"Governo não tem vontade política para cumprir o que diz a lei da segurança privada. A ilegalidade vence a lei"

Foi bastonário dos advogados, presidente da Assembleia Geral do Sporting, tem comentário televisivo semanal e é um dos mais mediáticos advogados do país. Lidera também a Associação de Empresas de Segurança, instituição que tenta ver aprovada pelo Governo a regulamentação de um decreto-lei aprovado em 2019. Um atraso que motiva concorrência desleal e, ao mesmo tempo, "ajuda" as próprias entidades públicas a não cumprir a lei.
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Há um decreto-lei aprovado em 2019 direcionado às empresas de segurança privada que ainda espera regulamentação. Podemos dizer que este setor vive na ilegalidade?
Este setor vive um bocadinho como o país vive. Vive o enlevo das suas leis magníficas e vive o tormento do seu incumprimento. Afinal, o que é que esta lei, que já era uma lei mais antiga, de 2013, e que depois foi alterada em 2019, trouxe de novo? Trouxe um remédio para um problema. E qual é o problema? O problema é que existe muito trabalho não declarado na segurança privada.

Ou seja, muita ilegalidade...
O que se verifica é que há muito trabalho não declarado. Este é o problema. O trabalho não declarado consiste em haver pessoas, homens e mulheres, que, exercendo a atividade de vigilantes, trabalham horas que não são declaradas. Não são declaradas e, portanto, não são pagas. E relativamente às quais, não são feitos os devidos descontos para a Segurança Social e os descontos fiscais. Isto é, em vez de trabalhar X horas e receber essas X horas, e fazendo-as ao fim de semana receber o equivalente ao trabalho ao fim de semana, fazendo-as à noite, recebendo o equivalente ao trabalho à noite, não. Tudo isso é disfarçado, simulando que o trabalho é menos, obrigando a trabalhar a mais, pagando menos do que aquilo que era devido. Infelizmente, há uns fenómenos patológicos associados a esta conduta, que consistem, por exemplo, em pessoas que, por vezes, não querem dar a cara, de que há pagamentos em dinheiro, pagamentos de economia informal, pagamentos que não são tributados.

O que fez a associação?
Decidimos que tínhamos de acabar com esta situação e preconizamos três medidas, que muito rapidamente se anunciam e que a Assembleia da República aceitou. A primeira é proibir a venda de serviços com prejuízo. Ou seja, se alguém, por exemplo, produz um parafuso por um euro e o vende sistematicamente no mercado por 50 cêntimos, como é que isto é possível? Não está em período de promoção, não está a fazer a promoção do produto, não está em época de saldos. Faz sempre. E nós, na vigilância privada, na segurança privada, tivemos um episódio interessante em 2012. A Autoridade para as Condições de Trabalho fez um estudo e disse assim: para uma empresa contratar vigilância privada 24 horas por dia durante todo o mês, portanto sete dias por semana, 24 horas por dia, há um custo mínimo de X. Custo mínimo que corresponde ao pagamento dos encargos com o trabalho. Isto em 2012. Depois veio a Autoridade da Concorrência e disse que não pode haver este tipo de estudos, nem este tipo de recomendações, porque isto pode violar a concorrência. Mas a verdade é que temos, em 2022 e em 2021, não tenho ainda dados de 2023, entidades que apresentam preços inferiores àqueles que a Autoridade das Condições de Trabalho considerava ser o mínimo em 2012. Há entidades que se candidatam a concursos e que, aliás, os ganham com facilidade, porque apresentam preços mais baixos. Ao apresentarem preços mais baixos, ganham os concursos. Porque conseguem fazê-lo com a tal venda com prejuízo.

Portanto, forçam a contratação abaixo do preço de mercado.
Claro. E violando a lei. Porque a lei diz, claramente, com todas as letras, que é proibida a venda com prejuízo. O problema é que não há nenhum antídoto. Nomeadamente, o antídoto seria este: nos programas de concurso, isto é, quando, por exemplo, um ministério, quando uma entidade, uma câmara municipal, um hospital, uma universidade, punha a concurso a compra de servidos de segurança privada, devia pedir, assim como pede a prova que a empresa não deve ao Fisco, a prova que a empresa não tem dívidas à Segurança Social, por aí fora, a prova de que aquele preço não constitui a venda com prejuízo. E era isso que queríamos que o Governo fizesse, mas o Governo não é capaz de fazer.

