Um dos temas que será debatido no Fórum La Toja, a que preside e que se realiza na quarta-feira em Lisboa, é "Uma nova Ibero América e uma nova relação transatlântica". Com o foco mundial centrado na guerra na Ucrânia e na região do Pacífico, por causa da China, que força tem ainda o Atlântico? É evidente que há uma deslocação do centro de gravidade do planeta para o Indo-Pacífico e isso é irreversível. Concentra-se ali cada vez mais o peso demográfico do mundo, o peso comercial, o peso económico... E, além disso, já é um foco crescente de tensões militares, pelo conflito entre China e EUA, o de Taiwan, e em geral, o do Mar do Sul da China. Mas isso não quer dizer que tenhamos que deixar de lado a importância do Atlântico. Além de termos sido o centro durante vários séculos, desenvolvemos ao longo do tempo uma série de valores comuns que entendemos que devem continuar a ser defendidos. E que não podemos deixar nas mãos de outros. Assim, noutros fóruns pode-se discutir a guerra na Ucrânia ou a tensão no estreito de Taiwan, mas nós entendemos que uma reflexão sobre o mundo iberomericano, e ainda mais uma reflexão hispano-portuguesa, pode ser muito útil. Porque a ambição do fórum é ser um ponto de referência do debate sobre os valores e o vínculo Atlântico. E desde o princípio que o quisemos fazer de uma perspetiva peninsular. Daí a presença sempre de personalidades portuguesas no Fórum La Toja [Galiza] e a ideia de fazer um ato em Lisboa..Este será o primeiro ano que trazem o fórum a Lisboa, certo? Sim, mas queremos dar continuidade todos os anos. Este será só uma manhã e a ambição é fazê-lo maior. Temos um programa muito sólido, muito atrativo, há pessoas extraordinárias a participar. Desde logo o debate entre os presidentes da câmara de Lisboa e de Madrid, a aposta pelo mercado europeu de energia e a mesa sobre a América Latina, que está a passar por enormes turbulências políticas. Há uma grande instabilidade. Um dos problemas da América Latina é que se desmoronou o sistema tradicional de partidos políticos. E isso, junto com as eleições direitas dos presidentes, está a gerar uma enorme instabilidade, porque normalmente não há correspondência política entre o presidente e os respetivos parlamentos. E é isso que estamos a ver, infelizmente todos os dias. E todos os que defendemos os valores da democracia liberal queremos que a América Latina continue a pensar a democracia liberal como o melhor sistema para resolver os problemas dos cidadãos em liberdade..Fala-se muito da reconfiguração da ordem internacional. Acha que ainda há espaço para umas Nações Unidas ou para um Conselho de Segurança, que está de mãos atadas por causa da guerra na Ucrânia? A invasão ilegal da Ucrânia por parte da Rússia revelou a obsolescência de determinadas instituições das Nações Unidas, não das Nações Unidas como ideia. Entre os valores ocidentais temos que falar de uma defesa do multilateralismo, que está na base da cooperação e da colaboração entre países, e de evitar o recurso à força para alcançar determinados objetivos. Tudo isto a Rússia violou há quase um ano. O que a guerra revelou foi a obsolescência do Conselho de Segurança. Já sabíamos dela, porque manter um Conselho de Segurança no século XXI com o resultado do final da II Guerra Mundial... o mundo anda muito rápido e os vencedores daquela guerra manterem o direito de veto, evidentemente que deixa lastro. O veto da Rússia e da China impede tomar qualquer decisão e por isso é preciso ir, ainda que não sejam vinculativas, às votações no âmbito da Assembleia Geral, que nos permite ver como o mundo pensa. Quase ninguém apoiou explicitamente a invasão, mas há que reconhecer que uma parte muito importante dos países, mais do que abster-se ou até condenar a invasão, não se quis somar às sanções. As sanções são estritamente ocidentais..A ideia de "comunidade internacional" que temos tendência a usar na realidade não o é... Verdade que não é, porque estamos a falar do