Gina Lollobrigida - Morreu a Mona Lisa do século XX

Na sua época áurea, chamaram-lhe "a mais bela mulher do mundo", tendo protagonizado uma carreira de muitos sucessos em que a condição de estrela da produção cinematográfica de Itália a levaria a ser acolhida pela "fábrica de sonhos" de Hollywood - Gina Lollobrigida faleceu em Roma aos 95 anos de idade.
Publicado a
Atualizado a

A atriz italiana Gina Lollobrigida abandonou o cinema em 1997, mas é um facto que a sua aura de estrela permaneceu no imaginário cinéfilo. Celebrada ao longo das décadas de 50/60 como "a mais bela mulher do mundo", faleceu esta segunda-feira numa clínica de Roma - contava 95 anos.

Se consultarmos a página que a Wikipedia lhe dedica, encontramos muitas informações úteis sobre a sua trajetória de vida, com natural destaque para os títulos que cimentaram uma enorme popularidade, sobretudo junto das plateias europeias e americanas - uma referência obrigatória será o filme que, por assim dizer, ilustrou a sua lenda, chamado, precisamente, A Mais Bela do Mundo (1955), produção italiana realizada pelo americano Robert Z. Leonard, em que revive o romance atribulado da célebre cantora lírica Lina Cavalieri (cuja estreia ocorreu em 1901, em Lisboa, no Teatro São Carlos) com um príncipe russo interpretado por Vittorio Gassman.

Ao mesmo tempo, não deixa de ser desconcertante que a Wikipedia a defina como uma das derradeiras atrizes internacionais da "idade de ouro" de Hollywood, isto é, da produção dos grandes estúdios da Califórnia que se desenvolveu a partir do final da Primeira Guerra Mundial até meados da década de 60 (quando a concorrência crescente da televisão levou à reconversão das estruturas herdadas do período clássico). É bem verdade que não fará sentido evocar a filmografia de Gina Lollobrigida omitindo a sua passagem pela produção dos EUA - lembremos o exemplo desse grande sucessos que foi Come September (1961), entre nós lançado como Idílio em Setembro, subtil melodrama em que contracena com Rock Hudson, com assinatura de Robert Mulligan, um dos produtores/realizadores da geração que transfigurou os padrões dramáticos e industriais de Hollywood. Mas não é menos verdade que a sua imagem de atriz - e, em particular, a dimensão de "sex symbol" que partilhou, em assumida rivalidade, com Sophia Loren - possui as suas raízes, e também alguns dos filmes mais emblemáticos, no contexto muito particular do cinema italiano e europeu.

Nascida a 4 de julho de 1927 na cidade Subiaco, situada a cerca de 70 km do centro de Roma, Gina Lollobrigida (nome próprio: Luigia), conseguiu entrar no mundo cinema ainda muito jovem. Em 1946, Águia Negra, uma aventura no tempo dos czares dirigida por Riccardo Freda, trouxe-lhe alguma visibilidade, ainda que através de um pequeno papel secundário. No ano seguinte, a participação no concurso de Miss Itália não se traduziu numa vitória (ficou em terceiro lugar), mas potenciou a sua carreira cinematográfica - em 1950, viria mesmo a protagonizar uma comédia dramática intitulada Miss Itália, com realização de Duilio Coletti.

A partir daí, o impacto comercial de Gina Lollobrigida multiplicou os convites. Em 1951, por exemplo, surgiu em cinco filmes, incluindo o policial A Cidade Defende-se, de Pietro Germi, Enrico Caruso, de Giacomo Gentilomo, uma biografia do lendário tenor, e As Aventuras de Fanfan la Tulipe, de Christian-Jacque, contracenando com Gérard Philipe, na altura um dos nomes mais populares da produção francesa. Voltariam a encontrar-se em 1953, em O Vagabundo dos Sonhos, de René Clair, símbolo de um modelo de "lirismo" que pontuou o cinema francês antes da eclosão da Nova Vaga. No mesmo ano, protagonizava Pão, Amor e Fantasia, ao lado de Vittorio De Sica, por certo um dos exemplos mais perfeitos da clássica comédia romântica "à italiana", assinado por Luigi Comecini.

Um conflito com o produtor Howard Hughes dificultou a sua entrada na produção de Hollywood: por contrato, Hughes impediu-a, até 1959, de integrar o elenco de filmes americanos, a não ser que fossem rodados fora dos EUA. Acabou por acontecer, ainda em 1953, com aquele que é, provavelmente, um dos trabalhos mais pessoais de John Huston, e também um dos menos divulgados: Beat the Devil, entre nós O Tesouro de África, história entre o trágico e o rocambolesco sobre as atividades pouco recomendáveis de um grupo de personagens, britânicas e americanas, que tentam controlar um território do Quénia rico em urânio. Além do mais, para Gina Lollobrigida, o filme envolveu também a consagração de integrar um elenco de luxo, ao lado de nomes como Humphrey Bogart, Jennifer Jones e Peter Lorre.