Não há uma fiscalização a esses concursos, a essas decisões?
Não.

Não há uma entidade que deveria fazer esse trabalho?
Há. Há a Autoridade para as Condições de Trabalho, por um lado, a PSP, por outro, a própria Autoridade Tributária, por outro. Aliás, outra das inovações da lei, a segunda inovação da lei, foi criar equipas multidisciplinares para fiscalizarem estas condutas.

Pelos vistos nunca funcionaram.
Em Portugal é assim. Diz-se, já criámos os oficiais de ligação, já criámos um departamento, já criámos um regulamento. Não se criam as equipas propriamente ditas. Quer dizer temos, regra geral, um bocado mais de música do que de letra. E, portanto, estas equipas que estão previstas na lei também, não funcionam.

CitaçãocitacaoHá muito trabalho não declarado. O trabalho não declarado consiste em haver pessoas, homens e mulheres, que, exercendo a atividade de vigilantes, trabalham horas que não são declaradas. E relativamente às quais não são feitos os devidos descontos para a Segurança Social e os descontos fiscais.

E já alguém explicou porque é que isto não avançou? Porque é que a regulamentação não foi feita? O Governo já vos disse alguma coisa?
O Governo diz-nos muito pouca coisa. Aliás, este ano, já estamos em setembro, ainda nem sequer foi convocado o Conselho de Segurança Privada. Temos insistido, mas ainda nem isso conseguimos. O Governo diz-nos pouca coisa e quando diz, diz que está a fazer, que tem falta de meios, que está quase, que está previsto, que vem o PRR, que vêm outras coisas, que também começam por P ou começam por outra coisa qualquer. A verdade é que não faz. E essas equipas tinham um trabalho relativamente facilitado, porque quando pensamos em inspeção, pensamos assim em algo de aparecer em muitos carros e fiscalizar, mas ali não. Era uma coisa um pouco diferente. Era pegar quase numa folha de Excel, num programa informático, numa informação que existe até quase em fonte aberta, e dizer assim: esta empresa tem X trabalhadores que têm de estar com vínculo de contrato de trabalho com essa empresa. Tem X horas de segurança privada que proporciona aos seus clientes mil horas, duas mil horas, três mil horas. Faz essas horas com estes trabalhadores dentro destes períodos de trabalho. É perceber a quanto isto tem de corresponder em salários, considerando o trabalho extraordinário, o trabalho noturno, etc., e a quanto isto tem de corresponder em cargos sociais. Vamos sentar-nos numa mesa, vamos buscar estes elementos, vamos introduzi-los num sistema informático e vamos tirar conclusões. É isso que penosamente se tem estado a tentar fazer. E depois criámos o outro vértice do triângulo, o terceiro, que é consignar responsabilidade solidária de quem contrata aos serviços de segurança privada, caso a empresa de segurança privada não cumpra com os seus trabalhadores, nomeadamente, e com o Fisco, que é para ver se quem vai contratar não vai só no engodo do preço. Mas quem vai contratar não irá só no engodo do preço, só fará isso quando souber que pode efetivamente ser detetada uma situação de ilegalidade e ele sim pode ser chamado à responsabilidade. O tal senhor que foi o responsável por contratar uma empresa que vende abaixo do custo, que vende com prejuízo. Portanto, enquanto atualmente só temos a lei e a lei está muito bem. Aliás, em Portugal é muito assim. As leis em regra estão muito bem, as práticas é que nem por isso.

