Governo de esquerdas: solução comum na Europa e totalmente legítima!
Desde a revisão constitucional de 1982 que o governo deixou de ser politicamente responsável perante o Presidente (PR), ou seja, desde essa data que a concordância, ou a falta dela, do PR face ao programa do governo, e da maioria parlamentar, não é um elemento relevante para a tomada de posse do governo, nomeadamente para indigitação do primeiro-ministro pelo PR. É por isso que, desde então, o PR continua a não ter limites no seu poder de dissolução da Assembleia, exceto os limites temporais ligados ao terminus do mandato do PR e/ou ao arranque do novo Parlamento (como é o caso agora), mas tem claros limites no seu poder de demitir o governo (só pode fazê-lo "quando está em causa o regular funcionamento das instituições"). Dito de outro modo, para dissolver a AR, excetuando os limites temporais, o PR pode usar apenas critérios de índole política, nomeadamente a sua aferição sobre em que medida a maioria em funções é, ou não, ainda congruente com o estado da opinião pública; e os resultados das eleições posteriores a uma dissolução dirão se a apreciação política do PR era, ou não, acertada. Podendo eventualmente não ser acertada, será em qualquer caso legitima: recorde-se a dissolução do Parlamento francês pelo Presidente Chirac, em 1997, que lhe devolveu uma maioria de esquerdas (a "esquerda plural" liderada por Lionel Jospin, PSF, com o PCF, os Radicais de Esquerda, os Verdes e outros), que governou entre 1997 e 2002. Pelo contrário, desde 1982 que a demissão do governo só é constitucionalmente legitima, em Portugal, "quando está em causa o regular funcionamento das instituições". Nem a democracia, nem o quadro constitucional vigente, nem os alinhamentos geopolíticos do país estão, de modo algum, em causa com uma eventual nomeação de um "governo de esquerdas", em Portugal, hoje!
Por um lado, é por isso que, do ponto de vista da normalidade democrática e constitucional, não resta outra opção ao PR senão indigitar o Dr. António Costa como primeiro-ministro de um governo do PS apoiado no Parlamento pelo BE e pelo PCP/PEV, ou seja, dar posse a um "governo de esquerdas" (um governo minoritário do PS, pois segundo se sabe até agora não um tal governo não terá ministros nem do BE nem do PCP/PEV, mas escudado na proteção de um acordo parlamentar minimamente sólido com verdes, comunistas e bloquistas que lhe assegurará a passagem de peças legislativas cruciais, nomeadamente os orçamentos, e a proteção contra moções de censura da direita). Seria porventura desejável uma maior assunção de responsabilidades por bloquistas e comunistas e verdes, nomeadamente com ministros destes partidos no governo. Mas nem tal é um sine qua non democrático, nem se calhar pode pedir-se, com razoabilidade, que depois de 40 anos de um muro entre as esquerdas, que agora caiu, se passe logo "do oito para o oitenta". Também seria porventura desejável um acordo/acordos ainda mais blindando(s) do ponto de vista do horizonte de estabilidade para uma legislatura completa. Porém, nem tal é um sine qua non democrático que cumpra ao PR exigir a um "governo de esquerdas", nem Cavaco teria qualquer autoridade política para exigir isso: acabou de indigitar um governo de direita que, como esperava, durou cerca de uma semana... Um governo de iniciativa presidencial nunca passaria no crivo parlamentar dominado pelas esquerdas. E a solução "governo de gestão" seria de tal modo arrastadamente penosa para o país, com brutais custos económico-financeiros, sociais e políticos, que dificilmente é concebível no quadro constitucional e democrático vigente.
Politólogo, professordo ISCTE-IUL