Entre os grandes sucessos da década de 50 incluem-se ainda Pão, Amor e Ciúme (1954), sequela de Pão, Amor e Fantasia, de novo com Comencini e De Sica, Trapézio (1956), de Carol Reed, sobre o mundo do circo, ao lado de Burt Lancaster e Tony Curtis, e Nossa Senhora de Paris (1956), de Jean Dellanoy, segundo Victor Hugo. Em 1959, rodou o épico bíblico Salomão e a Rainha do Sabá, a despedida de Hollywood de King Vidor, um dos mestres vindo do tempo do mudo, e Quando Explodem as Paixões, de John Sturges, com Frank Sinatra, outro dos seus títulos mais populares. O encontro no ecrã Sinatra/Lollobrigida foi especialmente celebrada pelo marketing da época, através da frase "mais tarde ou mais cedo isto tinha que acontecer".

A popularidade de Gina Lollobrigida - que os italianos passaram a identificar pelo cognome carinhoso "La Lollo" - foi sendo pontuada por algumas distinções importantes. Assim, por exemplo, conquistou três Donatellos (prémios do cinema italiano) com o já citado A Mais Bela do Mundo e ainda Vénus Imperial (1962), de Jean Delannoy, biografia romanceada de Pauline Bonaparte, irmã de Napoleão, e Boa Noite, Sra. Campbell (1969), comédia de produção americana dirigida por Melvin Frank. Este último valeu-lhe uma nomeação para o Globo de Ouro de melhor atriz (musical/comédia); não ganhou, embora tivesse já recebido um prémio de popularidade, "atriz favorita", da Associação da Imprensa Estrangeira de Hollywood referente a 1961, o ano de Idílio em Setembro (este prémio deixou de ser atribuído em 1980).

Por vezes referida também como a "Mona Lisa do século XX", o enigma de Gina Lollobrigida sugerido por tal título estará ligado à própria diversidade que, pelo menos durante duas décadas, marcou a sua carreira - entre a condição de "sex symbol", estatuto indissociável do imaginário erótico dos anos 60, e a sua afirmação em alguns papéis de peculiar dramatismo (de que o filme de Huston será um incontornável destaque).

Como aconteceu a outros atores e atrizes da mesma geração, com carreiras iniciadas na transição das décadas de 50/60, Gina Lollobrigida foi necessariamente sentindo que, para o melhor ou para o pior, a produção cinematográfica evoluiu por caminhos que já não eram os seus. É certo que continuou a surgir em algumas produções que se distinguiam, pelo menos, pela sua ambição comercial - lembremos o sugestivo exemplo de Mulher de Palha (1964), thriller britânico de Basil Dearden em que contracenava com Sean Connery, na altura já famoso como James Bond. Mas os filmes foram-se tornando cada vez mais raros, ainda que, por vezes, com autores francamente inesperados - lembremos King, Queen, Knave (1972), realizado pelo polaco Jerzy Skolimowski a partir de Vladimir Nabokov (Rei, Dama, Valete), resultante de uma coprodução RFA/EUA.

A televisão surgiu como uma alternativa possível, ainda que Gina Lollobrigida nunca tivesse encontrado no pequeno ecrã qualquer eco das glórias do seu passado cinematográfico. Participou, por exemplo, no papel de fada, na mini-série italiana As Aventuras de Pinóquio (1972), de Luigi Comencini, com Nino Manfredi no papel de Geppetto, e surgiu em cinco episódios de Falcon Crest (1984), série que lhe valeu uma derradeira nomeação para um Globo de Ouro.

Ironicamente, ou talvez não, ao abandono da carreira de atriz sucedeu-se algum envolvimento com a vida política: primeiro, em 1999, nas eleições para o Parlamento Europeu, como candidata do partido de Romano Prodi; mais recentemente, em 2022, com os euro-cépticos do ISP - em ambos os casos não foi eleita. Seduzida pelo jornalismo, em 1972 obteve autorização para realizar uma entrevista filmada com Fidel Castro. A partir de finais da década de 70, dedicou-se à fotografia, tendo registado retratos de personalidades como Henry Kissinger, Audrey Hepburn e Ella Fitzgerald. Como resumir os contrastes desta biografia? Talvez citando a sua personagem de Idílio em Setembro, quando responde a Rock Hudson, que a acusa de dizer coisas sem sentido: "Não tenho que fazer sentido. Eu sou italiana!"

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt