Gonçalo, em nome da terra
O parque da nova Praça de Espanha homenageia, com inteira justiça, a memória de Gonçalo Ribeiro Telles. Foi com emoção que os seus velhos amigos puderam ver concretizada uma das suas mais antigas aspirações - o Plano Verde de Lisboa. Tenho na memória um dos últimos almoços de aniversário num pequeno restaurante na muito sua Rua de São José - que em tempos idos se chamou Estrada de Benfica, a partir das Portas de Santo Antão, quando os antepassados de Gonçalo para ali vieram, construindo suas casas. Estive a seu lado e em todo o tempo falou da necessidade premente de levar a cabo a salvaguarda da cidade e das suas raízes. O tema das hortas era uma antiga preocupação sua. Havia que deixar respirar as terras onde a urbe se implantava, designadamente ali junto da ribeira de Valverde. E invocava os seus combates na Avenida da Liberdade, para preservar o Parque Eduardo VII e a saída para Monsanto. Conhecedor profundo da história e da geografia, não esquecia os almocreves saloios que demandavam Lisboa e chamavam alfacinhas aos seus habitantes, num misto de ironia e inveja, por estes cultivarem as suas leiras... E se falava com preocupação do solo urbano, depressa passava para dois temas sempre presentes no seu entusiasmo: a paisagem global e o jardim do paraíso.
"A paisagem... tende a constituir uma unidade global de funcionamento ecológico, apesar da diversidade dos seus elementos constituintes. O sistema de relações que se verificam no território tende a estabelecer um entrelaçamento, cada vez maior, do espaço urbano com o espaço rural. A natureza desempenhará, nessa paisagem global, um papel fundamental", ensinava aos seus alunos. E se o mestre e professor iniciava o tom da conversa, depressa vinha a natural determinação. "Não podemos baixar os braços, a natureza e a paisagem continuam a ser destruídas." Um pouco adiante, na mesa do contido repasto, o arquiteto Fernando Pessoa e Luís Coimbra entravam na contenda, acompanhando o pundonor de Gonçalo. Era sempre do mesmo modo, com Augusto Ferreira do Amaral, Alexandre Bettencourt ou José Marques Moreira. Não era possível pensar nas coisas sem cuidar das causas e dos combates por fazer. E em tempos mais recuados, não esqueço a presença de Henrique Barrilaro Ruas, sobre as raízes antigas do comunalismo.
A cultura do espírito começa sempre na relação com a terra - trata-se de semear e colher, como no seu Centro Nacional de Cultura. E os combates foram vários e diferentes: desde a defesa da Capela de São Jerónimo em Belém até à Reserva Ecológica Nacional ou ao Corredor Verde de Lisboa... "O paraíso terrestre, para a civilização nascida na bacia mediterrânica, é, na verdade, um lugar objeto e não um conjunto de coisas. Nele a fonte, a construção do homem, o riacho, serpenteiam naturalmente, a amenidade do sítio e a diversidade da vida conjugam-se com a fertilidade e a produção dos frutos saborosos." Leia-se A Árvore em Portugal, escrito com Francisco Caldeira Cabral - lá está tudo o que é preciso para uma paisagem global equilibrada no ecossistema entre o Mediterrâneo e o Atlântico... Paredes-meias com a Praça de Espanha, na sua continuidade, está uma das obras mais acarinhadas do arquiteto paisagista - a sua obra-prima (com Viana Barreto), os jardins da Fundação Calouste Gulbenkian, os quais teve, no final da vida, o prazer imenso de ver ainda mais valorizados, com o projeto de Kengo Kuma e Vladimir Djurovic. Fora do modelo estático, Gonçalo sempre defendeu o equilíbrio dinâmico, envolvendo património cultural, material e imaterial, e salvaguarda do equilíbrio natural. E continuo sempre a ouvi-lo como naquela última primavera...
Administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian