Gestação de substituição: um sonho ameaçado pela guerra
A constituição de uma família assume, na nossa sociedade, um papel fundamental. Acontece que os problemas de infertilidade com que os casais cada vez mais se deparam impedem, de certa forma, a conceção de filhos biológicos, o que inviabiliza os projetos parentais por meios reprodutivos naturais. Face a este panorama, a ciência criou mecanismos para, artificialmente, colmatar a infertilidade, quer através de técnicas de procriação medicamente assistida, quer através do mecanismo da gestação de substituição. E apesar de há muito, na prática, se recorrer à gestação de substituição, a verdade é que só a partir de 2016 este procedimento foi admitido em Portugal. Até então, a gestação de substituição era absolutamente proibida, tal como continua a ser em alguns países do globo.
Embora o nosso legislador tenha optado pelo termo "gestação de substituição", a verdade é que há outras designações para esta técnica reprodutiva, nomeadamente "maternidade sub-rogada", "gestação para outrem", "mãe hospedeira", "barrigas de aluguer", entre outras.
No nosso ordenamento jurídico, apesar de o contrato de gestação de substituição ser aceite, embora (ainda) a título excecional - pois estes contratos só podem ser celebrados no caso de ausência de útero, de lesão ou de doença deste órgão ou outra situação clínica que impeça de forma absoluta e definitiva a gravidez da mulher -, o regime a ele associado comporta várias particularidades, nomeadamente a sua gratuitidade (os casais não podem pagar às gestantes de substituição pelo facto de as mesmas desenvolverem a gravidez). Acontece que, a ausência de critérios para as vicissitudes da relação, bem como a contrariedade de soluções leva-nos a concluir que este fenómeno está mal regulado, com várias lacunas e problemas, não só jurídicos, mas também éticos. Tal é evidente pelo facto de a última alteração à Lei que regula a gestação de substituição - a Lei 32/2006, de 26 de Julho - ter ocorrido em 2021 - com a Lei 90/2021 de 16 de Dezembro - e ainda não ter sido publicado qualquer decreto regulamentar por parte do governo para regular o acesso a esta técnica.
CitaçãocitacaoA Ucrânia é o segundo país, a seguir aos EUA, que mais contratos de gestação de substituição celebra com estrangeiros. Estima-se que nesse país nasçam cerca de 2500 crianças por ano através do recurso a este procedimento.esquerda
As exigências e particularidades do nosso sistema, associadas ao facto de existirem diversos regimes nos vários países que compõem o globo, potencia o turismo reprodutivo, motivo pelo qual muitos casais portugueses recorreram a clínicas na Ucrânia para gerar uma criança através do corpo de um terceiro, como, agora, se tem noticiado amplamente.
A Ucrânia é o segundo país, a seguir aos EUA, que mais contratos de gestação de substituição celebra com estrangeiros (neste país o contrato de gestação de substituição assume a forma onerosa). Estima-se que nesse país nasçam cerca de duas mil e quinhentas crianças por ano através do recurso a este procedimento.
E se, em 2021, grande revolta causou o caso de uma clínica que tinha dezenas de bebés retidos à espera de serem entregues aos beneficiários por causa das regras do confinamento emergentes da pandemia de covid-19, neste momento, novas questões surgem neste mesmo país, atendendo à guerra que o mesmo trava com a Rússia.
Põe-se, efetivamente, a questão de saber se as gestantes de substituição devem fugir da Ucrânia, de forma a proteger o feto/embrião, ou se devem permanecer no país para ficar junto da sua família. De igual forma se coloca a questão de saber se os beneficiários podem impor algum tipo de comportamento à gestante de substituição - por exemplo, o abandono do país. Ou se as partes lesadas poderão recorrer ao mecanismo da alteração das circunstâncias para resolver ou modificar o contrato.
Em Portugal, ao Ministério dos Negócios Estrangeiros chegaram quinze pedidos de ajuda de casais com gestações de substituição em curso na Ucrânia. O problema agudiza-se face ao contexto bélico na Ucrânia e as soluções escasseiam. Por um lado, se as gestantes de substituição se exilarem em Portugal para fazer nascer a criança - tal como já aconteceu no Centro Hospitalar de São João -, as mesmas serão consideradas, para todos os efeitos legais, as próprias mães das crianças, em detrimento dos casais beneficiários. Por outro lado, sem teste genético, nem qualquer registo de nascimento, os bebés não podem passar a fronteira.
Face a este alarme, o Ministério dos Negócios Estrangeiros já anunciou que serão criados mecanismos excecionais, atendendo ao "contexto de guerra" que se enfrenta. Certo é que, quer a solução passe por uma suposta adenda extraordinária às regras de registo civil, quer a solução seja distinta e casuística, a verdade é que este regime deve ser repensado e clarificado, de forma a que seja possível não só solucionar casos como este, como também evitá-los, designadamente através de regras unificadoras que exijam uma conexão territorial para celebrar este tipo de contratos.
Advogada associada da Cerejeira Namora, Marinho Falcão