Canadá, dos EUA, estamos logicamente a falar da Europa, estamos a falar de países como o Japão ou a Coreia do Sul no Pacífico e a Austrália e a Nova Zelândia na Oceânia. Mas se olharmos para o mapa das votações, veremos que, com as exceções que mencionei, toda a Ásia fica à margem das sanções, a começar por países tão importantes como a Índia ou a Indonésia. Se olharmos para a América Latina, com exceção da Colômbia, todos os outros também se abstiveram de participar em qualquer sanção. E se olharmos para África, não há nenhum país que tenha aderido. E são dois continentes onde a influência chinesa também está a crescer e todos sabemos que a presença chinesa nestes países não se condiciona a nenhum tipo de elemento político, mas é absolutamente pragmática. A China não se importa com a natureza do regime político. Para os ocidentais não é assim. Por isso temos que levar a sério este tema..Olhando mais para perto, este é um ano eleitoral em Espanha, com as eleições locais e autonómicas a serem um primeiro ensaio para as eleições gerais para o final do ano. As sondagens não são favoráveis ao primeiro-ministro, Pedro Sánchez. Estamos à beira de uma nova mudança política em Espanha? A grande maioria das sondagens coincide. Todas dizem que a força mais votada vai ser o Partido Popular e aí a incógnita é se vai poder governar sozinho, como aconteceu em Madrid ou em Andaluzia depois das eleições autonómicas, ou se vai necessitar de apoios externos - refiro-me ao Vox - que em função do peso que podem ter vão exigir a entrada no governo. E esse é um tema que ainda se tem que aclarar. Outra questão é que o governo de coligação em Espanha teve um enorme desgaste. As divisões internas são cada vez maiores e mais evidentes. Temos dois exemplos bem imediatos, uma é a famosa reforma da lei do "só sim é sim" e outra as relações com Marrocos. E não são temas menores. Mas, como em todas as eleições, sempre há um fator que é preciso ter em conta e que hoje é muito incerto. Falo da evolução da economia. Porque se a economia não melhorar ou se continuar instalada a incerteza, a inflação alta, as taxas de juro a subir, então, evidentemente, a atitude do eleitorado não vai ser a mesma que numa situação de recuperação económica..Falou do Vox. Como vê a possibilidade de o Partido Popular, o seu partido, se tornar dependente da extrema-direita? Bom, só posso falar a título pessoal, porque já há muitos anos que deixei a atividade política e, por isso, evito falar do que não me corresponde. Mas, a título pessoal, oxalá seja a força mais votada e possa formar governo sem precisar do Vox. É o mais claro que posso falar..E que nota daria ao governo de Pedro Sánchez? Tem que ser novamente uma opinião pessoal. Penso que, em termos gerais, o governo teve uma consequência muito negativa. O governo de Pedro Sánchez aprofundou a divisão na sociedade espanhola, o que chamamos agora a polarização e o confronto. Esquecendo o espírito que, no seu momento, nos permitiu recuperar a democracia em Espanha, um pouco depois de que Portugal a recuperasse, que é o que nós normalmente apelidamos de o espírito da transição. De que, nas coisas básicas, procuremos estar de acordo e não procuremos desentendimentos neste tipo de questões. E eu acho que a nota do governo vem muito condicionada pela rutura desse espírito de transição e por isso não posso fazer outra coisa que não seja chumbá-lo..E a nota do líder da oposição, Alberto Núñez Feijóo? Eu conheço-o bem, há muitos anos. Posso dizer que somos amigos e por isso a minha opinião não é muito objetiva, é subjetiva. Eu acho que Feijóo, e demonstrou-o governando a Galiza durante muitos anos, é uma pessoa séria, é uma pessoa moderada, é uma pessoa muito responsável e muito consciente da necessidade de salvaguardar ou recuperar esse espírito da transição, procurando consensos básicos. Penso que essa é uma mensagem que tem transmitido bem à sociedade espanhola e boa parte do eleitorado, como refletem as