Graça Morais

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!Tenho um enorme amor ao meu País, mas em especial a estas terras que eu conheço e que lutam sempre com imensas dificuldades, a vários níveis. Sinto que é importante, mas mesmo muito importante, que uma Universidade atribua um Honoris Causa a uma mulher e a uma artista, porque não é muito comum as universidades fazerem-no".

Graça Morais disse-o após receber a distinção da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. Com estas palavras, tão sentidas, a pintora não apenas exprimiu o seu agradecimento pelo ato de justiça que tinha recebido, mas também deixou claro que a criação pela arte, seja em que domínio for, constitui o maior preito de homenagem à terra onde nascemos, às suas raízes e às suas gentes. O patriotismo é exatamente a capacidade de amar, dando valor às bases e fundamentos donde provimos. E que melhor prova disso senão a obra da artista ao longo de uma vida de entrega à pedagogia e à criação. Quando se ensina aprende-se e quando se cria é-se criado. Com extraordinária coerência, Graça Morais traz-nos na sua obra uma permanente entrega aos outros, às suas tradições e à natureza. E é o reino maravilhoso de Torga a grande matéria-prima. "Um quadro é sempre um lugar da minha maior intimidade. Estou lá toda" - disse a pintora. E, como afirmou José-Augusto França, perante os valores inéditos da religião e do mito, a pintura da artista é forte e seca. Há uma especial originalidade, que resulta do confronto com a aspereza do meio, ora dura ora serena, ora lírica, ora dramática, terra e luz. É a mulher que se exprime, solidária com as outras mulheres, corajosamente empenhada num apelo constante à dignidade, ciente de todas as violências e injustiças, que denuncia e combate.

Como afirmou Manuel Hermínio Monteiro sobre "As Escolhidas": "são mulheres a quem a dureza do meio, a procriação, a manutenção do lume, a guarda da memória e as claraboias dos quartos obscuros, outorgaram uma vida legível nos traços dos seus rostos. Habitualmente falam pouco. Observam com perspicácia cada interlocutor. Raramente se queixam. Conhecem de cor os feitios da terra desde a geada dos lameiros à secura das searas. (...) Sabem o mistério das sementes que debulham, escolhem e semeiam com idêntica esperança". Seria difícil definir tão bem um tema tão querido e sentido por Graça. A proximidade humana leva-a a identificar-se com as mulheres que conheceu e conhece, a começar na memória de sua mãe. E a verdade é que se trata de uma presença inconfundível, a marca que a pintora imprime nas suas obras leva-nos a identificar temas e pessoas, memória e lugares. E, como Sílvia Chicó bem viu, as deusas das montanhas e as "metamorfoses" são chave de um enigma. "Embora o mecanismo das suas metamorfoses seja surpreendente, até para a autora, as personagens que realmente estão representadas, a sua identidade, é algo que contém alusões a factos e evocações, que só ao mundo secreto da artista pertencem".

A metamorfose é a grande metáfora, em que a natureza insere a representação da humanidade numa relação agreste e plural. É o mistério da memória a funcionar: os caretos afugentam ou esconjuram, o que permite compreender a força do destino. E no diálogo com Agustina, à sombra de Ovídio, ou com Sophia de Mello Breyner, com Orpheu e Eurídice, percebemos bem que "sempre acabamos por ser o que somos na pluralidade dos nossos sonhos". E que é a metamorfose, como Edgar Morin não se tem cansado de dizer, na celebração deste fecundo século de vida? É aquilo que faz de nós alguma outra coisa. É entender a vida como movimento. E em Graça Morais essa perspetiva é evidente na revelação do estranho mundo em que vivemos. Na exposição "Tudo o que eu quero", agora em Tours, "A caminhada do Medo" (2011), é, assim, atual e profética. Até uma máscara parece lembrar a pandemia. É o encontro do compromisso com a força e a dignidade


Administrador executivo
da Fundação Calouste Gulbenkian

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