Gregos desesperados

A economia da Grécia está desacreditada e parece não ter remédio. As agências de rating continuam a baixar a confiança na dívida grega, mas os gregos não se conformam e a agitação social continua. Retrato de um país à beira da bancarrota.
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Assim que tomou posse, em Outubro do ano passado, o novo Governo de George Papandreou, do socialista PASOK, percebeu que havia alcançado uma vitória semelhante à de Pirro. Herdava, dos dois mandatos liderados por Kostas Karamanlis, do Nova Democracia (ND, conservador), um país exangue – o défice público real era de 12,7 por cento do produto interno bruto (PIB), a riqueza produzida pelo país num ano, em vez dos 3,7 por cento declarados pelo Executivo conservador. Revisto o diagnóstico, a Comissão Europeia (CE) concluiu que 13,6 por cento ou mesmo 14,1 por cento estariam mais perto da verdade. Como foi possível chegar a tanto?
Beneficiando do olhar abrangente que as amplas janelas do gabinete lhe proporcionam, no alto de um 8.º andar na Avenida Syngrou, a par do saber académico que a experiência, enquanto secretário de Estado do Orçamento de António Guterres, consolidou, Rui Coimbra ensaia uma resposta: «Muitos países usaram o crescimento económico para gerar receitas e, com isso, criar despesas. O problema é que quando a economia está má, a receita vai mas a despesa fica», explica. «Ora, a Grécia, para ter dívidas públicas aceitáveis, dependia de um crescimento económico apreciável. E teve-o», diz, «mas por efeitos exógenos: em cada momento, o país beneficiou de “ajudas” externas que geraram esse crescimento».

O gestor de 39 anos e director-geral do Millennium Bank (braço do BCP na Grécia), a residir há quatro em Atenas, enumera as ajudas, que remontam aos fundos comunitários. De Bruxelas, chegaram mais de cem mil milhões de euros aos cofres gregos desde que o país aderiu à União Europeia (UE), em 1981. A segunda ajuda foi a organização dos Jogos Olímpicos de Verão em 2004. Aqueles revolucionaram as estruturas de Atenas, cuja área metropolitana acolhe 3,5 milhões de habitantes – quase um terço da população do país.
O investimento olímpico reflecte-se nas novas vias rodoviárias que, largas e febris, aliviaram o tráfego do centro da cidade – tornando respirável um crepúsculo que antes se tingia de uma fuligem ferruginosa. Mas também no novo aeroporto, inaugurado em 2001, onde aterram milhares de turistas, conduzidos à capital por uma auto-estrada que, nos arrabaldes do casco urbano, cede o passo a uma avenida imponente, colonizada pelos franchisados internacionais e debruada por blocos espelhados e centros comerciais rutilantes. E ainda no metro de três linhas, transbordante de utentes, cujas estações exibem peças arqueológicas descobertas pelas obras – na de Syntagma, vasta parede de vidro desvela sedimentos da urbanização ateniense ao longo dos tempos, onde avulta uma sepultura cristã da primeira centúria. E, claro, as estruturas desportivas, cuja urgência levou à derrapagem orçamental que atirou a estimativa inicial (4,6 mil milhões de euros) para o dobro. Muitas apodrecem agora, sem préstimo…
O betão gerou «um fenómeno de imigração que trouxe à Grécia mão-de-obra a baixo custo», diz Rui Coimbra. O qual adianta, com a propriedade do cargo, o último grande impulso: o crédito bancário. «A taxa de penetração na Grécia era baixíssima, e houve oportunidade para expandir o crédito às empresas, à habitação, ao consumo e em cartões. Foi uma década de subida espectacular no crédito – entre dez e vinte por –, cuja injecção maciça gerou crescimento», garante. E um endividamento ímpar: o total de empréstimos das famílias gregas está em 120 mil milhões de euros (cinquenta por cento do PIB). Destes, 81 mil milhões são hipotecários e 36 mil milhões reverteram para consumo e cartões. Na aritmética estatística, cada uma das 2,5 milhões famílias gregas deve 48 mil euros.
Essa abundância de dinheiro a baixo custo, graças à adesão ao euro em 2001, terminou bruscamente, com a crise financeira global. «Os bancos também já não têm dinheiro para emprestar», confessa Rui Coimbra. Por falta de crédito externo e desconfiança interna: «Nos primeiros quatro meses do ano, saíram do país, para a Suíça e para o Chipre, vinte mil milhões de euros.»
O gerente de um dos maiores balcões atenienses do Emporiki Bank, Antonis Kypraios, admite que «a situação é trágica. Este ano, ainda só concedemos 15 empréstimos, quando no primeiro trimestre de 2009 havia 42 aprovados. E já executámos muitas hipotecas, mas não há quem compre casas». Interroga-se o bancário, de 54 anos e 35 de carreira, se «as pessoas também pedem menos por saberem que será recusado, ou se é só por não quererem aumentar os encargos»...