E, portanto, esta prática, ou a falta dela, a falta de regulamentação desde 2019, provoca uma inércia que aproveita a quem?
Aproveita às empresas incumpridoras. Porque, repare, fala-se muito em concorrência e é bom para o mercado que haja concorrência, portanto, que os preços sejam distintos e que tendencialmente, com isso, se consiga baixar o preço. Concorrência é um pouco para isso. Agora, só há verdadeira concorrência se se cumprir a lei. Não posso ir fazer uma corrida de 100 metros nos Jogos Olímpicos e um dos senhores leva uns sapatos de chumbo, em princípio, vai perder a corrida por mais atlético que seja. Concorrência só existe com o cumprimento da lei. E hoje, o que a lei diz que é proibido, portanto, a venda com prejuízo, não está assegurado. E é manifesto, toda a gente sabe, todos, como agora se diz nestes anglicismos, todos os players do mercado, isto é, quem contrata, o Estado, os sindicatos, as associações, as empresas, sabem que isto é exatamente assim. Mas enquanto o crime for compensando, enquanto não houver capacidade de deteção e de sancionamento, as coisas irão continuando assim. E infelizmente o Governo e a Assembleia da República, que a Assembleia da República também tem responsabilidade, mas o Governo devia ter, efetivamente, o estímulo e o tiro de partida, mas não tem manifestado qualquer vontade política para cumprir com aquilo que a própria lei diz. E isto é o descrédito profundo das instituições, que se revela aqui e se revela em muito mais outros sítios e cenários, mas aqui temos uma boa lei que não se consegue impor. A ilegalidade vence a lei. Isto é uma coisa perigosa, mas é o que acontece muitas vezes.

A associação tem conhecimento se há muitos cidadãos, muitas pessoas, a exercer a segurança privada sem a devida licença que é obrigatória e passada pelo Ministério da Administração Interna?
Não temos a noção de quantas pessoas poderão estar a praticar esse crime. Aquilo que procurámos fazer e que também está consagrado na lei, é que todo o vigilante que exerce a sua atividade tem de ter um contrato de trabalho escrito com a sua entidade patronal. Tem de estar devidamente certificado com o cartão profissional, mas para exercer atividade tem de ter um contrato de trabalho escrito com a sua entidade patronal. Infelizmente, temos tido notícias de que há pessoas que exercem uma atividade, digamos assim, de vigilância privada, que não pode ser considerada assim, porque verdadeiramente não é de vigilância privada. Não basta pôr uma pessoa à porta, a olhar e a ver o que se passa para dizer que temos um vigilante privado, como também não podemos pôr uma pessoa num carro, escrever lá táxi num papel A4 e o dono do carro passa a ser motorista de táxi. Isto é uma profissão regulada. Infelizmente sabemos que há violação dessas normas, mas não temos uma noção estatística sobre quantas pessoas poderão estar a incorrer nessa prática ilegal.

Fala nos contratos de trabalho. O setor tem um contrato coletivo, há um acordo das empresas. Como é que funciona e qual é a estipulação que isso tem?
Temos até um contrato coletivo base. Existem dois contratos coletivos, sendo que aquilo que celebrámos tem tido portarias de extensão. É um contrato que permitiu, há uns anos, até fazer um aumento que em três anos correspondeu a 20% de aumento. Sensivelmente, grosso modo, 20% de aumento em três anos. E, portanto, temos procurado muito manter viva a contratação coletiva e temos, com a plataforma sindical, conseguido sempre chegar a acordo. Há vários anos que temos tido sucesso na negociação coletiva e gostaríamos que continuasse assim.

Qual é o ordenado médio de segurança privada?
O ordenado médio, infelizmente, muitas vezes nem atinge sequer os mil euros. Por isso, temos feito um esforço grande para ter esse aumento mais robusto, mais significativo há alguns anos, que se prolongou pelos tais três anos. Mas há um esforço muito grande das empresas para conseguir melhorar as condições de trabalho. Este ano fala-se nestes aumentos de 4% ou 5%. Aliás, o próprio Estado e o acordo social vai muito nesse sentido. Agora, repare, isso seria muito mais fácil se todos os concorrentes cumprissem a lei, se toda a gente cumprisse a lei seria muito mais fácil aumentar os trabalhadores. Agora, quando as empresas que cumprem se veem confrontadas com as que não cumprem e que, ao não cumprirem, ganham muitos do concurso, nomeadamente os lançados pelo Estado, fica difícil.

