Gregor Samsa

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Quando, muito novo, li A Metamorfose, percebi que o meu mundo tinha mudado para sempre, como costuma suceder quando alguém nos morre. Foi uma perceção intuitiva, que só mais tarde encontrou palavra e gesto para se cristalizar, mas foi avassaladora, física. Pela primeira vez, depois de ter lido dezenas de livros que ia apanhando ou me iam recomendando, senti que um livro, um enredo, poderia não ser um objeto, um exterior que posso tocar ou afastar, sempre do ponto de vista de quem comenta, mas antes um desconcerto, um arrepio, que se apodera de nós, que não nos permite a confortável condição de observador.

Foi aí, só aí e com Gregor Samsa, que encontrei o poder transformador, até redentor, da literatura, e que depois comecei a procurar noutros autores e personagens: não me interessava já o fluxo de uma história, mas antes o fulgor, a revelação.

Se o efeito d'A Metamorfose foi em mim imediato, uma disrupção de que nunca mais me esqueci ou libertei, só mais tarde consegui perceber a razão, a identificação, que então, sem consciência, se apropriou de mim, e que hoje me parece evidente, transparente.

Quando Gregor Samsa se apercebe diferente, se sabe diferente, procura, antes mesmo de conseguir lidar com essa diferença ou de se aclimatar a ela, proteger os seus da verdade, preservá-los, impedir que pese sobre eles o fardo da transformação, da vergonha, como se fosse possível deixar intacto o quotidiano, chamando a si a responsabilidade, a tarefa, de garantir que tudo segue igual.

Havia nesse sentido de responsabilidade, no fardo, no castigo, a desesperada esperança de que tudo não passasse de um instante, de algo passageiro, que poderia ser corrigido, remediado, revertido. E mesmo quando o tempo se encarrega de confirmar, e intensificar, a transformação, as forças de Samsa continuam enoveladas nesse empenho, numa luta desigual que não consentiria vitória.

Não terão sido sensações muito diferentes das que, alguns anos mais tarde, eu próprio viria a descobrir em mim, na minha metamorfose, na minha vontade de provocar o menor desacerto possível.

E se uso a palavra desacerto, que convoca uma ideia de responsabilidade, é porque não me ocorre outra para descrever a minha infância que não "acerto", um acerto que eu não aceitava quebrar, perturbar.

Se olhar para trás, já em tempo de bonança, talvez consiga descrever esse tempo, esse percurso, como o da descoberta de um novo lugar para as coisas, de uma nova geometria que pudesse fazer sentido, com o mesmo amor, a mesma filiação: a confirmação de que nenhuma diferença, nenhuma metamorfose, nos priva da dignidade máxima, total, que é reservada a cada pessoa por ser pessoa - dignidade que todas as pessoas partilham com todas as pessoas, e que, portanto, nos faz iguais e, para os crentes, filhos de Deus.

O trágico fim do protagonista de A Metamorfose é ainda hoje o calvário de muitos dos que não encontram esse caminho, dos que são impedidos de o forjar, inaugurar, levados a acreditar que não participam do maravilhoso dom da existência.

Advogado

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