Grandes conspirações da História 8: A morte prematura de João Paulo I

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(Conclui publicação iniciada ontem)

Ao Papa parecia-lhe estar literalmente rodeado de maçons, entre eles o secretário de Estado, o cardeal Jean Villot; o ministro dos Negócios Estrangeiros, monsenhor Agostino Casaroli; o cardeal Baggio; o cardeal Ugo Poletti, vicário de Roma; o arcebispo Paul Marcinkus; e monsenhor Donato de Bonis, também um alto funcionário do Banco do Vaticano. Luciani não conseguia acreditar naquilo. Para a sua mentalidade era simplesmente inconcebível que um sacerdote pertencesse à maçonaria. Pelo menos podia contar que as pessoas em quem mais confiava no Vaticano, o cardeal Benelli e o cardeal Felici, não figuravam na lista.

João Paulo II desfrutava da companhia de Felici, um homem de pensamento conservador, mas inteligente, sofisticado e espirituoso. Para sua surpresa, o cardeal comentou que conhecia a lista. Aquela andava a circular pela Santa Sé, pelo menos, desde 1976 e constituía um segredo de polichinelo. O facto de ter sido agora revelado era uma mensagem clara para que o novo pontífice tomasse as rédeas da situação. O que se pedia dele era uma investigação e uma purga que levasse por diante uma boa parte da Cúria e diversos papabili.

A investigação foi executada, discretamente e com a colaboração das autoridades italianas, que encontraram testemunhos que apoiaram a presumível pertença do secretário de Estado, Jean Villot, e do seu assistente, o cardeal Baggio, à maçonaria. A investigação teve como resultado que o mesmo se podia dizer de praticamente todos os nomes que figuravam na lista.

No dia 13 de Setembro, o Papa chamou a Roma um dos seus homens de confiança, Germano Pattaro, para que fosse seu conselheiro. Segundo as suas próprias palavras, Luciani estava a viver "um mês de inferno", uma via crucis. A Cúria, indecisa e dividida, acossa-o constantemente. A relação com Marcinkus e Villot é cada vez mais tensa. No entanto, o próprio Marcinkus estava perfeitamente consciente de que os seus dias à frente do Instituto das Obras Públicas (IOR) estavam contados. A partir do dia 20 já se falava em Roma que o Papa se dispunha a fazer uma limpeza em profundidade entre os nomes mais representativos da Santa Sé.

Só perante o perigo Um dos mais preocupados era Roberto Calvi, presidente do Banco Ambrosiano, cujos negócios com Marcinkus e o Banco do Vaticano poderiam conduzi-lo a uma cela para toda a vida. As notícias que lhe chegavam dos seus informadores no Vaticano não podiam ser mais inquietantes. Calvi arriscava-se muito. Tinha-se apropriado indevidamente de mais de 400 milhões de dólares, através da evasão fiscal e de empresas fantasmas. Dependia agora muito que Marcinkus - que se encontrava sob investigação - se mantivesse no seu posto. A única e remota possibilidade era que o Papa morresse antes de destituir os homens de confiança do anterior pontífice e em seu lugar fosse eleito alguém menos partidário de reformar as finanças do Vaticano.

Um mês depois de ser designado papa, João Paulo I tinha conseguido levar o receio e a incerteza ao coração dos principais responsáveis pela corrupção do Vaticano. A 23 de Setembro, João Paulo I tomou posse como bispo de Roma. A sua homília naquela ocasião não contribuiu em nada para tranquilizar as possíveis consciências culpadas que existiam na Santa Sé. Aproximava-se inexoravelmente a hora da limpeza e o Papa estava determinado a empunhar a vassoura. Nessa altura, os rumores da existência do relatório solicitado a Villot pelo Papa já tinha chegado ao prestigiado semanário norte-americano Newsweek, que dava como certa a destituição de Marcinkus. Na Cidade do Vaticano, as apostas acerca de quem iria ser retirado do seu posto converteram-se num passatempo. Supostamente, Marcinkus encontrava-se em todas elas e Villot não lhe ficava muito atrás. Atrás de ambos, perfilavam-se dezenas de nomes.

O cardeal arrogante Também tinha de se solucionar o assunto do Banco Ambrosiano, desvinculá-lo de Calvi e dos seus negócios sujos à maior velocidade possível, salvar o que se pudesse salvar, quer em prestígio quer em dinheiro, e procurar um novo banqueiro para a Santa Sé. O principal candidato era Lino Marconato, director do Banco San Marco, que foi chamado aos aposentos do Papa para uma reunião confidencial a 25 de Setembro.