Há a ideia de que muitos desses concursos são do próprio Estado. O próprio Estado contrata pessoas que não cumprem a lei?
Talvez se tivéssemos de ir à procura de um protagonista que faça isso sistematicamente, o Estado estaria em primeiro lugar. Porque o Estado tem muito a síndrome de olhar para o preço. O que vale é o preço. Temos de olhar para o preço. É o preço mais baixo, nós contratamos. Mesmo que sejam proscritas algumas normas legais, nomeadamente aquela crucial, uma norma inultrapassável, que diz que é proibida a venda com prejuízo, mas essa norma, infelizmente, continua a ser letra morta. E enquanto a norma estiver a dormir, como uma espécie de bela adormecida, é uma coisa bem feita, mas está a dormir. E faltava um príncipe qualquer, com caráter institucional, que lhe desse vida. E é isso que temos tentado junto do Governo, mas, como sabe, os nossos governos, em geral, são extremamente inertes a fazer aquilo que muitas vezes era a sua responsabilidade pura.

CitaçãocitacaoO ordenado médio, infelizmente, muitas vezes nem atinge sequer os mil euros. Por isso, temos feito um esforço grande para ter esse aumento mais robusto, mais significativo há alguns anos, que se prolongou pelos tais três anos.

Mas já falou com o ministro da Administração Interna, já pediu uma audiência, já reuniu, já pressionou?
Muitas vezes. Andamos sistematicamente nisso. Sobretudo numa reunião, que é a reunião do Conselho de Segurança Privada, que é uma entidade também prevista na lei, que é um órgão de aconselhamento do ministro da Administração Interna. Ou, neste caso, da secretária de Estado em que ele delegou esta competência. Isto é quase já um refrão da nossa parte, é quase um estribilho de uma canção, estamos sempre a pedir a mesma coisa. O que é que nos é dito? É-nos dito que o sistema de informação e de gestão da Segurança Privada está a ser aperfeiçoado para auxiliar essas inspeções multidisciplinares, que o sistema está a ser adaptado para isso. O que seria ótimo e que já há verbas do PRR para esse efeito. Infelizmente, ainda só temos a promessa e a expectativa, mas insistimos sempre que temos essa oportunidade, em pronúncias públicas, em reuniões com o ministro e com a secretária de Estado, que é quem tem esta responsabilidade atualmente dentro do Ministério da Administração Interna. Não é a falta de pedidos, de insistências, de apelos, de denúncias. Inclusivamente, levámos ao Conselho de Segurança Privada um enorme volume de contratos que têm a ver com contratação pública, onde manifestamente tudo indicia que a venda que lá é feita, é feita com prejuízo. E foi aí que detetámos também muitos contratos cujo valor está inferior àquele que a autoridade das condições de trabalho em 2012 dizia que era o valor mínimo. Isto é, há quem em 2021 e 2022 consiga estar abaixo dos valores que a ACT considerava mínimos em 2012.

Vou presumir que as empresas que fazem parte da Associação a que preside não são essas que estão em incumprimento, que aceitam contratos abaixo do preço e que vendem com dívida. Presumo bem?
Pelo menos é essa a nossa convicção. Inclusive, lançámos, para procurar garantir isso mesmo, a chamada certificação em compliance laboral e só admitimos na Associação quem esteja certificado em compliance laboral. E, portanto, essa é a nossa divisa, essa é a nossa militância. Seria muito frustrante se viéssemos a descobrir que algumas das empresas filiadas da Associação teriam práticas que a Associação condena. E, portanto, partimos do princípio e temos a convicção profunda de que as empresas que fazem parte da Associação se conformam com as práticas adequadas e corretas, que são o cumprimento da lei e o cumprimento do contrato coletivo de trabalho.

Como é que antevê a relação com a PSP no aeroporto de Lisboa e do Porto, nos aeroportos portugueses, depois da saída do SEF?
Obviamente que a segurança privada não teve nada a ver com as vicissitudes do SEF. Creio que a relação será boa e vou dizer-lhe porquê e sem tomar partido sobre as polémicas do SEF, o que está decidido, está decidido. Quem tem a tutela da segurança privada é a PSP. O departamento de segurança privada da PSP é quem tem a tutela da segurança privada, quem faz em primeira linha a fiscalização, quem tem o SIGESP, o tal sistema de informação. Voltando à questão da PSP, há um histórico muito relevante de boa convivência entre a segurança privada e a Polícia de Segurança Pública. Na sua complementaridade, que aliás se vê em muitos sítios, nos espetáculos desportivos, nos espetáculos musicais, bem como em muitos outros eventos, como foi a jornada da juventude, e depois em ambientes menos significativos, em termos numéricos e quantitativos, mas há um histórico de muito bom relacionamento que faz pressagiar que as coisas irão correr muito bem.

