"Gosto mais de estar em estúdio a criar do que a dar concertos" 

Com três discos em Portugal e a gravar o segundo álbum em francês, o percurso de David Carreira tem pouco de acaso e muito trabalho lá dentro. Em Paris, o cantor revela como gere a carreira e quão longe quer chegar
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De jeans e camisola de capuz, quando nos encontramos no Le Flandrin, David Carreira destaca-se do ambiente do histórico restaurante parisiense que Joseph Dirand transformou há três anos num cenário onde não estranharíamos "ver James Bond sentado a tomar um martini" (citando o próprio arquiteto). Mas move-se como se estivesse em casa - troca a mesa onde acabou de comer, no meio da sala, por uma na varanda envidraçada, mais tranquila para a nossa conversa -, os empregados atentos a qualquer gesto, a levar-lhe o chá que vai bebendo para acalmar a garganta irritada depois de uma produção de moda num dia de chuva sem tréguas.

Aos 25 anos, a vida de David tem pouco espaço para o que os outros miúdos da sua idade fazem: é caseiro mas também se retrai um pouco - "há coisas que são normais mas que não ficam bem através de uma câmara". Divide-se entre as casas de Lisboa e Paris, para responder às exigências das carreiras musicais paralelas que está a construir. E os resultados vão chegando, até mais pelo lado francófono: "Este é o país dos direitos, os artistas são muito protegidos, sempre que um tema passa num programa de televisão, na rádio, és remunerado. Eu ganho mais em direitos de autor só com as passagens de músicas do que com as vendas de discos em Portugal."

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São duas vertentes bem diferentes, duas carreiras separadas até pelo género musical. Em Portugal, onde trabalha uma onda mais comercial e já atingiu a platina (15 mil discos), reconhece que há uma nova geração, "até com colegas, como os D.A.M.A., que estão a criar coisas novas e a fazer que cada vez se oiça mais música portuguesa". Em França, pertence assumidamente ao hip-hop e reconhecem-se-lhe as referências dos Estados Unidos e da cultura musical pop francesa com que cresceu. Onde quer chegar? "Quero alcançar o povo francófono, ir o mais longe possível nesta internacionalização." O plano é simples: cantar em francês "potencia tudo o que são países de língua francesa - Marrocos, Argélia, Tunísia, Senegal, Canadá... Este mercado tem esse efeito: quem é número um em França passa rapidamente para outros tops. Há fenómenos como o Stromae, que foi capa da Times e vai cantar no Madison Square Garden porque a música francesa, sobretudo no seu lado mais urbano, na eletrónica - com os Daft Punk, David Guetta, etc. -, ganhou uma força muito grande."

Mas se o mercado francês lhe garante um bom rendimento, trocar agora Portugal pelo país onde nasceu e viveu até aos 10 anos não é uma hipótese. "Esquece! Isto é um frio terrível", reage. "Amo viver em Lisboa, adoro a luz, o ar, aquele lado mais calmo. Gosto muito de Paris para algumas coisas, há muitos teatros, a nível cultural tens muito mais oferta, mas em Portugal a vida é menos stressante." Por isso prefere ir e vir sempre que é preciso.

[citacao:Estudar faz-me falta, sobretudo o lado da economia, sempre gostei de aprender]

Paris também lhe permite chegar a outros artistas e produtores, evoluir mais. "Aqui tenho a oportunidade de trabalhar com pessoas que me fazem crescer imenso, produtores, pessoal da moda - porque hoje a música tem essa interligação com muitas outras indústrias." O chapéu da Warner Music, com quem assinou contrato em 2014, ajuda. "Eu queria experimentar este mercado, por isso fui ter com uns produtores aqui em França, eles acreditaram em mim e levaram-me aos managers de artistas como a Céline Dion, Julio Iglesias, Ricky Martin, para mostrar os meus álbuns portugueses. Nessa altura tinha também a Sony e a Universal interessadas mas acabei por escolher a Warner."

A mesma naturalidade que o levou a bater à porta de uma editora internacional de topo fê-lo convidar Snoop Dogg para o dueto. "Estava a trabalhar no segundo álbum português num estúdio em Los Angeles e a minha equipa estava também com o álbum reggae dele. Um dia encontrámo-nos no estúdio e eu fiz-lhe a proposta." O que veio a seguir? As editoras foram postas em contacto para definirem a parte de negócio e os artistas geriram o lado musical de A Força Está em Nós. "Correu muito bem" e neste álbum francês, que já tem meia dúzia de temas gravados, "já estou a pensar uma parceria com ele ou com alguém que ele agencie".

O acesso e a possibilidade de crescer explicam porque, nos últimos dois anos e meio, David se tem concentrado cada vez mais neste lado da carreira. E com resultados. Menos de um mês depois do lançamento do primeiro single do novo álbum em francês - que chegará antes do verão -, Domino chegou aos tops. Com o disco anterior, o da estreia no mercado francófono e com a label Warner Music, ainda no mês passado esgotou duas salas em Toronto. E numa indústria a sofrer os efeitos da era digital, consegue vender discos quer em Portugal quer em França. Como? "Se tens uma forte ligação com o teu público consegues viver da música. O meu primeiro álbum aqui foi disco de ouro, vendi 50 mil - em Portugal seria tripla platina -, mas há quem consiga chegar a 400 mil, um milhão, e isso é também graças ao streaming." Parece simples. Não o é. David conhece a indústria e tem uma estratégia de negócio bem delineada. "O streaming é ótimo, sobretudo agora que começa a ser remunerado - 1500 streams representam um álbum, portanto começa a ganhar dimensão, 10 milhões já são um valor importante para um músico. Mas eu sempre tive a sorte de vender o álbum físico, o CD, porque criei uma ligação com o público. É isso que acho que marca a diferença entre um músico que aguenta 20 ou 30 anos e um cuja música se descarrega no Spotify e pronto."

