Gerir o CCB é como uma espécie de comissão em África

Almoço com Elísio Summavielle, presidente do Centro Cultural de Belém
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A escolha do Fidalgo para o nosso almoço tem tanto de preocupação gastronómica quanto de sentimentalismo. A comida é tradicional portuguesa, saborosa, feita com produtos de grande qualidade e pronta a casar com uma seleção de vinhos que nada deixa a desejar. A casa era ninho de "todas as grandes conspirações" e o senhor Eugénio, que lá está há uns 40 anos, é "um velho amigo, cúmplice de muitas aventuras", de Elísio Summavielle - "incluindo a Lisboa"94", para onde foi chamado pelo então vereador da Cultura de Lisboa João Soares, que já o desviara para a autarquia com o património a cargo, era Jorge Sampaio presidente da câmara. Nesses cinco anos que passou ligado à gestão da capital, havia dinheiro e "eu fiquei com uma área engraçada, que foi a intervenção urbana. Fiz a programação dos espaços todos da autarquia e fiz aqui uma grande intervenção, que deixou saudades, que foi a Sétima Colina".

Essa foi - a par do atual desafio como presidente do CCB, que visivelmente o entusiasma (ao contrário dos tempos passados no governo) - talvez a fase mais feliz da vida profissional de um homem que aos 60 anos continua a assumir-se "funcionário público em exclusividade". É assim que se define, ainda que reconheça que há um estigma, provavelmente alimentado por anos de governos a engordar a função pública com jobs for the boys e sem grande atenção a requisitos como a competência e a eficácia. E isso fez que se perdesse muitos quadros qualificados. "Uma administração que funciona consegue fazê-lo independentemente dos governos", defende, lembrando que ele próprio foi diretor-geral e subdiretor-geral com governos à esquerda e à direita - "e toda a gente sabe que eu sou de esquerda, mesmo da esquerda geringonceira, mas trabalho com qualquer governo e nunca me puseram em questão". Caso tivesse acontecido, provavelmente tinha puxado da nota de dez euros que sempre traz no bolso - "para pagar o táxi para casa, se me enxofrarem" - e não o viam mais nessas andanças. Até hoje, não aconteceu.

Divorciado e com dois filhos (34 e 30 anos), aos quais junta outros dois (18 e 13) que são só da companheira de há dez anos, Elísio Summavielle (nome de origem basca) é um homem tranquilo, bem resolvido e que não vê qualquer utilidade em esconder os seus gostos e clubes. Tem carta de marinheiro e já deu umas voltas em cima de pranchas de surf, na Ericeira da sua infância, mas gosta mais de nadar. É agnóstico - "não ateu..." -, joga ténis, é aficionado e não perde as corridas de toiros na Moita, cuja praça tem a mão do seu avô. E ainda que dispense as missas e rituais, continua a progredir na hierarquia da maçonaria, onde entrou há décadas, e chegou a mestre sem sequer saber que estava para subir. "Eles vão acompanhando o percurso das pessoas" e esta evolução é mais valorizada do que marcar presença nos rituais.

"Não percebo que haja maçons que tenham vergonha de dizer que o são, mas acontece muito - tal como nos toiros, há uma data de gente que vai ver corridas às escondidas a Espanha." Conta que, ao contrário das toiradas, não é coisa de família, mas conheceu "vários maçons porreiros, pessoas fascinantes que ficava a ouvir e com quem aprendia", e interessou-se. Reconhece que este tipo de associações funciona por vezes como um lóbi, mas recusa-se a participar nesses grupos "que vão para ali com um olho no burro e outro no cigano" e talvez por isso mesmo já tenha recusado vários pedidos de conhecidos para se juntarem à maçonaria. Ele próprio não precisou de convite: reconheceu que podia aprender com aquelas pessoas - "havia lá gente interessante, naquela altura, lembro-me de se discutir questões como o aborto, a eutanásia, a pena de morte..." -, fez o pedido para entrar e esqueceu o assunto até receber em casa a convocatória para a cerimónia de iniciação na Simpatia e União, a loja "mais antiga e a única que resistiu durante a ditadura".

Rejeitada a sugestão da lebre para o almoço - "eu e os roedores não temos grande relação", diz ao amigo Eugénio, que passa a tentá-lo com um polvo com feijão branco. À falta das iscas que trazia na vontade, acaba por concordar com uns pastelinhos de massa tenra de boa cara. Não lhes ficam atrás os medalhões de javali grelhados com batatas fritas que eu escolhi quase instantaneamente.