Falência olímpica
O problema do Estado é, afinal, igual ao dos cidadãos – cofres vazios e honra maculada por falsificar estatísticas. Só que tem muitos mais zeros. A receita foi-se, a despesa ficou, as contas públicas claudicaram. Visando recuperar a credibilidade externa e a sanidade interna – e arranjar verba para saldar os juros da dívida –, o primeiro-ministro pediu ajuda ao Fundo Monetário Internacional (FMI), à Comissão Europeia (CE) e ao Banco Central Europeu. Os quais, para concedê-la (110 mil milhões de euros), exigiram medidas draconianas, capazes de fazer cair o défice para 8,1 por cento este ano, e chegar aos 2,6 por cento em 2014. Nunca se tentou nada igual – fazer em três anos o que não se fez em trinta.
O plano, de proporções homéricas, será doloroso. A Segurança Social atalhou dez por cento com reflexos imediatos nas reformas, até agora disponíveis com apenas 15 anos de trabalho e que alcançaram absurdos 111 por cento do rendimento médio. Pelas novas regras, a idade da reforma masculina passa para 67 anos e 64 no caso das mulheres; o cálculo das pensões contempla o histórico dos descontos e não os últimos anos; e a reforma antecipada terá penalizações. Pior, as reformas de 850 euros em diante diminuem 18 por cento e as superiores a 2500 são amputadas dos 13.º e 14.º meses. Tal como os salários dos funcionários estatais, que, de congelados, mingaram um décimo.
Com o IVA a subir para 23 por cento, e o incremento de dez por cento na tributação do tabaco, álcool e combustíveis, o custo de vida, que já não era barato – um café numa esplanada trivial custa entre dois e três euros, os cigarros mais trinta cêntimos do que em Portugal – encareceu entretanto: numa semana, o litro de gasolina passou de 1,25 euros para 1,43. Com a inevitável quebra do consumo, a par do congelamento do investimento público, a contracção da economia (estimada em quatro por cento este ano) exterminará mais de cem mil empresas em 2010, segundo a Confederação Nacional do Comércio Grego.

