Gestão da mudança na saúde – aspetos críticos
Era uma vez... Há cerca de 100 anos, Ramalho Ortigão publicou n'O Século um artigo intitulado "Os médicos", onde escreveu "remédio que curou o avô, adoece o filho e mata o neto".
A forma de fazer que tornou possível, na década de 70, construir as bases do Serviço Nacional de Saúde (SNS) não permite hoje requalificá-lo de modo a corresponder aos desafios do nosso tempo. O velho modelo de governação que herdamos acompanha a lógica da administração tradicional: hierarquiza verticalmente o conhecimento e a inteligência. E, contudo, este paradigma, pouco tem a ver com o mundo atual.
No seu notável trabalho Uma Teoria para a Democracia Complexa, 2021, Daniel Innerarity observa que o "simplismo que decorre dum desfasamento entre os velhos conceitos teóricos e as novas realidades" e a prática política que sobrevive pelas vantagens da simplificação, num mundo que não compreende, "compensa a penúria analítica com a prescrição fácil".
Focar o discurso da saúde nos desafios do nosso tempo. Na atualidade, necessitamos de respostas agora para uma população muito envelhecida - pessoas com múltiplas doenças e disfunções, por vezes frágeis e dependentes, que necessitam cuidados frequentes de saúde, mas também de apoio social.
Simultaneamente, precisamos de olhar, a mais longo prazo, para o futuro das crianças e dos jovens - dos múltiplos aspetos do seu desenvolvimento humano, da promoção e proteção da sua saúde.
Precisamos de uma coisa e outra, ao mesmo tempo.
Minouche Shafik, na sua obra recente, What We Owe Each Other - a New Social Contract(2021), revela: face à pergunta "terão os jovens uma vida melhor do que a dos seus pais", 78% dos chineses e 65% dos indianos responderam positivamente, e só 22% dos britânicos e 21% dos espanhóis responderam da mesma forma.
Greer Scott e colaboradores observaram recentemente que o envelhecimento da população não resultará necessariamente num conflito entre gerações e numa crise nos sistemas de saúde: "o problema não é tanto a evolução demográfica, mas os desafios políticos da criação de políticas públicas, justas, sustentáveis e efetivas para todas as idades" (Aging and Health. The Politics of Better Policies, 2021).
Transformar a vários níveis, simultaneamente. Responder significativamente aos desafios do nosso tempo implica progredir simultaneamente a vários níveis no sistema de saúde.
A morbilidade múltipla que acompanha o envelhecimento acentua a necessidade de integrar cuidados de saúde - gerir o percurso das pessoas através dos serviços de que necessitam para assegurar bons resultados. Assim, há que fazer cumprir a lei que garante o acesso dos portugueses aos cuidados de saúde. Tal não é possível sem conseguir atrair e reter profissionais no SNS e assegurar uma boa articulação com serviços sociais. Tudo isto requer um sistema de informação enquadrado numa estratégia de mudança. Este permite não só uma governação clínica a favor da qualidade dos cuidados, mas também estratégias locais de proteção e promoção de saúde. É evidente que todas estas ações devem ser acompanhadas por desenvolvimentos organizacionais do SNS. Mas estes não beneficiam em ser desenhados aprioristicamente. Devem configurar-se a partir dos objetivos concretos acima assinalados.
Novo modelo da governação da saúde. Realizar os progressos necessários, simultaneamente, ao nível dos cuidados, da gestão e organização do SNS, sem perder o foco naquilo que é importante para as pessoas, requer um novo modelo de governação da saúde.
Este terá que alicerçar-se em dispositivos competentes de análise e direção estratégica.
Por um lado, é preciso conhecer em detalhe os desafios prevalentes e, ao mesmo tempo, as atitudes e agendas dos diversos atores sociais.
Por outro, é necessário compreender que, na atualidade, estamos perante uma inteligência amplamente distribuída, em múltiplas fontes de iniciativa que interagem intensamente entre si, cooperando, por vezes competindo. É indispensável enquadrar e direcioná-las através de um conjunto de instrumentos, frequentemente de natureza subtil, utilizados simultânea e combinadamente.
Um novo modelo de governação da saúde deve reconhecer a necessidade de convergência com outras agendas de sustentabilidade e bem-estar, com a do clima, a da segurança e a das desigualdades sociais.
Mobilizar o conjunto da sociedade - valorizar os intangíveis. Um novo modelo de governação reconhece a importância da forma como o conjunto dos atores socias interagem na realização de objetivos de interesse comum. As mudanças necessárias requerem uma resposta social alargada.
Tal implica um especial investimento em arquiteturas, instrumentos e inteligência de natureza colaborativa. Para isso importa valorizar intangíveis significativos: os da não-acomodação - Dante Alighieri, que faleceu há 700 anos, relegava para o pior e mais quente território do seu Inferno, não os maus, mas os indiferentes; os das relações de confiança - segundo a OCDE, se perguntarmos aos dinamarqueses se confiam nos seus concidadãos, 74% respondem que sim, esta percentagem desce para 45% para o alemães, ficando nos 20% nos portugueses (e isto importa); os do sentido de pertença - António Arnaut (2013) via o SNS como um património moral irrenunciável da nossa democracia.
Deslaçar o nó górdio. O modelo de governação da saúde, que se vem repetindo, de uma legislatura para a seguinte, há décadas, está esgotado. Não consegue "fazer dançar o elefante"! As recentes negociações à volta do orçamento da saúde para 2022, medida a medida, ilustraram-no de novo. Negociar a "exclusividade" dos profissionais, em vez de uma política para as profissões; negociar a autonomia dos hospitais, em vez dos procedimentos que asseguram autonomia com bom desempenho; negociar "medidas avulsas", em vez de um projeto para o desenvolvimento do SNS, capaz de congregar uma ampla base social de apoio - são exemplos daquilo que é necessário rever, profundamente, na governação da saúde.
Professor Catedrático Jubilado, Escola Nacional de Saúde Pública, Universidade Nova de Lisboa