Claro que essa relação é construída passo a passo e dá tanto trabalho quanto a parte musical. David é exigente em tudo o que faz e esta vertente não é exceção - e aqui reconhece influência do pai. "Começo a aprender com ele, sobretudo no respeito pelo público, na criação da carreira, pergunto-lhe o que faria no meu lugar... porque musicalmente nós não temos a menor afinidade, mas a nível de gestão de carreira ele é um exemplo, tem quase 30 anos disto. Fiz agora um dueto com ele no novo álbum e foi um orgulho poder fazê-lo."

[citacao:Daqui a um ano gostava de fazer aqui o Meo Arena de Paris. E daqui a três, de gravar com a Rihana... porque não?]

Uma parte desta aprendizagem é visível na atenção dada aos fãs - nos concertos, em sessões de autógrafos, nos diretos, a responder a mensagens... "A música hoje é instantânea e a única forma de conseguires aguentar uma carreira é criares uma ligação tão forte com o teu público que ele vai gostar de ti pela pessoa que és, independentemente da música que cantes", explica. "Por exemplo, eu gosto do Justin Timberlake e se ele amanhã for fazer um filme eu vou ver, porque é uma referência." Uma referência que o destino lhe criou no caminho, uma vez que foi David o escolhido pela Fox International para dobrar a voz do norte-americano no filme Trolls. Pergunto-lhe se estes golpes de sorte lhe deram muito trabalho. "É óbvio que é preciso trabalhar para isto acontecer. Este álbum em francês só existe porque eu vim a Paris, falei com a Warner, mas há também alguma sorte."

Acima de tudo, David diverte-se muito com o que faz e não tem problemas em reconhecer que é o lado criativo que mais o preenche, seja a compor, a escrever ou até a realizar vídeos, uma área em que está a estrear-se. "Neste novo álbum, que é muito mais maduro, escrevo em quase todas as músicas, em parceria com outras pessoas, que é como gosto de trabalhar: cada um tem uma parte da melodia e depois juntamos tudo, vemos o que gostamos, o que funciona, trocamos, até encontrarmos a melhor fórmula. Eu gosto de participar, de dar ideias, gosto mais de estar em estúdio do que em concertos, porque o que me preenche mesmo é a parte criativa."

A vida parece correr-lhe bem, mas nem tudo foi fácil, sobretudo ter de arrancar do zero quando já tinha uma carreira em Portugal. "Aqui não fazem ideia quem eu sou fora de França, nem conhecem o meu backgroung familiar, não sabiam que eu tinha três álbuns e seis anos de carreira. Então, quando lancei o primeiro aqui, em 2014, foi um desafio, porque nunca tinha sentido aquela coisa de desenvolvimento - as editoras fazem estes planos para um artista a partir do zero. E tive de dar esses passos todos, comecei por fazer as primeiras partes de concertos - quando já estás habituado a ser cabeça-de-cartaz, isso choca-te, sobretudo porque em Portugal não precisei de fazer esse caminho."

Ser filho de Tony Carreira e irmão de Mickael tornou tudo muito mais rápido no seu percurso português e a passagem pela televisão deu o empurrão final. Curiosamente, nunca quis usar essa vantagem: "Sempre fui um bocado rebelde e queria destacar-me, por isso comecei como David Antunes e no primeiro genérico dos Morangos com Açúcar ainda apareço assim, mas depois a Glam (agência que o representa) insistiu para mudar, porque a imprensa toda só falava em David Carreira e eu cedi. Nessa altura não estava nem aí para a música."

Esses foram os anos em que arrancaria nas telenovelas, já depois da moda e de um ano a cumprir o primeiro sonho que teve para a sua vida: o futebol no Sporting. Uma lesão trocou-lhe as voltas e David foi andando até a música se tornar inevitável na sua vida, levando-o a nunca chegar a frequentar o curso de Economia da Nova em que entrou. E faz-lhe falta essa vertente de estudos? "Faz, sem dúvida, sobretudo o lado da economia, faz muita falta; mesmo porque eu sempre gostei de aprender." Ri-se, mas nota-se que gostaria de voltar, ainda que não veja como isso possa acontecer. "É complicado..." Sobretudo quando está a crescer e a descobrir-se cada vez mais cantor, com a ambição de fazer sempre mais, de cumprir novos objetivos. "Daqui a um ano gostava de fazer aqui o Meo Arena de Paris, porque em Portugal já tive a sorte de fazer tanta coisa que me divertiu, como o concerto 360, que agora quero repetir isso aqui. E se calhar daqui a três anos vou estar a fazer uma música com a Rihana, porque não? Às vezes achamos que as coisas são tão longínquas, mas não são, tens é de dar o passo - e de repente há aquela ponta de sorte e acontece." Até parece fácil.

Os jornalistas viajaram a convite da Aigle Azur, da Check in e da Glam

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