Naufrágio
Na zona portuária de Pyreos, o futuro já começou. Nas ruas que desaguam no cais onde zarpam ferryboats para a Grécia insular, há lojas decrépitas, armazéns abandonados e oficinas por abrir. Num dos cafés refractários à decadência, Gorgios Kouvoutsakils, 62 anos, cofia o bigode e, entre volutas tabágicas, descansa num ócio forçado. A sua oficina, a GM-TH, é das mais antigas da rua. Fundada há três décadas, reparou muitas peças para o coração dos navios que atracam em Atenas. Há dois anos, tinha 28 empregados; agora, uma dúzia. Demasiados, ainda assim, para o trabalho que não há.
«O sector naval sofreu brutalmente com a crise de 2008. Os armadores agora recorrem aos chineses, que são mais baratos, e muitos navios vão para a Turquia», explica. Depois, «os bancos já não emprestam para investir em equipamento», pelo que a oficina só factura o sustento dos operários. Kouvoutsakils resigna-se. «Já vivo em privação há anos, mas com isto é pior», declara, referindo-se à crise cuja génese atribui «à combinação da ganância dos alemães com a estupidez dos nossos políticos. Os alemães porque querem lucrar com a nossa dívida; os políticos porque a contraíram com os Jogos Olímpicos, essa vaidade inútil. Arruinou-nos.» E volve à ruminação do fumo que lhe aplaca os nervos.
Para outros, como o industrial Spyros Veletakos, que veste os 32 anos em fatos de bom corte, a ruína é virtuosa. Formado em Gestão nos EUA e herdeiro da Veta SA, grupo metalúrgico e de injecção de plásticos com 256 empregados, intui que «a crise obrigará o sistema a regenerar-se. Muitas empresas gregas só existem por causa da corrupção e do dinheiro que recebem do Estado. E há empresários que não deviam estar sequer no mundo dos negócios», defende, alisando a gravata distinta.
A carteira de oito mil clientes não lhe chega. Muitos não resistirão e, por isso, está de partida para os EUA, em busca de outros mercados. «O mundo não pára, e nós também não», garante, confiante no catálogo com o selo internacional de qualidade e satisfeito pelo frenesim metálico que acomete os pavilhões fabris da zona industrial de Acharnes. A entrada da assistente no escritório, munida dos bilhetes para o voo transatlântico, aborta a conversa. «Business», desculpa-se.
Veletakos não é o único a capitalizar a tormenta. A outra escala, o casal Stravos Messinis e Maria Calafatis projecta «tirar vantagem da nova situação». Move-os o futuro dos filhos, Panayiotis, de 5 anos, e Georgios, com menos 2 e galo na testa, fruto das tropelias infantis. Essa demanda levou-os para um apartamento airoso em Zographou, enclave residencial no seio das vias rápidas que expandiram a urbe para Norte, próximo de um quartel militar e do relvado do Parque Goudi, semeado com as Olimpíadas. Ali, não obstante a carestia de estacionamento para o Peugeot 206, passeiam a prole nos dias quentes; nos outros, a casa tem espaço para os legos dos miúdos sem ameaçar a tecnologia informática paterna.
Na sala, abancado sob uma reprodução de O beijo, de Klimt – concessão de Stravos a Maria em troca da paz conjugal – o grego de 38 anos desfia, num inglês trazido da África do Sul, o seu plano: «As empresas estão a cortar gastos. Assim, vamos oferecer um espaço que albergue escritórios de ramos diferentes», diz. Ainda antes de angariar arrendatários, já aforrou com a retracção do mercado imobiliário: «Há três meses, telefonei à imobiliária para alugar um espaço de 180 metros quadrados na Praça Syntagma. Pediram 2400 euros de renda. Garanti que telefonaria para lhes dizer quanto dinheiro tinham perdido entretanto. Aluguei-o hoje por 1500 euros.»
Maria sorri, com orgulho. Indómita, o risco está-lhe no sangue. A sobrevivência também. Embora articule mal o português, nasceu em Lisboa há 31 anos. «Sou portuguesa, mas fui adoptada, com 3 anos, pelo meu pai grego que, na altura, geria uma companhia de navegação em Lisboa.» Com ele seguiu para Atenas. Há 15 anos. Acusa saudades, mas é-lhe difícil arranjar tempo para a viagem, agora que tenta expandir o seu negócio. Descobriu um filão no tédio ocioso e farto das estrangeiras em conúbio com os gregos ricos que residem nos subúrbios abastados. «Dou aulas de ioga, que está na moda, ao domicílio. Tenho dez clientes, todas bem na vida», explica. Pragmática, Maria confronta as dificuldades iminentes com frieza: «Poupamos na diferença entre os desejos e as necessidades», diz. Há quem não possa, porém, dar-se ao luxo de ponderar restrições.