Qual é, chamemos-lhe assim, a delegação de competências que permite que um cidadão que trabalha numa empresa de segurança privada, provavelmente representada pela sua associação, porque são das maiores, nos reviste no aeroporto, e que essa revista seja feita por alguém que não é uma autoridade?
Faz todo sentido porque essa competência vem da lei. Isto é, o Estado português entendeu que a par das forças de segurança pública, nomeadamente a PSP, GNR, deveria também ser dada à segurança privada um conjunto de prerrogativas que lhe permitem alguma intrusão na vida dos cidadãos. Isso, aliás, foi objeto de grande discussão. Estas coisas não nascem feitas, não é? E, portanto, são objeto de grande discussão. Por exemplo, se a revista por palpação deve ser possível, se não deve ser possível, se só deve ser possível com equipamento eletrónico, se não deve ser possível com equipamento eletrónico, mas a lei acabou por dizer que há alguns permitidos, que haja alguns poderes que são concedidos ao vigilante privado, que são todos estabelecidos na lei, que lhe permitem, nomeadamente, fazer a deteção de materiais perigosos quando passa no aeroporto ou uma revista manual. De onde nasce essa fonte, de onde nasce esse poder, essa legitimidade, nasce da lei. E porque é que está na lei, na minha opinião? Porque a experiência da atividade de segurança privada em Portugal é extremamente positiva. Quer dizer, a sua atividade complementar das forças de segurança pública, há prerrogativas que as forças de segurança pública têm que a vigilância privada não tem, que a segurança privada não tem. Imagine, por exemplo, um grande espetáculo desportivo, um grande espetáculo musical, um aeroporto, onde tem atualmente os vigilantes e as vigilantes e teria de ter elementos da Polícia de Segurança Pública, que desde logo não existem, não há efetivo sequer para isso. Portanto, o Estado estruturou-se de maneira que a segurança privada seja uma parte muito relevante da segurança nacional, da segurança do país, dentro do seu quadro de competências, atribuindo alguns poderes a quem exerce a atividade de vigilância privada, nomeadamente esses que referiu. Portanto, é uma legitimidade que nasce da lei como nasce, aliás, das autoridades, das forças públicas.

E admite que essa transferência de poder, digamos, leva em muitos casos a abusos de poder?
Creio que não. Sinceramente, não temos essa experiência. Poderia haver muitas queixas, muitas reclamações, na verdade, quer por via dos sindicatos, quer por via dos livros e muitas reclamações, quer por via da vinda até da repercussão pública que os casos poderiam ter. Acho que o comportamento do pessoal da segurança privada tem sido extremamente apreciado e elogiado, nomeadamente nos aeroportos. A não ser que o Pedro tenha informações no sentido contrário.

Há alguma falta de pessoal para as empresas de segurança privada, até pelos vencimentos que pagam?
Não tem acontecido muito. De facto, por vezes, os salários que se pagam na atividade de segurança privada não são muito atrativos e é uma atividade difícil, é uma atividade de responsabilidade. Depois, por outro lado, a atividade de segurança privada é muito de mão de obra intensiva, a componente de mão de obra é muito relevante na vigilância privada. Por isso é que não é difícil calcular se a venda é feita com prejuízo ou não é, se assim, houvesse vontade de o fazer. Portanto, à medida que o salário mínimo sobe, obviamente que quando se esbate a diferença entre o salário mínimo e o salário que é pago em termos médios à segurança privada, evidentemente se torna uma atividade menos atrativa. Não é caso único do país, mas é um caso do país. E o antídoto para isso tem de ser sanear o mercado, combater o trabalho não declarado e conseguir melhores condições, nomeadamente de pagamento para quem trabalha na atividade de segurança privada.