Um ano depois de ter assumido a gestão do CCB, cargo para o qual foi subitamente convocado pelo ex-ministro da Cultura e amigo de infância João Soares - Elísio fez o liceu no Colégio Moderno, depois de todos os públicos rejeitarem a sua candidatura, dados os "salsifrés" políticos em que já andava metido aos 15 anos, e recorda Maria de Jesus Barroso com o carinho de quem lhe mereceu especial atenção -, está consciente da missão que tem em mãos. E que passa por gerar saúde financeira mas também tornar o Centro Cultural um ponto vivo da cidade e sobretudo da zona culturalmente riquíssima em que está inserido.

O ritmo "é frenético" e a espera pela subvenção anual do Fundo de Fomento Cultural - que costuma vir em duas tranches de um pouco mais de três milhões de euros cada, em março e outubro, mas da que este ano ainda não chegou - faz-se longa, quando a conta-corrente já pesa meio ano de programação. "Ainda agora tivemos os 60 concertos dos Dias da Música. E queremos chamar as famílias, por isso os preços que cobramos estão muito abaixo dos reais", exemplifica, ainda que sublinhe não ser adepto da gratuitidade (razão pela qual lhe faz sentido que a entrada no Museu Berardo passasse a ser cobrada). A verdade é que só os custos fixos engolem os 6,7 milhões que recebe do Estado - os salários de 170 pessoas rondam os cinco milhões de euros; e depois há a eletricidade, a segurança, a limpeza...

Seja como for, para o presidente do CCB não fazem sentido as queixas de falta de dinheiros públicos para o setor. "Continuamos com este discurso do 1% do Orçamento do Estado para a Cultura, mas a verdade é que hoje, entre o financiamento efetivo que vem do poder central e o que chega das autarquias, estamos a falar de mais do que isso, é mais de 1,2% de financiamento público."

Ali, na sua casa, a prioridade é precisamente emagrecer custos e encontrar novas formas de gerar receitas próprias. Até para responder aos desafios de conservação e renovação que o CCB, aos 25 anos, tem de empreender. "Se não houvesse estas necessidades, não era eu que lá estava", diz Elísio Summavielle. Ri-se. Diz que a sua tarefa "é uma espécie de comissão em África" tal foi o cenário que encontrou - piorado pelo projeto do seu antecessor, António Lamas, de criar um eixo Belém-Ajuda.

Selecionado, provado e aprovado o tinto para acompanhar o almoço, o meu convidado confessa-se feliz por ter uma equipa jovem, a rondar os 38 anos - o que é pouco comum na administração pública. "Na minha casa-mãe, a Direção-Geral do Património, a média etária são 53, parece que estamos num centro de dia." E revela parte dos planos para o CCB, que passam por reconcessionar os restaurantes. "Já fizemos o concurso para o Bar Terraço e ganharam os donos do Topo (Terraços do Carmo). É gente boa. E ficam também com o Bar dos Artistas, com o Sanduíche Bar, cá em baixo. E agora vamos ver o restaurante A Comenda e os caterings."

A ideia é gerar atrativos que ajudem a "trazer malta", criar um conceito de cidade aberta - "inspirei-me numa entrevista da Ana Sousa Dias ao Vittorio Gregotti, em 1992, em que o arquiteto dizia que queria isso, que o CCB fosse uma cidade aberta. E é exatamente isso que eu quero também, uma coisa mais eclética, com mais públicos e menos clientelas; quero tirar um bocadinho o K da kultura".

Já deu outros passos nesse sentido, incluindo as sessões de cinema no Grande Auditório, com grandes fitas como Lawrence da Arábia, O Leopardo ou Cleópatra a captar um público que vai do avô aos netos. "E com isto temos lucro", garante, apesar de os bilhetes se ficarem pelos cinco euros. Para comemorar os 100 anos da Revolução Russa, haverá um cardápio especial que inclui Doutor Jivago e Ivan, o Terrível, e no verão cinema ao ar livre e os concertos do CCBeat, "grupos emergentes de malta nova a tocar nos jardins". Depois há o teatro, a dança, a ópera, a moda - áreas em que o CCB pouco entrava e em que Elísio quer apostar.

Explica-me que a fatia de leão do potencial de receita e da transformação que quer empreender é mais complexa. "A grande solução é o tal módulo 4 e 5, é acabar o projeto do Gregotti (e nunca houve grande preocupação com isso)", que passa por aproveitar os 23 mil metros de terreno na parte de trás do CCB. "Dá para um hotel com 130 quartos e isso vai trazer muita vida."

De resto, alguns resultados já aparecem - "não chegámos ao lucros, mas pagámos as dívidas todas e a receita aumentou. E com o hotel e a concessão do direito de superfície, aí conseguirei ter rendimento que nos dê uma navegação tranquila". Por isso mesmo, lançar o concurso internacional para avançar com o projeto ainda neste ano, nas Bodas de Prata do CCB, é uma ambição. "E gostava de trazer cá o Gregotti", confessa.