Um professor português
Segundo a Comissão Europeia, 35 por cento das famílias gregas chegam ao fim do mês em dificuldades. Só com esforço e alguma ajuda é que a família de Vítor Vicente, professor lisboeta de 33 anos radicado há dez em Atenas, escapa a tais cifras. E também amor. Daquele que só existe nos filmes e na adolescência. E, no entanto, Vítor já era adulto quando ali aterrou, em 1999, pelo programa Erasmus. «Conheci a Vássia, apaixonei-me e voltei um ano depois, desiludido com o ensino num liceu de Almada e a certeza de ter encontrado a mulher certa.»
Mais dúbio se lhe apresenta o futuro. Responsável pelos exames de Português em Atenas, Vítor é assalariado do Estado grego. E, como os demais docentes (um professor do secundário, com horário completo, ganha 1800 euros), recebeu menos dez por cento este mês. Um rombo num orçamento já desprovido de extravagâncias. Aliás, no T2 acanhado, num bloco sem arquitectura nem graça de Toussa Botsari, transversal da Avenida Sygroup onde resiste um plátano frondoso – «o meu jardim», diz Vítor –, tudo é frugal. Até a vista para a Acrópole é uma nesga que assoma no horizonte, profuso de terraços cheios de estendais e parabólicas.
A sala, com puzzles de Dalí encaixilhados na parede que uma estante de livros e CD percorre, tem a desarrumação própria de um espaço partilhado pelos afazeres do casal e os lazeres das crianças. Os desenhos da Inês, de 5 anos, e da Sofia, de 3, disputam ao cachecol do Benfica a exposição no vestíbulo pejado de brinquedos, que já conquistaram a varanda. O caos é, todavia, confortável – e babélico, pois que ali há fluidez bilingue. Respira-se ternura, enfim. E disfarça-se o desassossego que obrigou a mudanças na casa cuja renda absorve 525 euros mensais.
«O carro fica na rua e poupo os 130 euros da garagem. Dispensámos a empregada, que vinha quatro manhãs – sempre são menos quarenta euros… E, felizmente, a Sofia largou as fraldas, porque um pacote de Dodot custa vinte euros, e em Portugal 12 – quando lá ia, trazia três malas só com fraldas...», diz Vítor. «Os preços são uma loucura…» Vássia confirma: «Com o euro, os preços subiram brutalmente, alguns para o dobro. Eu compro a roupa em Portugal, que é muito mais barata. Aliás, é tudo muito mais barato em Portugal. Aqui, os produtos no supermercado chegam a custar o triplo», garante a mulher de 37 anos. De resto, por ela mudava-se já para Lisboa. «Não o faço pelos meus pais. Não quero afastar deles as netas», diz.
Os avós das meninas, ambos reformados, habitam no rés-do-chão, numa proximidade providencial para Vítor, que também lecciona numa escola particular e dá explicações em casa: «Não conseguiria trabalhar tanto sem o auxílio dos meus sogros com as miúdas», admite. «Na Grécia, há muita retaguarda familiar, o que é um balão de oxigénio em alturas complicadas.» O imbróglio poderá crescer em breve. Não pelos sogros, cujas pensões, de tão baixas, escapam à poda estatal, mas pela filha. Apesar de formada em Educação Infantil, Vássia Goulé nunca logrou colocação; trabalha numa livraria cujo melhor cliente seria o Estado (o ensino oficial fornece gratuitamente os livros) se não devesse há meses. «A continuar assim, com a loja vazia devido às manifestações constantes, haverá despedimentos.»

Despedidos
