Grace Jones total no bater do coração do Doclisboa
Dez anos de filmagens e material nunca dantes visto sobre a lenda da pop art Grace Jones. Aliás, material nunca dantes visto num documentário sobre a intimidade de um músico. Grace Jones - Bloodlight and Bami, de Sophie Fiennes, chega ao Doclisboa depois de uma passagem apoteótica no Festival de Toronto, onde cedo se tornou o documentário mais aclamado e com direito a uma projeção que meteu ovações entre as cenas e um mar de gente a dançar na sala.
Sophie Fiennes, irmã do ator Ralph e realizadora de O Guia de Ideologia do Depravado (2012), assina este documentário sem fio narrativo e completamente solto. Uma câmara que persegue Miss Jones durante os ensaios do álbum Hurricane, em algumas viagens em Paris e numa tour, bem como num concerto num teatro de Dublin.
Fiennes abdica de cabeças falantes e prefere deixar as coisas acontecer. E acontece muito! O filme está cheio do carisma de Jones, mulher sem idade que não se importa de aparecer nua a sair de um duche ou de mostrar o seu mau génio quando enfrenta a incompetência dos outros. Uma coisa fica certa: Grace Jones é uma diva, com birras e caprichos mas também com um sentido de humildade tremendo quando está na Jamaica, ao lado da família. Aí a câmara não se desvia para a enquadrar, ela é apenas mais uma do clã.
O que fica é um retrato de uma mãe, de uma avó, de uma amante. Um retrato de muitas Graces Jones, todas elas verdadeiras e com um sentido de joie de vivre honesto. Há um momento em câmara lenta e alucinada em que a vemos a dançar. É a meio do filme e percebemos, mais do que nunca, essa ideia de "espírito indomável". Percebemos também como o seu som nasce. É raro num documentário alguém conseguir captar aquele momento preciso da inspiração artística.
Sophie Fiennes está perto da música e dos ritmos de Grace Jones e descortinamos sem esquemas nem manipulações uma certa pureza do desejo musical deste ícone. Uma proximidade que nos contagia, que nos faz gostar muito mais da artista, alguém capaz de protestar contra um produtor de televisão pela encenação que escolheram num playback onde as bailarinas parecem prostitutas num bordel.
A verticalidade de Grace tem uma graça que passa para o espectador, muito para além da preguiçosa opção de a retratar como um extraterrestre. Torna-se claro aqui que não há mais nenhuma artista no mundo como a "amazing Grace", mas o filme serve-se da cumplicidade da cantora e tem uma qualidade tóxica crua, em especial quando a intimidade dela se trespassa como um segredo que nos é dado a guardar. Afinal, como um private show de Miss Grace Jones... A sessão no Doclisboa é esta noite, às 21.30, no São Jorge, na abertura da secção Heart Beat.
O melhor do fim de semana
Outra lenda da música também terá hoje destaque, Marianne Faith-full. O filme chama-se Faithfull (passa na Culturgest, às 16.15, e repete no dia 29) e tem como realizadora Sandrine Bonnaire, a atriz mítica de filmes como Aos Nossos Amores, de Pialat. Um objeto de fã? Porque não?
Amanhã todos os caminhos vão dar a Diário das Beiras (18.30 na Culturgest), de João Canijo e Anabela Moreira, uma sequela de Portugal - Um Dia de Cada Vez (2015), coleção de retratos de portugueses atirados para o isolamento na Beira Alta e Beira Baixa. Talvez seja um filme que nos diz muito sobre quem são as verdadeiras vítimas do flagelo dos incêndios...
Este par de documentaristas filma particularmente bem os idosos que nada têm, sobretudo aqueles que cantam para espantar os males. É mil vezes superior a Portugal - Um Dia de Cada Vez e as imagens que Anabela Moreira capta têm sempre um fascínio honesto por todas aquelas rugas.