Giuseppe nunca foi camponês, mas fotografa sempre como um deles

Inserida numa homenagem ao seu fundador, Maçariku, a Casa da Achada apresenta uma mostra antológica de Giuseppe Morandi, para quem as belas imagens de Paul Strand não chegavam para captar os camponeses
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Nascido e criado numa família de camponeses, Giuseppe Morandi foi datilógrafo da Câmara de Piadena, comuna no norte de Itália, até se reformar. Tem 79 anos. Nunca foi fotógrafo profissional. Nunca teve uma máquina sua. Ainda hoje não tem. E todavia, ninguém o diria, olhando para as paredes da Casa da Achada - Centro Mário Dionísio, em Lisboa. Nestas, há agora fotografias suas tiradas entre 1957 e os dias de hoje, numa exposição antológica que pode ser vista ali até 26 de setembro.

A sua primeira mostra foi feita numa oficina de um trabalhador, em Piadena. "As paredes eram muito feias, então forrámo-las com canas de bambu", conta o fotógrafo, num italiano que só alterna com o seu dialeto. À frente, nessas paredes da oficina, estavam as fotografias a preto e branco de Giuseppe, tiradas sempre durante o dia, resposta à ausência de flash.

Único na família a não seguir o ofício de camponês, o italiano da região da Lombardia escolheu antes retratá-los. "Fotografava as coisas que conhecia. Queria documentar a vida da minha aldeia." Conhecia o livro que o fotógrafo americano Paul Strand fez em Itália, com textos de Cesare Zavattini, chamado Un Paese (1955). "Eram fotografias belíssimas, perfeitas, mas ele não conhecia os camponeses. Não percebia o trabalho que eles faziam. Ia à procura de uma bela imagem." Giuseppe conhecia-os. Eram os seus amigos de sempre, era a sua família.

Começou a fotografá-los. "Depois, oferecia-lhes as fotografias. Eles não as punham em casa, mas à porta do estábulo. Porque em casa punham as fotografias do casamento, do nascimento dos filhos. Estas, como tinham que ver com o trabalho, punham no estábulo. Não queriam recordar-se da condição do trabalho em casa."

Circulamos pela exposição. Ali está o Micio, o seu grande amigo - Gianfranco Azzali de nome -, então jovem. Foi com ele que, em 1967, criou a Lega di Cultura di Piadena. Aquele grupo que começou pelos cadernos que eles faziam com entrevistas a camponeses e operários fará 50 anos em 2017.

"Eles contavam-nos as suas vidas e as suas lutas. Graças a Gianni Bosio [historiador italiano], as entrevistas foram publicadas. Foram distribuídas pelo presidente da câmara a todos os alunos da escola do 6º ano. Mas tinham histórias de militares, de prostituição... Até que o padre leu-o na igreja e o livro foi retirado", recorda.

A Lega não mudou nestes anos, garante. "Tem o objetivo político de lutar pelas condições de trabalho. E toma posições face aos eventos nacionais e internacionais. Fomos um dos poucos que denunciava a guerra do Vietname. Ainda acreditamos que podemos dar um contributo, seja a tirar fotografias, a cantar, ou a distribuir panfletos." Em 1975, o cineasta Bernardo Bertolucci consultou-os para filmar o épico Novecento, onde Micio acabou por entrar.

Canções de luta, canções de festa

É pela Lega que Giuseppe vem parar a Lisboa. Conheceu Maçariku (Vítor Ribeiro), fundador da Casa da Achada, que morreu em agosto de 2014, em Itália. Neste ciclo de homenagem que a Casa da Achada agora dedica a Maçariku, "Para que serve a memória", os amigos italianos da Lega di Cultura di Piadena tinham de estar presentes. Mas lá iremos, porque nesta altura eles ainda não tinham chegado ao pé das fotografias.

Nelas, vemos Micio a trabalhar. "Conheço-o desde os 15 anos. Ele mugia vacas. Trabalhava no estábulo e cheirava a estrume. Tornei-me amigo dele e da família." Lá está também a mãe de Micio, a pentear-se na rua, num domingo, "o dia de descanso". Depois vemos a matança do porco, "o pai do Micio", - a fabricar uma vassoura -, "e o meu pai"; a ceifa do trigo, as mulheres que lavavam a roupa.

"Já havia fotografias de camponeses, o tema foi aproveitado durante o fascismo, aquela ideia do trabalho... Mas as fotografias eram dos camponeses vestidos à festa, em pose. Não era valorizado o trabalho em si, era mais folclore. Fotografei os verdadeiros camponeses. Fotografo sobretudo aqueles de quem gosto", explica Giuseppe.

Jagit aparece pouco depois do fotógrafo falar da ida dos imigrantes para o campo, em Itália, "no final dos anos 1980, início dos anos 90", quando os italianos já não queriam mugir as vacas. Indiano e mugidor de vacas, chegou a Piadena com a família em 1982. Hoje a sua filha estuda Medicina em Nápoles. Jagit prepara as suas canções enquanto trabalha, para depois as cantar quando estão todos juntos. Quando também está Peto, que já se juntou ao passeio ao longo das fotografias. Pedreiro e fundador da Lega, Giuseppe filmou-o em Peto Il Muratore, que foi exibido ontem. Nunca o conseguiu fotografar. No trabalho, Peto é esquivo.

Jagit canta em italiano, mas as melodias são indianas. "Venho de longe / nasci onde vive a minha mãe." E termina em paródia: "Giuseppe Morandi come sempre em minha casa." É verdade, confirmam todos em gargalhada.

Lá fora está Bruno Fontanella, pedreiro reformado e dono de uma poderosa voz, da qual saem canções de trabalho, de luta, ou apenas de festa. O seu cancioneiro será ouvido e gravado hoje às 18.30, acompanhado pelas demais vozes italianas da Lega e pelo Coro da Achada.

Para melhor os escutar, e para os ver, há que olhar antes para as fotografias de Giuseppe.

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