Mas sem a fiscalização é mais fácil as empresas pagarem, como disse há bocado, em dinheiro, sem declarar nada.
Claro, e repare, infelizmente, isso é um círculo vicioso. E tínhamos de o substituir por esta roda dentada que tinha estes vértices de responsabilidade solidária, afastamento de quem concorresse a violar a lei, nomeadamente de venda com prejuízo, inspeções eficazes. Só que temos uma roda desdentada, digamos assim. Precisamos que o ministro ou o secretário de Estado seja o dentista para a roda, porque isto é possível e já temos os instrumentos legais. Falta-nos agora pôr as coisas a funcionar. Não é caso único a falta de capacidade de implementar boas soluções, mas é desta que estamos a falar. E mais, esta inspeção é uma inspeção relativamente facilitada. Porque, repito, às vezes pensamos que temos de inspecionar, mas não temos carros, não temos pessoal, não podemos ir aqui, não podemos ir ali, precisamos de mais inspetores. Aqui é uma inspeção quase inteligente, até lhe chamamos inspeção inteligente, porque é muito feita a partir de elementos que se podem tratar informaticamente e que rapidamente poderão detetar desconformidades. Até nisso, a inspeção tem alguma vantagem.

Saindo agora da área da segurança privada, queria saber a sua opinião sobre a justiça, o atual estado da justiça, e até dos casos mais recentes, como a decisão relativa a Rui Pinto.
São duas coisas diferentes. O Rui Pinto é um caso muito específico dentro de uma ecosfera, digamos, da justiça, que é extremamente problemática. Se quiser, começo pelo caso do Rui Pinto. A lei portuguesa prevê o denunciante. Isto para não utilizarmos sempre os anglicismos. Na minha opinião, o que se passou com o Rui Pinto não o enquadra na figura do denunciante, porque o denunciante é alguém que, tendo uma relação com uma entidade, não tem de ser empregue por conta de outrem, pode ser um prestador de serviços, pode ser um fornecedor, mas que conhece, tem uma relação com uma determinada entidade, e deteta uma patologia, um crime, uma infração ou indícios de uma infração, dentro dessa entidade. Há pouco o Pedro perguntava como é que alguém da segurança privada pode fazer uma revista, porque a lei permite. Agora, o que não permite é que a cada cidadão, numa espécie de parceria público-privada atípica, se ponha a investigar se há ou não coisas criminosas. Não, isso é absolutamente condenável. Isso é crime. Tanto que ele foi condenado pela prática de vários crimes e teve "sorte", porque foi indiciado por muitos mais, mas porque cabiam dentro daquela dupla dimensão, por um lado ele ser menor, não ter ainda 30 anos quando os atos foram praticados, e serem crimes cuja pena de prisão não ia além de um ano de prisão e 120 dias de multa. Vamos ser claros, não há aqui nenhuma atividade de denunciante. Agora, na prática, pode haver alguém que vai assaltar a casa do vizinho e descobre lá dentro um cadáver e denuncia à polícia. Faz com isso descobrir um crime extraordinário, mas não vamos dar uma medalha no 10 de junho a este cidadão que descobriu um crime porque estava a assaltar uma casa. E muito menos dizer que agora vou assaltando casas até descobrir crimes, porque me arvorei em defensor da legalidade. Recordemos que foram devastados, por exemplo, e-mails da Procuradoria-Geral da República. Não sei se também se andava lá à procura de crimes. E, portanto, a questão é esta: às vezes, de uma conduta errada pode nascer um bom efeito. É evidente. Quer dizer, se alguém estiver a assaltar uma moradia com piscina e salvar alguém que se está a afogar, diz-se abençoado assalto, que ainda bem que o assaltante estava aqui e que era um nadador extraordinário. Bom, mas isso não justifica o assalto. Pode, depois no seu julgamento, aferir-se a conduta na sua globalidade e fazer-se ali uma apreciação da sua personalidade. Mas era bom que a sociedade portuguesa não se entusiasmasse com esta forma de investigar crimes através de crimes. Isso é que não pode ser. Isso seria uma muito má prática da nossa justiça. Coisa diferente foi que, na verdade, descobriram-se indícios daquilo que podem ser práticas criminosas e agora a polícia, procurando não levar para as investigações prova contaminada, aquilo que na nossa conversa jurídica se diz o fruto da árvore envenenada, vai tentar encontrar aquilo que também a doutrina diz, que é a fonte alternativa. É a maneira como as autoridades tentam isolar, fazer ali um cordão sanitário em torno da prova contaminada. Portanto, há coisas que são erradas, são até criminosas, não se devem fazer, não se podem fazer, têm de ser punidas, mas às vezes trazem alguns aspetos positivos agarrados, pois a vida tem estas circunstâncias curiosas.

