Gouveia e Melo. O rosto da vacinação
Vivemos tempos extraordinários, nos vários sentidos positivos e negativos que esta palavra pode ter! Quem poderia pensar que em pleno século XXI, com o progresso que a proteção da saúde conheceu nas últimas décadas no mundo desenvolvido, o planeta poderia ter que, literalmente, encerrar por causa de um organismo invisível, uma mera partícula primordial, cuja replicação no organismo humano tem um enorme potencial letal.
E foi o que aconteceu há já quase dois anos e ainda estará longe de terminar. Fomos confrontados de forma dura com a nossa vulnerabilidade e com a nossa desproteção.
Tudo tremeu, as pessoas e as governações assustaram-se, e nada ainda voltou a ser como dantes, por muito que muito desse "dantes" devesse mudar porque nos levava pelo caminho errado. Pior: ninguém sabe ainda como o futuro próximo poderá vir a ser, pois na ausência de uma governação global para problemas globais, tardam as decisões determinadas e prudenciais que a razão aconselharia na sequência da tragédia humana que temos coletivamente vivido.
Na verdade, se daquilo que sabemos, a situação em presença é mais uma funesta consequência dos graves erros que têm vindo a ser cometidos a nível do equilíbrio entre espécies, os compromissos saídos da Cimeira de Glasgow estão muito aquém daquilo que deveria ter sido alcançado.
Por isso já são tão recorrentes os discursos com ameaças de novas pandemias.
Numa análise retrospetiva, podemos concluir que, no mundo ocidental, a abordagem inicial da pandemia conheceu estratégias diferentes. No contexto europeu, que é o nosso, vimos a Itália e a Espanha a serem especialmente fustigadas e Portugal a conhecer um atraso na ocorrência em força do fenómeno resultante do confinamento preventivamente reclamado e decidido.
A Europa do Estado Social que muitos pensariam que seria "fortaleza", colapsou naqueles dois Países e colocou sobre forte pressão os sistemas de proteção de todos os outros. Doença desconhecida e com comportamento imprevisível constitui uma ameaça assustadora contra a qual só a abnegação e competências dos profissionais de saúde conseguiu ir transmitindo segurança e esperança.
Pela primeira vez se percebeu bem a relação entre saúde e economia e, perante a abrupta queda dos PIB"s e a indispensabilidade de os Estados adotarem medidas de emergência para apoiar pessoas e empresas, evitando males maiores, até as sacrossantas regras do equilíbrio orçamental impostas a nível da União Europeia (UE) foram suspensas. Ao mesmo tempo, a UE e os Estados Unidos adotaram medidas robustas de financiamento público à investigação científica em busca de uma vacina salvífica, tendo acabado por aparecer várias em tempo absolutamente record. Loas devidas à ciência e aos cientistas, tendo ainda ficado a faltar um tratamento eficaz que vença as limitações das vacinas existentes.
Temos que reconhecer que foi importantíssima a nossa integração no espaço europeu para termos acesso às vacinas disponíveis em tempo adequado e em quantidade suficiente para a proteção da população.
Portugal é um país que tem uma forte tradição em saúde pública e uma adesão à vacinação em percentagem invejável se comparada com as de outros países do nosso espaço geográfico. Fazer face a uma pandemia através da vacinação em massa não é, contudo , a mesma coisa que cumprir anualmente o Plano Nacional de Vacinação. A complexidade desta operação requeria capacidade de planeamento, de organização e de logística que envolvesse outras entidades que não apenas o Ministério da Saúde.
Desde o início da pandemia que defendi o envolvimento das Forças Armadas. A sua preparação e competência para a execução de tarefas complexas é indiscutível e a entrega deste processo ao Vice-Almirante Gouveia e Melo veio a revelar-se um sucesso.
Dotado de uma capacidade de liderança indiscutível, aplicou todos os conhecimentos que a sua formação específica lhe conferiu, rodeou-se de uma equipa de pessoas determinadas e dedicadas especificamente a esta tarefa e soube tomar as decisões certas do ponto de vista simbólico e do ponto de vista operacional, de tal forma que Portugal se transformou num caso de sucesso neste capítulo.
Soube assumir a liderança com firmeza e clareza; galvanizou a equipa e todos os envolvidos em torno de um objetivo comum; impôs disciplina na execução do programa; tomou as decisões necessárias no tempo certo; mostrou coragem nos momentos difíceis, como quando enfrentou, sem titubear, os negacionistas agressivos; conquistou o reconhecimento pelo exercício da autoridade ao serviço do bem comum.
Sim, como dizia J. Hunter, " Líder é aquele que tem autoridade e não simplesmente aquele que tem poder".
Estarmos gratos e reconhecidos ao Vice-Almirante Gouveia e Melo não é fazer dele um D. Sebastião. É apreendermos o que demonstrou no sentido de que não se vencem desafios complexos sem estratégia, sem capacidade de liderança, sem competência, sem equipa, sem maturidade, sem coragem e sem determinação.
Ex-ministra da Saúde