Grande, grande dia o de hoje!
E hoje! É hoje, 12 de janeiro de 2018, dia igual ao do primeiro dia de aula de Rudy Bridges, em 1960. Lembro, Rudy, de 6 anos, entrava na escola primária de Nova Orleães, Louisiana, até então reservada a meninos brancos. Vieram polícias da capital Washington para patrulhar o bairro e quatro guarda-costas para fazer entrar Rudy na escola e para a levar de volta a casa, à tarde. À porta, uma multidão de pais brancos insultava a menina. Lá dentro, no primeiro dia, um silêncio: nenhum coleguinha apareceu. No dia seguinte, um pai branco trouxe a filha, logo outros se seguiram e o mundo retomou a marcha.
O grande contador da América em capas de jornais, Norman Rockwell, desenhou Rudy, naquele dia, de perfil como quem faz caminho. Vestidinho branco e soquetes também brancos, a dizerem com o laço que lhe enfeitava os totós. "Ela nunca chorou, nem choramingou, marchou como um pequeno soldado", contaria um dos quatro armários que na gravura de Rockwell emolduravam Rudy, no dia em que ela conquistou a sua lua (um salto enorme para todos nós).
O espanto nunca será bastante sobre o que às vezes faz o mundo emperrar. Leram onde ficava a escola de Rudy? A menina dos totós não podia, pois, entrar nela porque era negra - e isso foi em Nova Orleães! Em 1960, havia um quarto de século que Mahalia Jackson tinha gravado Take My Hand, Precious Lord e na Louisiana não havia um danado cristão, branco ou preto, que não se emocionasse pelo Natal ouvindo-a. Há muitos anos estive em Nova Orleães, na igrejinha batista de Mount Mariah, no bairro Black Pearl.
Fui lá numa romagem a mim. A minha mãe também me levou pela mão no primeiro dia da minha escola com negros e brancos - e lembro-a muitas vezes a ouvir um dos muitos gospels da cantora. Mahalia Jackson começara a cantá-los, com a idade que teria Rudy, a conquistadora, naquela igrejinha de madeira e do tamanho de uma garagem. Pois nem o incomensurável tamanho daquela nobre filha de Nova Orleães conseguiu impedir a ideia tola de que não somos todos iguais...
O mundo para avançar contra ideias tolas precisa de passos pequeninos como os de Rudy. No simples está o mover fundo dos homens - daí o dia glorioso que é hoje, 12 de janeiro de 2018. Tantas vezes as bancadas dos estádios saudaram glórias, hoje é dia de saudar uma bancada: em Jeddah, Arábia Saudita, às 17.00 locais, a equipa do Al-Ahli (quê?) vai jogar contra o Al-Batin (quê?) e talvez se aproxime do primeiro lugar, agora ocupado pelo Al-Hilal (quê?)... Mas queremos lá saber quem ganha e por quantos, apesar da simpatia que possamos ter pelo Al-Ahli por já ter sido treinado pelo nosso Luiz Felipe Scolari. Os defesas subirão pelas alas ou irá afunilar-se o jogo? A bola correrá ou é para refrear? Leitor, mas que raio interessa hoje a bola em Jeddah?! Tudo se passa fora das quatros linhas, naquele bocado de bancada em que duas ou 500 mulheres vão fazer de Rudy, 6 anos, em 1960: aí, o mundo rolará.
Na Arábia Saudita, em dezembro de 2014, uma mulher já tinha tentado entrar num estádio para assistir a um jogo de futebol, e foi presa. Na capital, Riad, em 2014, na final da Liga dos Campeões da Ásia, o clube local Al-Hilal defrontou o Western Sydney Wanderers e estes ganharam por 1-0 - e ainda bem porque nas bancadas só foram permitidas australianas. Nem uma saudita, como acontece nos campos de futebol sauditas desde o Paleolítico até hoje. Mas hoje lá estará aquele pedaço de bancada, ainda só mulheres, ainda todas tapadas com lenço - mas sauditas num estádio a ver futebol e a gritar por golos. Glória!
O reformista Mohammad bin Salman, príncipe herdeiro saudita, decidiu que três estádios, em Riad, Jeddah e Dammam, poderão ousar ter uma secção com mulheres nas bancadas. A primeira a entrar em jogo é hoje. Esta audácia foi testada no ano passado, no dia nacional e sem futebol, num estádio de Riad onde as mulheres puderam entrar. A experiência correu bem - por Alá, mulheres num estádio! (meu Deus, uma pretinha a estudar com uma branquinha!) - e vai ver-se o que se passa hoje. Acreditem, é uma revolução maior do que o videoárbitro.
Em 1990, só conto isto porque foi há 28 anos, já deve estar prescrito, agarrei-me a um polícia, ambos aos saltos e aos gritos, a celebrarmos um crime. Canto esquerdo do Benfica, toque na cabeça loira de um encarnado e a bola foi para o braço negro de Vata. Golo contra o Marselha e ida à final. Sim, golo-crime mas soube-me tão bem, então. Admito, porém, que foi nada comparado com a gloriosa jornada hoje, em Jeddah. Duas ou 500 mulheres sauditas abrirão a porta por onde entrará, pujante e imparável, a normalidade.
Ontem, o jornal britânico The Guardian entrevistou a saudita Ghadah Grrah, adepta do Al-Hilal, clube que jogará com o Al-Ittihad, no sábado. Grrah não quer falhar o jogo por nada, nunca esqueceu o desespero de não ter podido ver ao vivo o seu clube, quando havia australianas na bancada, na tal final asiática de 2014. Agora, com esta conquista já próxima, ela diz: "Se houver mulheres no estádio, ao lado do seu marido, pai ou irmão, os jogadores estarão mais motivados." Reparem, ela diz que as mulheres, a estarem com um homem, será só com os legítimos marido, pai ou irmão - diz isso para tranquilizar as autoridades. Mas já reivindica que as mulheres saiam do cantinho isolado para onde serão hoje ainda remetidas. O que têm de bom as conquistas é que se fica com apetite ao comer...
Assim seja. Também eu passei a ter um patamar superior para os meus crimes nos estádios. Quero um dia celebrar um golo roubado, em Riad, agarrado a uma desconhecida saudita. Inshallah!