Corria o ano de 1976. O Brasil era governado por um regime totalitário. Exilado em Buenos Aires, o dramaturgo Augusto Boal preparava uma nova peça de cariz feminista, inspirada num texto antigo do dramaturgo grego Aristófanes. Necessitando de música, convidou Chico Buarque para a escrever, enviando um esboço de letra. Surgiu a canção "Mulheres de Atenas", para a qual precisaram de metáforas para falar daquilo com que não concordavam, fosse na sociedade ou no Governo do Brasil. Está implícita a crítica à sociedade patriarcal em que a mulher não tinha voz nem direitos e em que os seus desejos eram anulados por um Estado autoritário. A ditadura impunha a todos os brasileiros uma situação semelhante às mulheres atenienses da Antiguidade Clássica. Nessa época, em Atenas, os cidadãos eram maltratados e não tinham o direito de chorar e não tinham gostos, vontades ou sonhos. Existia uma distinção clara entre os géneros, com papéis sociais e políticos muito bem definidos. Enquanto os homens tinham acesso ao poder e à glória (políticos, guerreiros e comerciantes), as mulheres tinham uma vida totalmente submissa. Mesmo dentro de casa, as meninas eram separadas dos irmãos e permaneciam numa área isolada da casa, o "gynaikeion". Elas raramente saíam à rua e, para que isso acontecesse, deviam ser acompanhadas pelos maridos ou pelos pais, e sempre vestidas da cabeça aos pés. A canção faz este paralelo, embora se possa tornar estranho julgar antigas culturas e costumes a partir dos valores atuais. A cultura contemporânea e a nossa compreensão desses factos são o resultado de um longo processo histórico. Por isso, na atual Atenas, a paisagem dá-nos uma realidade completamente diferente. Dificilmente alguma mulher de agora gostaria de ter vivido na sociedade grega antiga. Este foi o tema de conversa com duas mulheres de Atenas que se encontravam num dos cafés mais famosos da capital grega, o Melina Mercouri Café, no número 22 da Lisiou, no bairro de Plaka, a 200 metros da Acrópole. No espaço interior, havia diversas fotografias de Melina Mercouri, atriz e, depois, ministra da Cultura pelo Movimento Socialista Pan-Helénico (PASOK). O proprietário resolveu homenageá-la. Estávamos bem enquadrados para falarmos à volta de uma mesa com tampo de mármore redondo, sentados em cadeiras Thonet. O estabelecimento também é provido de esplanada, nas duas frentes, porque faz esquina. Ouvem-se pássaros, por causa da existência de um arco de árvore florida. Começámos a conversa falando precisamente de Melina Mercouri, nascida em Atenas, em 1920, e falecida em Nova Iorque, em 1994, que como política resistiu a todas as reformulações de Governo. Este café bistrô, ao estilo grego, abriu em 1999 e, desde então, recebeu dezenas de personalidades famosas. Trata-se de um espaço que liga a antiga Atenas, a história de Melina, os desenvolvimentos políticos e a história moderna da Grécia. Andreas, o mentor, e o seu filho Stefanos receberam-me com toda a hospitalidade. A conversa com eles e com aquelas jovens ocupou-me toda a tarde naquele bairro mágico e antigo de ruas estreitas. Eu estava deliciado com o ambiente, a conversa e os doces de colher. Ali, presta-se um tributo, pelo menos, a uma das mulheres modernas de Atenas que, "quando amadas, se perfumam, se banham com leite, se arrumam suas melenas"..Jorge Mangorrinha, professor universitário e pós-doutorado em turismo, faz um ensaio de memória através de fragmentos de viagem realizadas por ar, mar e terra e por olhares, leituras e conversas, entre o sonho que se fez realidade e a realidade que se fez sonho. Viagens fascinantes que são descritas pelo único português que até à data colocou em palavras imaginativas o que sente por todos os países do mundo. Uma série para ler aqui, na edição digital do DN.