Governo Bolsonaro acusa candidata aos Óscares de ser antibrasileira
A autora do documentário Democracia em Vertigem, um dos nomeados ao Óscar de melhor documentário, criticou o governo de Jair Bolsonaro a propósito das políticas de combate ao crime e de proteção da Amazónia, em entrevista a uma estação pública dos EUA. Em resposta, a Secretaria de Comunicação do Palácio do Planalto, órgão oficial do governo, contra-atacou pelas redes sociais - o que pode ser considerado inconstitucional, segundo juristas -, chamando Petra Costa de "militante anti-Brasil".
O assunto foi o mais falado ao longo de segunda e terça-feira na versão brasileira da rede social Twitter, sob a hashtag #PetraCostaLiar [mentirosa, em português] e reforçou a ideia de que a cerimónia do próximo domingo em Los Angeles será uma espécie de prévia presidencial no Brasil - se Petra Costa ganhar o primeiro Óscar da história do país com uma narrativa favorável à tese de golpe de Estado contra Dilma Rousseff, a esquerda festejará; e a direita repudiará com veemência.
A cineasta afirmou na conversa com a estação PBS, durante o périplo internacional de divulgação da obra, que "Bolsonaro incentiva fazendeiros a invadir terras indígenas e a queimar a floresta amazónica", tendo em conta declarações do presidente antes e depois de ser eleito contra o que chamou de "indústria de multas ambientais". Ele disse ainda que "há muita terra para pouco índio", que não iria demarcar mais terras para indígenas e que legalizaria o garimpo nessas regiões.
Petra Costa afirmou ainda que "só o estado do Rio de Janeiro tem mais pessoas mortas pela polícia do que todos os EUA", com base nos 1810 mortos pela polícia fluminense em 2019, de acordo com números do Instituto de Segurança Pública, por contraste com os 970 mortos no país norte-americano, segundo levantamento do The Washington Post.
A Secretaria de Comunicação do governo (Secom) reagiu nas redes sociais com uma publicação escrita: "Sem a menor noção de respeito por sua nação e pelo povo brasileiro, Petra afirmou num roteiro irracional que a Amazónia vai virar uma savana e que o presidente Bolsonaro ordena o assassinato de afro-americanos e homossexuais." E, em vídeo, carimbou "fake news" a cada declaração da realizadora, além de uma resposta ao argumento usado por ela. A exceção foi a propósito da letalidade da polícia do Rio, em que a Secom culpou o governador do estado, Wilson Witzel, rival político de Bolsonaro.
A reação da Secom foi considerada "inconstitucional" por parte de juristas ouvidos pelo site especializado Conjur e pelo jornal Folha de S. Paulo.
"O artigo 37 da Carta deixa claro que a administração pública se submete aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, e determina ainda que a publicidade dos governos terá caráter educativo, informativo ou de orientação social", lembrou Mônica Sapucaia Machado, especialista em direito administrativo.
Para o jurista Lenio Streck, ouvido pelo Conjur, o uso do perfil oficial da Secom para atacar a cineasta deveria ser alvo de investigação do Ministério Público. "O governo não pode usar a máquina pública desse modo. Por óbvia quebra o princípio da impessoalidade. Ora, o governo pessoalizou. Abriu guerra contra uma pessoa que, paradoxalmente, representa o Brasil nos Óscares. O governo não só torce contra a cineasta como usa da máquina da Secom para desacreditá-la. Caberia uma intervenção do Ministério Público por desvio de função da Secom."
"A manifestação da Secretaria Especial de Comunicação da Presidência da República a respeito da entrevista de Petra Costa à televisão americana tende a desbordar da impessoalidade que o poder público deve observar. Conquanto o documentário e as opiniões da cineasta sejam em tom crítico ao país, estão guardadas pela liberdade de pensamento", comentou também o constitucionalista Paulo Peixoto.
Já o advogado Eduardo Alvim tem outro entendimento. "Nada impede, segundo penso, que um meio de comunicação assuma uma posição ideológica, como no editorial de um jornal, mas deve fazê-lo claramente. Apresentar factos graves como verdadeiros, no caso, aparentemente sem contraditório ou comprovação, me parece errado."
O anúncio da nomeação de Democracia em Vertigem - que pode dar o primeiro Óscar da história ao Brasil - foi recebido há duas semanas com reações acaloradas.
"O filme mostra o meu afastamento do poder e como a media venal e as elites política e económica brasileiras atentaram contra a democracia no país, resultando na ascensão de um candidato da extrema-direita em 2018", escreveu a antiga presidente Dilma Rousseff, do PT.
O antecessor Lula da Silva também comentou: "Parabéns Petra Costa pela seriedade com que narrou esse importante período da nossa história. Viva o cinema nacional. A verdade vencerá!", reagiu o antigo presidente.
Roberto Alvim, então ainda secretário da Cultura do governo, dizia que a obra deveria ter entrado "na categoria de ficção". Alvim foi exonerado dias depois por ter publicado um vídeo em que imitava Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Adolf Hitler.
E para o pastor Marco Feliciano, deputado próximo do Palácio do Planalto, "a mera indicação é um "acinte ao povo brasileiro". "O filme é mentiroso e financiado por um braço da empreiteira Andrade Gutierrez, envolvida no Petrolão. Aliás, por que a esquerda vibra com um prémio que é símbolo do capitalismo yankee?", perguntava-se.
Apenas quatro horas depois daquele anúncio, o documentário já havia recebido 120 mil menções na rede social Twitter. No Facebook, foram 1200 links com mais de 712 mil reações, comentários e partilhas. Desses comentários, aponta levantamento da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Faculdade Getúlio Vargas, 14% fizeram referência a "Dilma", 12% a "golpe", 6% a "ficção" e 5% a "comunista".