Gonçalo Diniz:"Tenho 26 anos de carreira. Esta é a primeira vez que gosto de um trabalho meu"
Podemos revirar a banca de peixe?
Ui, ai vamos começar assim?[risos]
O que distingue um robalo de um cantaril?
É o nome [risos]! Estou a brincar. O robalo é um peixe completamente diferente, distingue-se pela textura e o sabor. Já o cantaril é um peixe vermelho, que é algo que nem toda a gente sabe. É mais gorduroso e tem mais escamas. Porém, as escamas não são tão duras.
O Joni, personagem que interpreta na novela Mar Salgado, na SIC, está a sair-lhe da... espinha?
O Joni está-me é a tirar o couro [risos]! É uma personagem muito rica ao nível da composição artística porque não posso exagerar. Ele tem de ser uma pessoa boa e humana e, ao mesmo tempo, cómica. É preciso gerir tudo isso. Estou a contracenar com o João Ricardo, que é um ator extremamente criativo, e eu com ele voamos muito alto.
Porque oferecem mutuamente boas contracenas...
Sim, é isso mesmo. Eu e ele temos uma ligação muito generosa enquanto atores. Mas voltando ao Joni... Vou contar-lhe uma pequena situação que me aconteceu no Mercado do Livramento, em Setúbal, onde gravamos a novela. Um dos chefes dos pescadores lá de Setúbal viu-me a mim e à Inês [ Castel-Branco] a gravar uma cena e veio dizer-me: "Eu já sei no que é que isso vai dar! Isso vai dar casamento! Como é que sei? Olhe, foi assim dessa maneira que começou o meu!" Conto--lhe isto para que percebam o quanto a história de Mar Salgado é real. O Joni e a Tina são dois peixeiros que se davam muito mal, têm uma picardia saudável e depois... Bom, atenção, não sei se o Joni vai acabar por ficar ao lado da Tina. Se calhar, até se junta ao Bento [João Ricardo] [risos]!
Quando a SIC e a SP Televisão lhe apresentaram esta personagem, qual foi a sua reação?
A minha reação foi centrar-me a estudar a personagem e tentar perceber, desde logo, onde é que ela se enquadrava. Pediram-me apenas para fazer aquilo que tinha feito com o Geraldo [novela Podia Acabar o Mundo, SIC] em que consegui "dar à volta" à personagem. E a Gabriela Sobral [diretora de Produção da SIC] foi tão querida na forma como me abordou que pensei: "Não tenho como não voltar agora a Portugal." Por acaso, tinha um projeto muito bom para fazer no Brasil. Mas, ao fim de quatro anos, é bom fazer uma paragem, ainda não sei se vou ficar aqui durante dois ou três anos ou se volto para lá. Não sei, logo se vê.
Que projeto deixou para trás no Brasil?
Era um projeto para a Fox Brasil. Mas tive de optar, são as opções de vida que nos fazem crescer.
Tratava-se de uma série?
Sim, era uma série policial. Sabe, eu tive muitos anos à espera que surgisse um trabalho com essa importância televisiva mas decidi vir para Portugal.
Voltemos à novela Mar Salgado e deixemos o Brasil para daqui a pouco. Como criou este homem, um peixeiro?
Para mim, o mais importante é conseguir "sacar" a alma de uma personagem. Neste caso, sim é importante aprender a amanhar um peixe mas, acima de tudo, julgo que o que faz a diferença é saber sacar a alma dos peixeiros, e eu fui ao encontro da alma deles. Comecei por passar muito tempo no Mercado do Livramento, em Setúbal, e acabei por ficar amigo de dois ou três casais que são de lá e que, hoje em dia, me levam para as suas casas. Dou-vos um outro exemplo: o brinco que o Joni usa na novela é uma homenagem a um senhor que se chama Joni, que é de Setúbal e trabalha na banca do mestre Carlos e da Dona Júlia, que, sublinho aqui, foram eles que nos ensinaram tudo. Eu queria usar um brinco ao estilo do Cristiano Ronaldo mas depois percebi que era um brinco grande. Estar no mercado em Setúbal e conhecer as pessoas foi muito importante. Mas, atenção, eu não crio tiques de ninguém.
Mas observa...
Eu gosto de criar as personagens de dentro para fora, ou seja, eu analiso o que está dentro e, naturalmente, os movimentos tornam-se coerentes. Quando realmente se capta a alma de uma personagem é impossível que os movimentos sejam falsos. Enquanto se se constrói uma personagem de fora para dentro é preciso ser-se muito bom para que o papel tenha um peso real.
Os atores de Mar Salgado foram, então, muitos ajudados pelos comerciantes...
Diria que as pessoas ajudam na medida que querem. Aquilo não é uma gravação de estúdio é, sim, uma gravação que é feita no horário de funcionamento do mercado, e isso é muito complicado. Está-se a tirar trabalho a eles, estamos a gerar uma certa confusão mas, ao mesmo tempo, estamos a atrair gente para acompanhar a novela. Gerir isso é complicado. É importante, por isso, saber--se bem o texto, deve estar híper bem decorado. Não se pode ir para lá para o mercado com falhas de texto.
