Governo falha recomendação de substituir cabos submarinos até final de 2023

Substituição dos cabos que asseguram conectividade entre o continente e as ilhas está atrasada e vai encarecer. Faltam autorizações do governo. Tutela afasta risco de "apagão", mas Anacom diz que probabilidade aumenta.
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A substituição dos cabos submarinos que asseguram as comunicações entre Portugal continental, Açores e Madeira está atrasada e, muito provavelmente, as novas ligações não estarão prontas até ao final de 2023. Essa era a recomendação ao governo do grupo interministerial presidido pela Autoridade Nacional de Comunicações (Anacom), em 2019. Além do atraso, os 119 milhões de euros orçados para este dossier deverão ser revistos em alta, devido à inflação.

No início do ano, o governo anunciou que estavam reunidas as condições para iniciar a substituição dos cabos, mas ao fim de seis meses pouco se fez. Ao Dinheiro Vivo, fonte oficial do Ministério das Infraestruturas diz que o processo está em curso, mas admite constrangimentos burocráticos: falta concluir a aprovação de documentação sobre a "alteração dos estatutos da Infraestruturas de Portugal [IP, incumbente do dossier]", para esta avançar com "as suas atribuições relativas à conceção, projeto, construção, exploração, operação e manutenção, em regime de concessão" dos novos cabos. Também falta autorizar a IP a "lançar procedimentos pré-contratuais e contratuais necessários à implementação do sistema de cabos submarinos".

Em causa está o sistema de cabos submarinos formado por três ligações em triângulo e designado de anel CAM. O sistema atual está em operação desde 1998, sendo tecnicamente estimado um tempo de vida útil máximo de 25 anos.

De acordo com a Anacom, o governo já não vai a tempo de conseguir trocar os cabos (e tê-los operacionais) dentro do prazo sugerido (2023), nem mesmo dentro período apontado pelo executivo nas Grandes Opções 2021-2025 (final de 2024). Fonte oficial do regulador diz que "o tempo que medeia entre a assinatura do contrato com um fornecedor e a entrada em operação de um novo sistema é normalmente superior a três anos".

A morosidade do processo explica-se pelo trabalho minucioso que se exige, desde "levantamentos batisféricos, fabrico em fábrica, testes em fábrica com aceitação faseada, instalação, testes por segmentos e testes finais", entre outros. Às questões técnicas acrescem, hoje, questões conjunturais que não são negligenciáveis. "Face à procura existente de novos sistemas submarinos, havendo só quatro fornecedores globais no mercado e número insuficiente de navios para instalação, receia-se que esse prazo [de três anos pelo menos] possa ser dilatado, e nunca encurtado", alerta a mesma fonte.

No Orçamento do Estado para 2022, o governo identifica uma rubrica sobre novo anel CAM. Mas, segundo a Anacom, mesmo que a IP lance um concurso e feche um contrato com um fornecedor em 2022, "pelas condições atualmente praticadas", o novo sistema CAM "só deverá estar operacional no final de 2025". Ora, nessa altura, já o tempo de vida útil estimado dos atuais cabos terá vencido há dois anos e o contrato com o atual fornecedor do anel CAM (a Altice Portugal) terá terminado há um ano.

"Por contrato com o fornecedor, o tempo de vida do atual sistema com configuração em anel CAM, que assegura toda a interligação, termina de facto no final de 2024", refere fonte oficial da Anacom.

Fonte oficial da Altice Portugal dá a mesma indicação, garantindo que a empresa informou o governo e a Anacom que só se mantém a assegurar as ligações dos atuais cabos - de que é proprietária (herança da antiga PT) - "até, pelo menos, ao final de 2024".

Haverá, assim, um risco real de ocorrer um apagão de comunicações nas ilhas dos Açores e da Madeira? Fonte oficial do Ministério das Infraestruturas explica que o fim da vida útil estimada do atual anel CAM "não implica, necessariamente, o fim abrupto da atividade dos cabos submarinos em causa".

A Anacom diz o mesmo, mas sublinha que "há riscos acrescidos porque os componentes eletrónicos deverão ultrapassar o tempo de vida útil para os quais foram desenhados e projetados de raiz - a probabilidade de ocorrência de falhas aumenta à medida que o fim da vida útil se aproxima do fim, e aumentará ainda mais quando é ultrapassada -, desconhecendo-se se haverá equipamento de substituição suficiente, ou equipamento garantido pelos fornecedores do sistema, ou equipamento na posse do operador em causa, caso seja necessária uma reparação ou substituição de equipamento em falha".

Refere, ainda, que o atual sistema usufrui, "por contrato, de condições de assistência por navios de reparação dos cabos submarinos, condições essas que poderão já não ser as originais", sublinhando que devem dar "melhores garantias de assistência".

Outra questão é, realça a mesma fonte, é que há a expectativa que o tráfego de dados "continue a crescer" e que uma situação de "congestionamento", sem a substituição atempada dos atuais cabos, pode "degradar a qualidade de serviço da transmissão CAM, muito provavelmente com um aumento de latência [tempo de resposta]" dentro de três anos.

"Para fazer face a tal seria necessário um investimento no equipamento terminal [ou seja, fazer um upgrade], investimento esse que muito dificilmente deveria ter retorno em tempo útil, já que o atual sistema não deverá estar em operação para além de 2025", argumenta a mesma fonte oficial da Anacom.

Além do expectável atraso na troca dos atuais cabos submarinos por um novo sistema, os custos de todo o processo deverão encarecer. As condições alteraram-se face ao momento em que o governo definiu o budget de 118,9 milhões de euros para os trabalhos a fazer.

Agora, "o valor deve ser revisto devido à pressão inflacionista e ao aumento dos custos de matérias-primas", de acordo com fonte oficial do ministério liderado por Pedro Nuno Santos. A verba terá origem em fundos comunitários ou em receitas do leilão do 5G, segundo as Grandes Opções 2021-2025 do governo.

Há cinco anos que a Anacom alerta o governo para a "urgência" de substituir o anel CAM. Só em setembro de 2020, o governo tomou uma decisão definitiva: chamou a si o dever de construir um novo sistema, substituindo os atuais cabos que pertencem à Altice Portugal; e mandatou a IP Telecom, holding da IP, para liderar os procedimentos.

O atual sistema tem três ligações: Carcavalelos-ilha de S. Miguel; Carcavelos-Madeira; S.Miguel-Madeira (3 700 km ao todo). Como estas ligações pertencem à Altice, que segundo fonte oficial não está envolvida nem a construção do novo anel CAM está dependente da empresa, o governo poderá ser obrigado a ter de escolher outros pontos de amarração do novo anel CAM no continente. Sines ou Seixal alternativas ao sistema internacional de cabos submarinos de Carcavelos, Cascais, admitidas pelo governo.

Indagada sobre este processo, fonte oficial da dona da Meo afirma que a empresa tem vindo a trabalhar com a IP, "enquanto possível prestador de serviços, disponibilizando as suas infraestruturas e know-how técnico para o que a IP Telecom considerar necessário, à semelhança do que tem feito com outros projetos de sistemas de cabos submarinos que amarram em Portugal". Questionada ainda se, perante o expectável atraso na substituição dos cabos, a empresa estaria disponível para manter e operar o atual anel CAM para lá de 2024 fonte oficial não respondeu.

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