Grandes projetos para um mandato que termina em 2019. Devemos intuir que aceitaria fazer uma segunda comissão? "Eu nunca me agarrei aos lugares nem às coisas - já voltei a ser técnico depois de ser diretor-geral e foram três anos que me deram imenso gozo. E como dizia o meu grande mestre e amigo Daciano da Costa, que fez os interiores todos do CCB, a partir dos 60, temos de gerir o tempo com muita sabedoria. E eu, agora que fiz 60, começo a perceber a ideia." Talvez assim seja, mas o declínio de que fala está longe de encontrar reflexo no empenho e entusiasmo com que fala e planeia o futuro. Pergunto-lhe o que lhe falta fazer. Diz-me que não tem ideia... mas há de dar-me resposta mais adiante.

Benfiquista convicto e formado em História, com uma carreira sempre ligada ao Património, é já com o almoço a caminhar para o fim que Elísio vai viajando no tempo para recordar os tempos que o tornaram dessa "esquerda geringonceira" com que se identifica, ainda que se tenha afastado da União dos Estudantes Comunistas logo após a revolução, depois de ter conhecido "as obtusidades da Bulgária" e de se ter revoltado com a falta de espírito crítico com que os outros discípulos comunistas bebiam o pensamento que lhes era passado.

"Antes do 25 de Abril, a minha casa era assim um porto de abrigo para todos quantos eram perseguidos, os meus pais e os meus avós eram republicanos democratas - o meu avô, volta e meia, era preso - e eu mesmo em miúdo já andava nessas lutas. Era da turma do Louçã, meti-me na política antes dele."

Ri-se, ao falar desses tempos de liceu, em que fez amizade também com Santana Lopes e Carmona Rodrigues, e ao recordar a "fornada de 1975-1980" da Clássica "de onde saiu o Rui Nery, o Nuno Severiano Teixeira, que foi ministro da Defesa, o António Costa Pinto, que é professor de História Contemporânea, o Francisco Bethencourt, que era um grande historiador - esse sim! -, o Hermínio Monteiro, que tinha a Assírio & Alvim, o Henrique Monteiro do Expresso..."

Com o apelo dos tempos de intervenção política ainda presente, recordo as próximas autárquicas. Quero saber se estaria disponível a assumir um lugar de vereador em Lisboa. Responde que cumprirá honradamente e até ao fim o seu mandato em Mafra - a que concorreu nas últimas eleições - e que até foi "uma experiência engraçada". Mas não é coisa que o entusiasme. Mesmo assumindo que não é homem de dizer "nunca" e tendo apenas elogios para Fernando Medina, com quem trabalhou no governo - "era ele secretário de Estado da Economia e conseguimos trabalhar muito bem" -, não vê que isso esteja para acontecer. Não lhe interessa. E Elísio, já o deixou claro, não está em idade de fazer o que não lhe dá prazer.

Uma olhadela ao relógio que usa sempre - era do avô, com quem se lembra de se sentar na esplanada da Brasileira, cumprimento irónico aos senhores da PIDE, "porque claro que eles sabiam quem eram os inspetores... o meu avô tinha um ódio de morte ao Salazar... Davam-me um Pato Donald ou um Zé Carioca para me entreter e ficavam ali a conversar" - diz-nos que é tempo de pedir os cafés. E como ambos fumamos e o senhor Eugénio já tem a casa quase vazia, vamos bebê-los para a esplanada, enquanto desfia as raízes minhotas da família. O pai, arquiteto, amigo íntimo de Nadir Afonso e único de oito irmãos que trocou o Porto por Lisboa (onde conheceu a mãe, professora), fazendo de Elísio "o mouro", para os primos, com quem ele, filho único, tem uma relação de enorme proximidade.

Conta que gosta de viajar - durante os anos de faculdade, bem antes de cair o Muro de Berlim, fez inter-rails que recorda com saudade -, sobretudo de voltar aos sítios onde foi feliz. Roma, Sevilha, São Petersburgo. "E há uma cidade que mexe muito comigo que é Buenos Aires." Demora-se na descrição do que o encanta naquela parte quase europeia da América do Sul e finalmente encontra o que talvez ainda tenha por fazer. "É uma onda diferente, o clima é parecido com o nosso... Adorava viver em Buenos Aires!"

Fidalgo

Água

Vinho tinto Quinta dos Temos Vinhas Velhas

Queijo de Azeitão

Presunto pata negra

Pastéis de massa tenra

Javali grelhado

4 cafés

Total: 54,85 euros

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