O dia 28 foi a data escolhida para se dar início à purga. O primeiro a ser convocado ao escritório do Papa foi o cardeal Baggio, um dos mencionados na lista de maçons. Apesar do que a doutrina dizia, o Papa não pensava excomungá-lo. Para começar, apenas tinha contra si provas circunstanciais e, embora tendo-se a certeza da sua vinculação maçónica, castigar um cardeal teria sido um escândalo ao qual a já muito vilipendiada Igreja não se podia permitir. No entanto, o que era muito óbvio é que não queria ter perto de si em Roma um homem em quem não confiava e assim recorreu a um solução salomónica. Desde que tinha sido eleito papa, Veneza estava sem patriarca, e decidiram oferecer aquele posto a Baggio.

Não obstante, durante aquela audiência aconteceu algo que não estava nos planos do Papa. Baggio negou-se e, além disso, fê-lo num tom pouco adequado para se dirigir a um pontífice. Estava, de facto, furioso. Não queria partir de Roma para uma diocese periférica, onde ninguém iria contar com ele para nada. Gostava de Roma, gostava das manobras políticas do Vaticano. Dentro de pouco ia presidir à conferência de Puebla, no México, e queria capitalizar aquele protagonismo.

A recusa e sobretudo o tom de Baggio desconcertaram o Papa que considerava a obediência como um dos valores fundamentais do sacerdócio. Além disso, até no tempo que tinha de pontificado, aquela fase calamitosa em que descobrira corrupção atrás de corrupção tinha a tendência para desculpar os culpados pensando que as suas acções tinham provavelmente a sua origem na obediência devida. Aquele cardeal arrogante que por motivos egoístas se negava a acatar uma decisão do Papa era algo de inconcebível. Apesar disso, o pontífice manteve a calma.

Às 15.30, voltou para o seu gabinete e fez algumas chamadas telefónicas: telefonou para Pádua para o cardeal Felici, para Florença para o cardeal Benelli e telefonou a Villot, a quem convocou para uma reunião algumas horas mais tarde. Aos seus dois amigos, contou-lhes o que tinha acontecido e pediu- -lhes conselho. Ao secretário de Estado, comunicou as suas restantes decisões. Solicitou-lhe que dentro de 24 horas procederia à destituição de Marcinkus na liderança da banca vaticana. E mais, nem sequer desejava que o bispo norte-americano permanecesse no Vaticano; na sua terra natal, como bispo auxiliar de Chicago, seria muito mais útil à Igreja. No lugar de Marcinkus seria colocado monsenhor Giovanni Angelo Abbo, secretário da Prefeitura de Assuntos Económicos da Santa Sé, um homem com uma sólida formação financeira e que contava com a total confiança do pontífice. Além disso, anunciava outras alterações no seio do IOR: "Menini, De Strobel e monsenhor De Bonis serão afastados. De imediato. De Bonis será substituído por monsenhor Antonetti. Quero que todos os nossos vínculos com o grupo do banco ambrosiano sejam cortados o mais depressa possível."

O castigo dos iníquos Villot aceitou em silêncio estas disposições. Sabia que Marcinkus e o seu grupo tinham estado a utilizar as finanças do Vaticano durante anos. Não era assunto seu, ele tinha-se apenas limitado a olhar para outro lado. O segundo ponto da ordem do dia era o futuro do cardeal Baggio. Baggio iria para onde o mandasse, não havia discussão possível.

Apesar disto, o Papa comunicou ao seu secretário de Estado as outras alterações que tinha planeado, as quais incluíam a substituição imediata de todos os presumíveis maçons do Vaticano por homens da confiança do Papa. Seriam destinados a postos de segunda fila e as suas actividades seriam supervisionadas por "católicos verdadeiros". O cardeal Pericle Felici seria o novo vigário de Roma, substituindo o cardeal Ugo Poletti, que substituiria o cardeal Benelli como bispo de Florença. Benelli seria o novo secretário de Estado substituindo o próprio Villot, cuja renúncia deveria ser apresentada com a maior brevidade possível e que regressaria a um merecido retiro na sua França natal. O cardeal pareceu encarar a notícia bastante mal, embora o seu protesto fosse feito em termos muito mais respeitosos do que os de Baggio.