E não há quem faça cara feia por causa da vossa presença? A verdade é que as gravações, como dizia, interrompem a rotina do mercado.
Não, não. E deixo aqui, desde já, o meu profundo respeito a toda aquela gente. De mim, eles vão ter tudo o que quiserem. As pessoas, desde quem trabalha na frutaria até a quem trabalha nos queijos, são fantásticas. Abraçaram-nos e receberam-nos de uma forma muito boa.
Posso fazer uma brincadeira?
Pode.
À conta de Mar Salgado tem comido boas caldeiradas e levado muito peixe à borla?
Tenho sim, senhora [gargalhadas]! Tenho comido boas caldeiradas e não me vai faltar peixe nos próximos anos, só se faltar no mar. Mas isso já seria assunto para outra entrevista porque eu sou ambientalista e preocupo--me bastante com todas as questões que envolvem o mar.
Temos um "jardim à beira mar plantado. Deve apostar-se mais na economia do mar? Qual é a sua visão?
O mar é das coisas mais ricas que Portugal tem, o nosso peixe é do melhor do mundo. Já visitei quase metade do mundo e nunca comi peixe como aquele que se come aqui em Portugal. Além disso, o nosso país é o melhor a cozinhar! É claro que todos os países têm as suas qualidades, mas Portugal é o melhor país para se comer de tudo.
Mar Salgado estreou-se em setembro e, desde então, tem sido líder. Como explica o êxito da novela?
Eu simplesmente não explico. Juro por Deus que estou impressionado! Tem sido fantástico. Quando ando na rua vejo o carinho que as pessoas têm por todas as personagens da novela.
O que está presente nesta trama que está a conquistar os portugueses?
Diria que a aposta no mar e no lado português. Pela primeira vez, estamos a fazer uma novela portuguesa com todo o conteúdo de Portugal. A alma do português está toda lá, desde quem trabalha na lota a quem trabalha nas conservas... E, além disso, a trama principal está muito bem desenvolvida, não acho que a história seja mais do mesmo, sinceramente. As histórias e os melodramas repetem-se em todas as novelas, mas, aqui, abordamos outras temáticas diferentes. É disso exemplo a diabetes, o amor entre um homem mais velho e uma mulher mais nova. A novela está rica.
Já espreitou Jardins Proibidos, em exibição na TVI, e que compete com Mar Salgado?
Não vou comentar. Sinceramente, nunca vi. Tenho curiosidade em ver os meus colegas a trabalhar, somos todos colegas e amigos, não existe essa rivalidade de que por vezes se fala. Pelo menos, comigo. Vivi num país, que é o Brasil, no qual atores da TV Record trabalham na TV Globo, e vice-versa. Quem é que em Portugal não trabalhou para a Plural Entertainment e para outras produtoras nacionais? Um ator tem, sim, de se preocupar unicamente com o seu trabalho e não se deve preocupar com o trabalho dos outros. O Johnny Deep, que é um ator que admiro, diz que não vê os filmes que faz. Eu identifico-me com uma frase que ele uma vez disse: "Eu sou pago para interpretar e para compor a personagem da melhor forma. A distribuição dos filmes é uma coisa que pertence à indústria e não a mim." Isto é, cada macaco deve estar no seu galho.
Mar Salgado tem supervisão da Globo. Sente que isso tem sido determinante para fazer o êxito da trama?
Pode ser, sim. Não esqueçamos que a Globo tem anos de experiência, eles desenvolveram métodos fantásticos. Ao nível das câmaras, que estão agora a ser usadas pela produtora SP Televisão, há uma diferença. Está a dar-se qualidade de imagem. Não tem como a novela dar errado, percebe? E se toda a gente pensar que vai ser um sucesso, isso realmente acontece. Eu acredito muito nisso: canalizamos a energia que queremos.
O espectador de hoje tem acesso a conteúdos televisivos como séries nacionais e internacionais através de múltiplas plataformas que estão a educar o olhar. Acha que chegou a hora de Portugal investir ainda mais no que toca à imagem?
Sim, é bem verdade. A novela é uma coisa e a série é outra. Ao vermos e termos acesso a novelas e outros produtos bons, nós, portugueses, temos mesmo de ser bons. Pergunta-me se temos de investir mais em qualidade? Sim. É isso que o [António] Parente está a fazer na SP Televisão.
As novelas devem ter mais ritmo no que toca a cenários, luz?
Sim, eu desafio por essa razão toda a gente a ver o Mar Salgado. Estamos a revolucionar, a luz é fantástica, a fotografia é fantástica! Vou dizer-lhe uma coisa muito sinceramente: tenho 26 anos de carreira e esta é a primeira vez que gosto de um trabalho meu. Eu agora, estou a ver. Normalmente, eu nunca vejo os meus trabalhos. Ou seja, via os dois primeiros episódios para ter uma ideia e depois não seguia mais.
Está a dizer que nunca gostou do que fez? Que não saía satisfeito dos projetos?
