidente carência de um modelo de acompanhamento que lhes proporcione a resposta adequada".
Esta realidade atual demonstra que é preciso "adequar as respostas às atuais características e necessidades da população. É precisa uma mudança com inovação". Por isso, dizem, "os enfermeiros colocam-se desde já na linha frente para contribuírem para a mesma. E porque entendemos que a sociedade e a Enfermagem não são realidades estáticas", é preciso "(re)questionar em cada momento considerando a adequação do serviço que prestam às necessidades das pessoas. A Enfermagem, bem como qualquer outra profissão, existe para prestar um serviço à sociedade e apenas existirá se e enquanto aquela a considerar útil".
O grupo termina referindo que "urge uma reflexão que não feche a profissão sobre si mesma, que seja otimista e construtora de significado social quer no presente quer no futuro" e propondo "um novo pacto à sociedade portuguesa, assumindo igualmente o valor e importância das diferentes organizações da profissão, desde sindicais, associativas e de regulação, e estamos disponíveis para o discutir com todas as forças vivas e organizações sociais, nomeadamente com todas as forças políticas democráticas."