sondagens, reconhece isso. Mas tenho que lembrar que uma sondagem é uma sondagem, é o resultado de um dia ou dias concretos em que se realiza. E a única sondagem que vale é a eleitoral, no dia das eleições. Mas tenho uma enorme confiança em Feijóo..Você é catalão. Como vê a situação atual na Catalunha? Acha que está resolvido o problema da independência? Não. E lamento-o. Ainda agora houve um acordo de orçamento entre o governo da Esquerda Republicana e o Partido Socialista da Catalunha. E o presidente da Generalitat disse que se mantinha o roteiro para a independência e que a maioria independentista do Parlamento é a que existe e que o seu objetivo é um referendo de autodeterminação. Por isso, o problema não está resolvido. É muito provável que, à mínima oportunidade, volte a surgir este tema, porque as próprias bases destes partidos não lhes permitiriam fazer outra coisa. Não posso estar muito otimista e, como catalão, lamento-o..Para terminar, como vê a relação entre Portugal e Espanha? O facto de termos dois governos socialistas ajuda a falar a uma só voz, por exemplo, na União Europeia? Eu acho que as relações entre Espanha e Portugal têm que ser, cada dia, melhores e os seus atos cada dia mais coordenados. Porque isso dá-nos força na União Europeia, em geral, dá-nos força a nível internacional. Mas eu desvincularia a colaboração da cor política dos governos. Quando eu estive no governo, coincidi com o governo português presidido por António Guterres. E o meu colega no Ministério dos Negócios Estrangeiros era o Jaime Gama, socialista de primeira hora e bem conhecido em relação a isso. Devo dizer que, entre todos com que me relacionei, incluindo pessoas com quem estabeleci uma relação de amizade ou uma relação muito boa, desde logo, provavelmente, Jaime Gama é o único que posso qualificar como amigo..Então é independente da cor política? Absolutamente, porque os interesses dos países têm que ir mais além da conjuntura política e da alternância. Vão, felizmente, muito além do governo que possa haver em cada momento. A Portugal e Espanha interessa reforçar ao máximo a relação, coordenar-se ao máximo. E isso tem que ser independente de quem governe em cada um dos países..Há algum interesse em Espanha sobre o que se passa a nível político em Portugal? Eu acho que se tem vindo a melhorar. Durante demasiados anos houve uma frase que correspondia à realidade, a de que Espanha e Portugal estavam no mesmo sítio mas viviam de costas voltadas. Eu penso que a pouco e pouco isso foi mudando. Houve um momento de enorme interesse na política portuguesa, refiro-me à etapa da Revolução dos Cravos. Mas agora penso que sim, que em Espanha segue-se a política portuguesa com interesse e até, em algumas ocasiões, com uma inveja saudável, porque vemos um governo de um só partido, moderado. Apesar de, estamos a ver, não isento de problemas internos, mas quem não os tem? Mas penso que somos cada vez mais os que nos interessamos muitíssimo pela política portuguesa. Eu confesso-me apaixonado pelo vosso país e vou a Portugal sempre que posso..O Fórum La Toja realiza-se na quarta-feira, na Fundação Calouste Gulbenkian. Estes são alguns dos pontos do programa, que contará na sessão de encerramento com o primeiro-ministro António Costa e a ministra da Defesa espanhola, Margarita Robles. 09.45 - A liderança na transformação das cidades Debate entre os presidentes da câmara de Lisboa, Carlos Moedas, e de Madrid, José Luis Martínez Almeida. 10.30 - Aposta Ibérica para o Mercado Europeu de Energia Mesa redonda com os ex-ministros do Ambiente de Portugal, José Pedro Matos Fernandes, e Espanha, Isabel García Tejerina. 12.00 - Uma nova Ibero América e uma nova relação transatlântica Mesa redonda com o ex-primeiro-ministro espanhol Mariano Rajoy, o ex-chefe da diplomacia portuguesa Paulo Portas, o ex-chefe do governo do Peru Pedro Cateriano, e o ex-presidente do Brasil Michel Temer (este último por videoconferência)..susana.f.salvador@dn.pt