Grover Cleveland entrou solteiro para a Casa Branca e em junho de 1886 tornou-se o primeiro presidente a casar-se no 1600 da Pennsylvania Avenue. Foi com a mulher pelo braço que saiu em março de 1889 (na altura a tomada de posse ainda não era em janeiro), com a jovem primeira-dama Frances Cleveland a pedir aos empregados para tomarem conta da mansão porque "quero encontrar tudo exatamente como está quando voltar. Vamos voltar dentro de quatro anos". E voltaram, conseguindo o que nenhum outro presidente conseguiu: cumprir dois mandatos não consecutivos. Um feito que Donald Trump quer agora repetir, deixando no ar a possibilidade de se recandidatar em 2024 depois da derrota frente ao democrata Joe Biden..Apesar de ainda não ter reconhecido oficialmente que perdeu as eleições de 3 de novembro, Trump ainda nesta semana terá confessado a um grupo de apoiantes que recebeu para uma festa de Natal antecipada na Casa Branca: "Foram quatro anos maravilhosos. Estamos a tentar mais quatro. Caso contrário vemo-nos em 2024.".Estas declarações, colocadas online por um membros do Comité Nacional Republicano e reproduzidas pelo The New York Times revelam a intenção de Trump de entrar para um clube mais restrito: é que se meia dúzia de presidentes na história dos EUA voltaram a tentar a sua sorte depois da derrota, só Cleveland foi bem-sucedido.."Trump quer mesmo avançar em 2024 e tudo o que está a fazer explica-se por causa desta sua vontade", diz ao DN Tiago Moreira de Sá. Para o professor associado da Universidade Nova e investigador integrado do IPRI, o atual presidente "sabe que a América é implacável com os perdedores" e por isso "ele não pode aparecer como derrotado se quer manter o imenso poder político que lhe deram os mais de 70 milhões de votos que teve, se quer manter o controlo sobre o Partido Republicano e se quer ter hipótese de ser o candidato e disputar com sucesso as eleições em 2024"..E Tiago Moreira de Sá acredita que Trump tem "algumas boas chances" de conseguir ser o presidente 47, depois de ter sido o 45. Com o Partido Republicano "paralisado" até às segundas voltas para o Senado na Geórgia, já em janeiro e com as primárias para as eleições intercalares de 2022 a começarem já no próximo ano, "quem se virar contra Trump corre um risco sério de ser corrido - ou já nas primárias dentro do partido ou depois pelos eleitores nas midterms"..No passado, outros presidentes tentaram regressar à Casa Branca sem sucesso. Martin Van Buren, por exemplo, perdeu a reeleição em 1840, não conseguiu ser o candidato do seu partido quatro anos depois, mas em 1848 apresentou-se nas presidenciais pelo Free Soil, ficando-se pelos 10% dos votos e não vencendo nenhum estado. Millard Fillmore, também no século XIX, conseguiu um estado e 22% dos votos quando tentou o regresso à Casa Branca em 1856 como candidato dos Know Nothings..Antes da emenda à Constituição que apenas permite dois mandatos consecutivos, outros presidentes tentaram um regresso após terem cumprido os seus oito anos na Casa Branca. Ulysses S. Grant chegou à convenção em 1880, mas viu os republicanos preferirem James Garfield. Já Theodore Roosevelt em 1912 apresentou-se como candidato do Bull Moose Party, conseguindo apenas tirar a vitória ao republicano William Taft e entregar a Casa Branca aos democratas. Exemplos históricos que talvez expliquem porque mais recentemente nem Jimmy Carter nem George H. W. Bush tenham arriscado uma segunda campanha apesar de terem cumprido apenas um mandato..Cleveland foi mesmo a única exceção. Democrata, mas conservador em termos fiscais, em 1884 conseguiu vencer as presidenciais apesar de ser acusado de ter um filho fora do casamento. O 22.º presidente dos EUA foi o primeiro solteiro no cargo, tendo acabado por se casar no Salão Azul da Casa Branca com Frances Folsom que aos 21 anos (menos 27 do que o marido - uma diferença de idades ainda maior do que a de Trump para a mulher Melania, que tem menos 24 do que ele) se tornou a mais jovem primeira-dama dos Estados Unidos..Quatro anos depois, apesar de vencer o voto popular, Cleveland perde o Colégio Eleitoral para o republicano Benjamin Harrison devido ao seu apoio para baixar as taxas sobre os bens vindos do estrangeiro. Mas Cleveland não desistiu e quatro anos depois, em 1892, vencia Harrison para se tornar o 24.