CitaçãocitacaoNa minha opinião, o que se passou com o Rui Pinto não o enquadra na figura do denunciante. (...) [A lei] não permite que cada cidadão, numa espécie de parceria público-privada atípica, se ponha a investigar se há ou não coisas criminosas. Não, isso é absolutamente condenável. Isso é crime.

E quanto à justiça?
Este debate é velho e relho, mas há aqui uma coisa que se tinha de aprender rapidamente, são três ou quatro coisas sem as quais isto nunca muda. Vai mudando aqui, vai tendo um retoque aqui, um retoque lá, mas a primeira questão é que a justiça não se altera com leis. É uma coisa muito importante, altera-se com comportamentos. E enquanto não aprendermos isto, vamos continuando a fazer o que se tem feito até agora. Os responsáveis da justiça têm alguns chavões, que são chavões altamente defensivos, como dizia Eça de Queiroz, nestes grandes torneios de palavras, discussões aparatosas e sonoras, dizia o Eça de Queiroz, que falava muito bem e escrevia melhor ainda. Porque o que é que se tem feito? Primeiro, só se pensa na justiça que tem projeção para o público, nomeadamente as questões penais. Os tribunais criminais, os resultados das decisões criminais, as investigações criminais. Há setores da justiça que aparentemente não existem. Temos o setor dos tribunais administrativos e fiscais, onde uma sentença demora facilmente dez anos, mas, enfim, não é muito mediático. Deixo-o estar ali na gaveta do seu desinteresse. Pronto. Só as pessoas que lá estão à espera de uma decisão é que não concordam muito com esta visão. Em segundo lugar, quem planeia medidas de justiça vai muito à medida do core mediático. É uma coisa horrível, corta-se nos recursos, há 10 anos que não se faz outra coisa se não cortar nos recursos. Iniciei a minha atividade como advogado há 36 anos e meio. As possibilidades de recorrer nessa altura eram muito superiores às que existem atualmente. Portugal vive um dos maiores movimentos de regressão nos direitos humanos. Na escola aprendíamos o movimento de rotação e translação, aqui nos direitos humanos vemos um movimento de regressão porque há uma exigência pública de justiça dura e rápida e o Governo é sensível a isto. E depois inventou outro chavão, que é muito protetor e que é muito engraçado, que é dizer à justiça o que é da justiça, à política o que é da política. Isto é uma frase absolutamente desastrosa e desastrada. Porquê? Porque há aquele provérbio em Portugal que se diz "com a verdade me enganas", e com isso toda a gente concorda que o Governo, ou o poder político, ou a Assembleia da República, não se pode meter nos processos. Estamos num Estado de direito, a independência do poder judicial, embora seja uma luta permanente, nomeadamente dos advogados, é uma coisa mais ou menos consolidada. Mas quando o Governo diz isto, desresponsabiliza-se de coisas das quais não se pode desresponsabilizar.

Por exemplo?
Por exemplo, o não fornecer os meios à justiça que fornece à autoridade tributária. E por isso há investigações que demoram oito e 10 anos em que, coitados dos advogados, nem metem prego na estopa, embora sejam sempre culpados de tudo e mais alguma coisa. Porquê? Porque o Governo alheia-se de dar os meios, as capacidades, os funcionários, os equipamentos de tradução, os equipamentos informáticos, os equipamentos de digitalização de processos, tudo e mais alguma coisa que devia dar à justiça. E isso não é à justiça o que é da justiça, é o Governo a tratar da justiça, para que a justiça faça a sua função de forma independente. Isto daria um grande, grande, debate, mas, depois, ficará para a próxima ocasião.

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