O remate para Villot foi a confirmação de que o Santo Padre receberia a comissão norte-americana sobre o controlo de população a 24 de Outubro. Esta delegação do Governo dos Estados Unidos tratava de modificar a posição da Igreja sobre a pílula anticonceptiva, algo a que o Papa não colocava muitas objecções.

A reunião com Villot terminou às 19.30. Depois, o Papa retirou-se para orar e tomou uma refeição ligeira, servida pela irmã Vincenza, sua cozinheira e governante, há muitos anos. Às 21.30, depois de cear e ter visto as notícias da televisão, o Papa, que parecia estar de bom humor, despediu-se da irmã Vincenza e dos seus assistentes: "Buona notte. A domani. Se Dio vuole." (Boa-noite. Até amanhã. Se Deus quiser.)

A morte do Papa Na manhã seguinte, a irmã Vincenza, seguindo a sua rotina habitual, bateu à porta do Papa às quatro da manhã e deixou um tabuleiro com café junto à porta. Meia hora depois, quando voltou a passar, o tabuleiro estava intacto, o que a religiosa achou muitíssimo estranho. Insistiu na sua chamada, pensando que o pontífice tinha continuado a dormir. Ao não obter qualquer resposta, decidiu entrar.

A cena que viu a seguir não poderia ter sido mais impressionante. A luz estava acesa e o Papa estava sentado na cama aparentemente revendo uns papéis. De facto, tinha até os óculos postos. Contudo, ao aproximar-se, a religiosa mal pôde conter uma exclamação de horror. Na cara do pontífice desenhava-se um esgar macabro e grotesco, os seus olhos, muito abertos, pareciam sair das órbitas. Os inimigos do Papa tiveram o seu "milagre", o pontífice tinha morrido.

O melhor que pôde, a freira correu em busca do padre Magee, um dos assistentes do Papa. Depois de comprovar que o Papa tinha morrido, telefonou ao cardeal Villot, que fez uma pergunta que surpreendeu um pouco o jovem sacerdote: "Mais alguém sabe que o Santo Padre morreu?" Mais ninguém o sabia, apenas ele e a irmã Vincenza. Poucos minutos depois, Villot surgiu todo aperaltado, desperto e impecavelmente vestido com todos os seus adornos de cardeal.

A Santa Sé começou então uma campanha confusa de mentiras misturadas com meias verdades acerca da morte do Papa, que levantaram as primeiras suspeitas de assassinato. E não era porque, como já vimos, não houvesse inimigos suficientemente poderosos e com motivos bastante sérios dentro do Vaticano para recorrer à mais terrível das soluções. De imediato, um atentado contra o Papa no meio da praça de São Pedro era impensável. A morte tinha de ser executada de modo aparentemente acidental, sem investigações nem ansiedade para a Igreja. A melhor maneira de planear um hipotético atentado contra o Papa era mediante um veneno que depois de administrado não deixaria nenhum sinal exterior. O autor devia ser, além disso, uma pessoa completamente familiarizada com a rotina do Vaticano. Neste sentido, a atitude do cardeal Villot foi qualificada por diversos analistas como chamativa. Quando chegou junto ao corpo, junto à cama do Papa, encontrava-se o frasco com o fármaco que o Luciani tomava para os seus problemas de pressão arterial baixa. Villot guardou-o na sotaina e arrancou das mãos do cadáver os apontamentos sobre as designações de que tinham estado a conversar na tarde anterior. Esvaziou o seu gabinete de papéis e até levou os seus óculos e chinelos. Nenhum destes objectos voltou a ser visto.

Uma vez isto feito, o cardeal chamou por telefone o dr. Buzzonetti, o médico do Papa e começou a administrar a extrema-unção ao cadáver. Villot impôs de imediato o voto de silêncio à irmã Vicenza enviando-a de volta para o seu convento em Veneza e instruiu todos para que a morte do pontífice fosse silenciada até que ele ordenasse o contrário. O dr. Buzzonetti chegou antes das 06.00 e deu como causa de morte uma oclusão cardíaca ocorrida perto das 10.30 da noite. Segundo o médico, o falecimento tinha sido instantâneo e o pontífice não tinha sofrido, embora ninguém o pudesse dizer a julgar pelo rosto do cadáver.

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