Já começaram. Chondropoulos Nickos tem pouco corpo para os 28 anos, mas uma voz tenaz, que se agiganta no megafone com que incita as hostes sindicalistas do PAM, na Praça Omonia, a marcharem contra «os cleptocratas e o capitalismo global». Sobejam razões, ao engenheiro de estruturas, para tanta cólera. «Vivo com a minha namorada. Planeávamos casar em Dezembro e ter um filho no próximo Verão, mas agora é difícil porque não tenho trabalho», lamenta. Após três anos num gabinete, ele e dois colegas foram despedidos pelo patrão, que contrata trabalho fora. A namorada também é engenheira. «Nas melhores condições, ganhávamos mil euros cada, e agora é difícil pagar as contas. Não sei o que acontecerá à casa se não arranjar emprego rapidamente», diz.
A incógnita tem sustento. Chondropoulos engrossa o desemprego oficial que, em Fevereiro, orçava 12,1 por cento. O FMI projecta 14,6 por cento para 2011, mas os sindicatos estimam que esteja, já hoje, nos 18 por cento... Os jovens com menos de 24 anos são os mais atingidos – um em cada quatro não tem trabalho regular –, o que acrescenta pressão para reduzir salários no primeiro emprego. Nas revoltas de Dezembro de 2008, avultava a «geração dos setecentos euros» (salário mínimo nacional); nas revoltas que houver, sobrará a «geração dos quinhentos euros». O recurso, para muitos, é a emigração.
É o caso de Anastasia Bournelli, natural de Kalymnos, ilha no Egeu. Porque quinhentos euros não lhe chegariam senão para a renda do apartamento que partilha com o irmão numa paralela à Avenida Panepistimiou. «É perto da universidade. Pagamos quinhentos euros por mês por um T1 com setenta metros quadrados. E temos sorte: a maioria dos universitários paga o mesmo por metade da área», assegura a jovem de 22 anos, que fala quatro línguas e acabou de levantar o diploma de Marketing e Publicidade na secretaria da Universidade de Atenas. Não obstante as suas competências, está desempregada há três meses. E sem perspectivas.
«Os únicos empregos na Grécia são para balconista de lojas ou na área das vendas. Não é saída nenhuma. A alternativa para as raparigas é a via tradicional – casar, ter filhos e ficar em casa. Mas não foi para isso que estudei», sublinha. A indignação dura-lhe um instante apenas. Nos olhos grandes, cresce uma nostalgia que percorre as colunas neoclássicas da Biblioteca Nacional, contígua à Reitoria, e a certeza de não mais voltar às tardes de convívio estudantil na escadaria onde tantas vezes imaginou um futuro radiante. Não mais. Agora, Anastasia ensaia a despedida difícil do sol mediterrânico que lhe ilumina a tez morena. Está de partida. «Vou para Bruxelas. O meu namorado vive lá e arranjou-me uma proposta de emprego.» Aceitou. «Aqui, não há expectativas», garante.
E no entanto para Anastacia o futuro não era difícil. «Os meus pais são do Nova Democracia e por isso fui líder da organização juvenil do partido, a ONNED, em Kalymnos», diz. Nessa altura, tinha fé nos políticos e a vontade ingénua de contribuir para um país melhor. A dedicação foi reconhecida. «Um dia, um dirigente do ND ofereceu-me um emprego num banco, lá na ilha. E eu ainda era caloira num curso sem nada que ver com a banca», diz. Recusou. Deixou o partido, ficou a indignação: «É um dos grandes problemas. Aqui, não se cultiva o mérito, mas sim o favor político, a cunha.» O expediente é tão familiar que os gregos lhe chamam, não sem ironia, rousfeti. Significa despojos.

