Gigante geringonça

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A "geringonça" - o governo do PS com o apoio parlamentar de BE, PCP e PEV, saído das legislativas de 2015 - foi difícil de explicar no Brasil. Não pelo ruído linguístico - a palavra usa-se aqui com o mesmo significado - mas pelo ruído geográfico - por aqui, tudo é noutra escala.

Comecemos pelo fim. Bolsonaro vai acabar o mandato acumulando, além dos escândalos familiares, fraudes nas pastas da Saúde, do Turismo, do Ambiente, da Cidadania, do Desenvolvimento, da Educação.

"Ah, mas e o Lula, o Lula, o Lula?", perguntarão, furiosos, como sempre, os bolsonaristas. De facto, se é indiscutível que o antigo sindicalista saiu do Planalto em 2010 com um país menos faminto e desigual e mais justo e respeitado do que quando entrou em 2003, também é verdade que o Mensalão e o Petrolão lhe mancharam a obra.

No entanto, o que se pretende provar aqui é que a culpa das fraudes em série de hoje ou dos escândalos milionários de ontem são menos dos presidentes do Executivo e mais da selva de 30 partidos no legislativo, boa parte deles compostos por oportunistas assumidos - o infame "centrão".

O PS, naquelas eleições lusitanas, elegeu 37,4% dos deputados da Assembleia da República. Teve de ir à procura, à sua esquerda, de outros 13%. O PT, de Lula, não foi além de 17% em 2002 - ficou a gigantescos 33% da maioria parlamentar. E o PSL, partido de Bolsonaro em 2018, meros 10,14%, ou seja, precisou de convencer uns 200 deputados a aderirem-lhe. Calcule-se, portanto, o tamanho das geringonças brasileiras.

A esse propósito, o ex-deputado Miro Teixeira contou ao DN que, logo na primeira reunião do grupo parlamentar de Lula em 2022, o braço direito do presidente, José Dirceu, perguntou "vamos convencer os outros deputados a apoiarem-nos através da qualidade dos nossos projetos ou através de dinheiro?". A pergunta era retórica, claro. E assim nasceu o Mensalão: os deputados recebiam dinheiro para aprovar projetos.

No governo Bolsonaro, o Mensalão chama-se Tratoraço: para se blindar de um impeachment, o presidente ofereceu aos deputados cerca de 500 milhões de euros do Orçamento. Os presentes incluíram a cedência de tratores sobrefaturados em 259%, daí o nome dado ao escândalo.

A corrupção no governo Bolsonaro já existia, mas explodiu sobretudo depois do pacto dele com o diabólico "centrão". Assim como o Mensalão e o próprio Petrolão, no caso de Lula, serviram sobretudo para alimentar o mesmo "centrão".

Para se sobreviver na política do Brasil, seja governando bem, como Lula governou, seja governando mal, como Bolsonaro desgoverna, é necessário manter os cerca de 200 parlamentares assumidamente oportunistas do "centrão" saciados. Dilma resistiu a fazê-lo e foi derrubada por eles. "Se fosse presidente do Brasil, Jesus Cristo aliava-se até com Judas", tentou explicar um dia Lula à sucessora.

Daí que no Brasil não se entenda por que se chamou geringonça a um governo tão simples como o de António Costa em 2015, com apenas três ou quatro partidos, todos mais ou menos do mesmo campo político. Geringonça mesmo é aliar-se a dezenas deles, movidos só por dinheiro, como no Brasil. Uma geringonça que tenderá a eternizar a corrupção no país seja eleito em outubro quem for - até podia ser Jesus Cristo.

Jornalista, correspondente em São Paulo

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