Não, eu saía satisfeito. Mas nunca fiquei assim... de boca aberta. Isto está demais! Estou... [abre de forma exagerada a boca]
Está de boca aberta com Mar Salgado?
Sim, é isso.
Fez, antes, várias novelas na TVI e está de regresso a Portugal após quatro anos a viver no Brasil. Que diferenças identifica na ficção da SIC e TVI?
Essa é uma pergunta complicada. Eu não trabalho para a TVI há sete anos, não faço ideia como está a TVI e a Plural Entertainment. Mas posso dizer que tenho saudades das séries e minisséries que eram feitas pelo Moita Flores. Deveria investir-se mais em minisséries. Acho que deveríamos fazer muita coisa sobre uvas, a produção de azeite, apostar-se em coisas do Norte e do Alentejo.
O que o fez voltar para Portugal?
Foi a novela. E também um projeto que quero implementar aqui. Trata--se de teatro de afásicos, que, para quem não sabe, são pessoas que perderam a fala devido a acidentes cerebrais, traumatismos, e que através do teatro recuperam, às vezes, quase a cem por cento a fala.
Pretende ainda arrancar este ano com o projeto?
Sim, estou já a visitar igrejas e outros lugares nos quais me possam ajudar. Quero captar afásicos para que possam ter um pouco mais de luz. Como faço este trabalho e sei que o faço tão bem... Vejo as pessoas a recuperar.
Como e por que razão tem esta sensibilidade para com estes doentes?
Foi uma coisa que me foi proposta pelo meu agente no Brasil. Ele tinha um sobrinho que tinha sido afásico e que recuperou a fala graças ao teatro. Aquilo que fiz lá foi escrever peças para essas pessoas. Eu sei exatamente o que cada um dos alunos é capaz de fazer e é a partir das capacidades deles que eu desenvolvo o texto. Orgulho-me de dizer isto: enchemos a sala de espetáculos do Frei Caneca, em São Paulo, que tem capacidade para 700 pessoas. E, repare-se, estava a chover nesse dia [risos]! O mérito não é meu, é deles. Pretendo apresentar um espetáculo com afásicos ainda este ano em Portugal. Enfim, temos de agarrar-nos à vida com alma, acredite-se ou não em reencarnação.
Acredita?
Muito. Acredito cem por cento.
É um homem de energias e de fé?
Sim, bastante. Acredito muito.
Tem 26 anos de carreira. Como explica a sua longevidade enquanto ator?
Tenho só uma explicação: o meu profissionalismo. Foi só isso que me manteve aqui até aos dias de hoje. A grande questão é ser-se capaz de nos mantermos no mercado e sobreviver. Não faria nada de diferente do que fiz, não tenho nada a apontar na minha carreira. Tudo pode acontecer na nossa vida. Há que acreditar e saber esperar.
Investiu numa carreira no Brasil tendo participado em Balacobaco, uma novela produzida pela Rede Record. Os quatro anos em que lá esteve correram como esperava a nível profissional?
Não correu como esperava porque, na verdade, eu não esperava nada.
Não?
Eu fui puro e livre. Eu queria fazer teatro e fiz um monólogo em 2009. Apresentei-o no Festival Internacional de Angra dos Reis, que é um dos maiores festivais da América Latina, e foi um sucesso. Desenvolvi os meus contactos e acabei por ir para São Paulo, a cidade errada.
As portas em televisão foram difíceis de abrir?
Depende. Lá o mercado é, realmente, muito competitivo. Estar no lugar onde está o Ricardo Pereira não é para todos. Ele tem mérito e soube aproveitar as oportunidades. O Brasil dá muitas oportunidades, mas se não se aproveitar... o barco passa.
Viu abrirem-se as portas que desejava?
Eu abri as portas que acho que merecia no Brasil e que estava apto para cumprir. Cada um tem o que merece. Eu acho que mereço o melhor, mas o conceito do que é melhor não somos nós que decidimos. É lá em cima [olha para o céu]. O desespero do ator quando está desempregado é não saber esperar.
Sentiu esse desespero?
Claro. Já passei o caminho das pedras, já tive e já perdi. Por falta de gestão, por desconhecimento. Nós temos formação para sermos atores e não gestores de carreira.
Em 2006 participou no reality show Quinta das Celebridades, da TVI. Voltaria a participar num formato destes?
Jamais. Na altura, precisava de dinheiro e entrei por isso. Mas jamais voltarei a participar num.
Aqui no Mercado da Ribeira, onde estamos, ouvi muita gente dizer: "Ele é mesmo uma simpatia!" De quem herdou o sorriso fácil?
Talvez o tenha herdado da minha mãe, que é brasileira, e do meu pai, que é o típico português. A simpatia de que as pessoas falam eu descrevo-a como alegria. E isso acho que é uma coisa que ou tens ou não tens, e se não a tens deves descobri-la. Eu descobri quando nasci.
Aos 42 anos, o que mais espera da vida?
Boa pergunta! Espero, sinceramente e acima de tudo, que o mundo se recomponha e que consiga encontrar paz universal.