Bulimia estatal, anorexia privada
Os rousfeti espoliaram o Estado grego, engordando um sector público que é o maior empregador do país, absorvendo 22 por cento da força laboral. O Parlamento é paradigmático: com trezentos assentos, tem 1700 funcionários – quase meia dúzia por deputado –, contratados, na maioria, por nepotismo ou clientelismo. «Entre 2004 e 2009, criaram-se 75 mil postos de trabalho na Administração e trezentos organismos públicos novos», contabiliza Nikolaos (nome fictício), professor na Faculdade de Ciência Política e Administração Pública da Universidade de Atenas.

Todavia, a prática não é exclusiva do ND. «Sempre que entra um governo, acrescenta funcionários», diz. «Desde a queda da ditadura, em 1974. Ambos os partidos do Poder – PASOK e ND – criaram uma base de apoio com a promessa de criar empregos. Mas como o sector privado grego é débil, tiveram de pôr as pessoas na função pública.» E tantas puseram que ninguém sabe quantificá-las com rigor.
Na penumbra fresca do gabinete, onde chega ténue o bulício que agita a sede da maior central sindical do país, a GSEE, em véspera de nova greve geral – a quinta este ano –, Yannis Panagopoulos, o presidente sindical, alega que «a incógnita dos funcionários está nas autarquias». E advoga «a reorganização da função pública, porque há demasiados salários em actividades não produtivas, como a Defesa, que absorve 5,6 por cento do PIB». Com a agravante de os benefícios castrenses serem absurdos. Por exemplo, as filhas de um oficial recebem, enquanto solteiras, a pensão do defunto. A prima de Kypraios, já na idade da menopausa, nunca trabalhou à conta da deferência. Por essas e por outras, Panagopoulos quer «uma redistribuição dos lugares, em vez do despedimento».
Sucede que, se o pacote de austeridade for cumprido, a privatização de muitas empresas estatais levará à dispensa, até 2013, de pelo menos cem mil trabalhadores – e por um governo que chegou ao poder prometendo «mais protecção social»…
A ironia não colhe em Maria Zapatina. Com a filha Kalatina, de 15 meses, ao colo, aguarda na varanda voltada para o mar e o antigo aeroporto – tão abandonado como as estruturas olímpicas nas cercanias – por Lefteris Skarakis na luz oblíqua da tarde. Licenciada em Gestão e administrativa na DEI, a eléctrica grega e maior empresa estatal, com 25 mil empregados, padece de uma ansiedade que rara vez experimentou em 38 anos. «Consta que, no Verão, a DEI vai alienar a participação do Estado (51 por cento), o que implicará grandes despedimentos. Não sei o que poderá acontecer-me nessa altura», confessa. Os rumores agigantam-se nos anúncios, de página inteira, que a DEI publica na imprensa. Alardeando virtudes. Fazendo-se apetecível.
O marido chega, entretanto, no carro de serviço, um Audi A4. E não menos apreensivo. Despe o blazer, alivia a gravata e afaga Magdalini, a primogénita de 4 anos, com certa impaciência. Está tenso. Diplomado em Finanças e gerente comercial de uma empresa do sector alimentar, Skarakis já teve mais razões para sorrir. «Houve mudanças radicais no modo como os gregos compram. Este ano, 35 a quarenta por cento das vendas em supermercados foram promoções, e isso para a empresa é mortal», explica.
Zapatina, na sua elegância sofisticada, procura exorcizar os fantasmas. Ele, porém, não transige. «Tento ser positivo, mas a insegurança tem razão de ser, porque com a baixa drástica no consumo os objectivos da empresa não serão cumpridos e haverá despedimentos», justifica. «E se agora estou numa posição confortável, nessa altura estarei em risco», confessa. «Se for despedido, com 38 anos não sei se encontrarei emprego com o mesmo rendimento…» Que lhe proporciona o T3 amplo, com quatrocentos metros quadrados decorados conforme as revistas dos designers, em Alimos. Zona residencial da classe média-alta, onde se paga oito mil euros por metro quadrado.
Apesar de pessimista, embora angustiado, Skarakis enxerta na tormenta que perspectiva uma nota de esperança: «Acho que iremos valorizar as coisas mais simples, como a família e os amigos», alvitra, mirando as herdeiras que disputam um brinquedo. «Deixaremos de valorizar tanto o LCD, o carro, a casa…. As pessoas irão estreitar laços para viver bem nas circunstâncias. Os gregos serão mais solidários.» O altruísmo nascente, para muitos, chegará tarde.
A introspecção torna-se difícil numa cidade sem sono como Atenas, onde o trânsito nocturno continua feroz, os cafés transbordam de turistas e locais, e não será estranho ouvir, madrugada adentro, um martelo pneumático a furar o asfalto para remendar condutas. Mas, se é impossível estar só em Atenas, a solidão existe. E é pobre, condição que afecta cerca de vinte por cento dos gregos. Muitos deles vegetam por ali, na praça mais antiga da cidade, a Omonia. Nela, os deserdados depositam o corpo na soleira das lojas, disputando o lugar aos drogados que se injectam em público e já pouco mexem, indiferentes ao tráfego intenso dos táxis amarelos, ao comércio das putas solícitas e às deambulações dos imigrados sem sustento certo. Vivem eles – cingaleses, paquistaneses, turcos, ciganos, romenos e albaneses, africanos muitos –, os refugiados de misérias maiores, nos prédios insalubres das ruas Aristotelous, Averof e da Praça Vathis.
Essa comunidade babélica, que acrescentaria 1,5 milhões ao recenseamento, ocupa-se em empregos clandestinos ou dedica-se a comerciar marroquinaria, óculos e relógios nas praças e artérias de Atenas, já por si semelhantes a souk ou kasbah – nos passeios ao redor da Plaka, zona favorita do turismo, compram-se galináceos e grafonolas, quadros e queijos, vinhos e perfumes.