º presidente dos EUA..Há contudo uma diferença de peso entre Cleveland e Trump: o primeiro ganhou sempre o voto popular nas três eleições que disputou, o segundo perdeu o voto popular tanto contra Hillary Clinton em 2016 como agora contra Joe Biden em 2020..Mas isso não deverá travar o milionário. "Trump vai manter a história de que a eleição foi roubada pelo sistema, de que ele não perdeu", acredita Tiago Moreira de Sá. O autor, com Diana Soller, do livro Donald Trump - O Método no Caos explica ainda que o homem que a 20 de janeiro vai deixar a Casa Branca irá "fazer tudo o que estiver ao seu alcance para, através do Partido Republicano, fazer a vida negra a Biden, para as coisas correrem mal". Uma das formas será no Senado onde, se os republicanos mantiverem a maioria depois das segundas voltas na Geórgia, poderão bloquear muitas das decisões da administração democrata. Uma espécie de "presidência-sombra ou presidência alternativa através das redes sociais e do seu projeto de comunicação, uma espécie de nova Fox News que Trump está a criar". Tudo para em 2024 voltar a apresentar-se como "o candidato do povo contra o sistema"..Ora não só gozar de uma reforma dourada em Mar-a-Lago e planear a sua biblioteca presidencial parece um cenário bem longe dos planos de Trump, como o presidente já tem inclusive a máquina a andar para preparar as próximas presidenciais. Segundo o The New York Times, Trump já angariou mais de 170 milhões de dólares desde o dia das eleições. E segundo uma sondagem Politico/Morning Consult, 53% dos republicanos apoiam uma recandidatura de Trump em 2024..Mas com uma pandemia a decorrer (os EUA bateram nos últimos dias os recordes de mortos, novas infeções e internamentos, estando aproximar-se das 300 mil mortes atribuídas à covid-19) e a crise económica que se vai seguir, em quatro anos muita coisa pode mudar.."Vai depender muito de como decorrer este mandato de Joe Biden", confirma Tiago Moreira de Sá, afirmando-se "convencido de que ele fará tudo para que corra mal". E uma das primeiras questões que se vão colocar será o regresso ao Acordo de Paris, que Biden prometeu como prioridades mas que "não é nada líquido que possa passar pelo Senado, onde os republicanos vão tentar tudo para o bloquear"..Para o professor, cabe também a Biden definir a sua "contraestratégia". A começar por "garantir que o Partido Democrata se mantém um partido centrista e moderado. Portanto tem de ter mão nos radicais do Partido Democrata porque são eles que alimentam os radicais do Partido Republicano". Por outro lado, "tem de ajudar a refazer o Partido Republicano tradicional. E para isso tem de ir ao encontro de algumas das suas bandeiras e ideias políticas. E não pode hostilizá-los", explica. E se Biden, nos seus muitos anos no Senado, ficou conhecido por conseguir criar pontes com a ala mais moderada dos republicanos, alguns democratas parecem enveredar pelo discurso da confrontação. "O próprio Obama, nas intervenções que tem feito, tem hostilizado os republicanos. É o contrário que se deve fazer", garante Tiago Moreira de Sá..Biden terá também de cumprir as promessas que fez e responder às preocupações do eleitorado que votou em Trump. Há quatro anos, agora "e que voltará a votar nele daqui a quatro anos. Se nada mudar, se calhar até ainda mais", admite Tiago Moreira de Sá..E a economia vai ser determinante para se perceber se Trump tem hipóteses de voltar mesmo dentro de quatro anos. Apesar de a América ter uma capacidade para recuperar da pandemia e dos seus efeitos económico-sociais "muito mais rapidamente do que a Europa", na opinião de Tiago Moreira de Sá, também ela vai ter de encontrar uma "bazuca económica" para enfrentar os próximos anos. E isso terá de passar pelo Senado. Mas, na fase seguinte, Biden até poderá beneficiar de um "momento pós-pandémico" de crescimento económico..Apesar de o novo presidente dos EUA só tomar posse a 20 de janeiro, a verdade é que a campanha para as próximas presidenciais parece já ter começado.