Economia subterrânea
No átrio da Biblioteca Nacional, ei-los propondo peças timbradas com as marcas proibitivas das lojas exclusivíssimas do bairro mais elitista da cidade, Kolonaki. São dezenas que recolhem, espavoridos, a mercadoria à vista da polícia, que chega aos pares cavalgando motos japonesas. Algum do povo protesta, que os preços dão-lhe jeito, mas os agentes, muito novos e fardados para o confronto, não claudicam. «Combatemos o comércio clandestino», informa uma agente de capacete posto. «Não pagam impostos, não podem vender.»
O combate à economia subterrânea, que a OCDE estima representar quarenta por cento do PIB, foi declarado prioritário pelo governo. Para Rui Coimbra, «as novas medidas não terão efeito, se esta economia paralela não entrar no sistema de modo a consolidar as receitas». O que não será fácil numa sociedade cujo herói, o armador Aristóteles Onassis, eludiu o fisco como ninguém, e que cultiva a fuga aos impostos. «Remonta ao tempo em que os gregos eram escravos dos otomanos. Não pagar tributo era resistir», explica o professor Nikolaos.
Mas a perseguição aos ambulantes torna-se ridícula à vista de Kolonaki, onde a evasão fiscal campeia por via dos profissionais liberais – advogados, arquitectos e médicos. Quando as autoridades auditaram as declarações de rendimentos de 150 médicos com consultório naquele bairro, onde os automóveis de encomenda são banais na capital europeia onde circulam mais Porsche Cayenne, verificaram que mais de metade facturava menos de 33 500 euros, o que tornaria virtualmente impossível pagar a renda. Um dentista declarou até rendimentos de 320 euros. Anuais. Há duas semanas, o Ministério das Finanças publicou, nos jornais, a lista de 57 desses médicos fraudulentos, por não passarem recibos das consultas ou sequer fazer registo delas.
E, no entanto, todos os cidadãos concorrem para manter a fraude. Por um lado porque, como realça Yoli Vrychea, dona do lounge Bartesera, na Rua Kolokotroni, «ninguém acredita que o dinheiro que entrega ao Estado será bem gerido»; por outro, por conveniência. «Eu próprio contribuo», admite Vítor. «Uma consulta é muito mais cara se passar recibo. E se for operado é melhor dar ao cirurgião um envelope com notas para garantir que ele aplica os conhecimentos.» O envelope mágico, conhecido por fakelaki, é um facilitador e uma instituição nacional. De tal modo que para o dono da Veta SA «o dinheiro oculto dá para manter o mesmo nível de vida por mais dez anos. Os gregos são ricos, mas têm pobres governos».

A medusa corrupta
E corruptos. O último relatório da Transparency International calcula que a corrupção desvia do erário público oitocentos milhões de euros anuais. São eles que alimentam iates, carros de luxo e villas faraónicas nos subúrbios ricos e nas ilhas. E todas as semanas há escândalos sobre a cupidez da classe política. O próprio presidente grego, Karolos Papulias, exigiu aos líderes dos partidos parlamentares a «catarse» do sistema político. Para Papulias, «esta crise é profundamente política, por culpa de um Estado clientelar e um modelo de exercício do poder opaco, que leva à bancarrota». Noventa e oito por cento dos cidadãos concordam.
E manifestam o seu repúdio no zénite de cada greve geral, na Praça Syntagma, fronteira à Assembleia Nacional, gritando klefte (ladrão) de mãos bem abertas. Supremo insulto na Grécia à classe política, tida como a medusa que pariu a crise. Com toda a impunidade. Contribuindo, em larga medida, para a explosão social iminente, diz Panagopoulos. «As greves não são contra este governo em particular, nem contra as medidas que adoptou, que sabemos necessárias. São sim para dizer à classe política que tem de mudar», diz o sindicalista.
Nikolaos está convicto de que será inevitável. «Os gregos estão fartos da classe política tradicional, da oligarquia que sempre governou o país», diz, ilustrando com uma anedota popular: «Qual é a diferença entre a monarquia e a democracia grega? A monarquia é o governo de um só, e na democracia grega é o governo de dois: os Karamanlis e os Papandreou», diz, aludindo ao sistema dinástico-familiar em vigor no país, em que alternam no poder duas famílias: os Karamanlis (conservadores do ND) e os Papandreou (socialistas do PASOK). Algo que pode começar a estilhaçar-se com a tragédia em curso. Nikolaos prevê, nos próximos meses, a formação de um governo de coligação capaz de enfrentar anos de penúria e inquietação social, senão até de violência. «O panorama político vai mudar muito. O cenário mais provável, para o Verão, é o de um governo de coligação ou de unidade nacional. Porque as medidas são demasiado duras para um governo monocromático.»


Números

12,1 por cento – percentagem do desemprego oficial em Fevereiro. Segundo o FMI será de 14,6 por cento em 2011. Os sindicatos dizem que já atingiu os 18 por cento.

120 mil milhões de euros – o total de empréstimos das famílias gregas. Cada uma das 2,5 milhões de famílias deve 48 mil euros.

67 anos – nova idade da reforma para os homens, para as mulheres é 64.

23 por cento – novo valor do IVA.

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