Ao longo desta legislatura, a primeira a ter um governo minoritário socialista apoiado (externamente) pelos três partidos de esquerda radical em Portugal, as palavras utilizadas pelos últimos - e em particular pelo Bloco de Esquerda e pelo PCP - relativamente ao executivo soaram mais a palavras de partidos de oposição do que de apoiantes. Das declarações dos líderes até aos cartazes que encontrámos nas ruas durante estes quatro anos, tudo podia levar um observador estrangeiro a crer que no país nada mudou em relação a alianças à esquerda..Uma retórica que não encontra correspondência nas palavras proferidas por António Costa no seu último discurso sobre o Estado da Nação e, mais do que tudo, não corresponde ao comportamento efetivo dos três partidos de esquerda radical no Parlamento durante a legislatura. No seu discurso, o primeiro-ministro começou por "saudar os grupos parlamentares de PS, BE, PCP e PEV por terem ousado derrubar um muro anacrónico e assumido a responsabilidade de afirmar uma maioria parlamentar como alternativa de governo"..Mesmo que esta solução não se repita no futuro próximo, de facto, este será certamente o maior legado desta legislatura: as três forças políticas à esquerda do PS foram peças essenciais para sustentar o governo minoritário que sobreviveu uma legislatura inteira. Mas como é que efetivamente funcionou a geringonça dentro do Parlamento? Para responder a esta pergunta utilizamos os dados do Observatório Português de Dinâmicas Parlamentares, uma plataforma que agrega diferentes dados sobre a atividade da Assembleia da República..Olhando para as percentagens de votos negativos a propostas de lei apresentadas pelo governo, podemos ver que os três parceiros do governo diminuíram substancialmente a sua oposição à política do executivo. Se o BE, o PCP e o PEV se opuseram à maioria das leis propostas pelos dois governos de Sócrates (10.ª e 11.ª legislatura) e pelo de Passos Coelho (12.ª), desta vez opuseram-se no máximo a um quinto das leis apresentadas pelo governo Costa..Untitled infographic Infogram.Coligação, não....Mesmo assim a gerigonça não apresentou o mesmo nível de solidez interna que a coligação PSD.CDS-PP apresentou na legislatura anterior - em que governava junta. De facto, em 69 iniciativas legislativas (de todas as origens), pelo menos um dos quatro parceiros votou de forma contrária a pelo menos um outro parceiro (13% do total). Em 11 casos, o PS votou contra uma iniciativa e pelo menos um dos outros partidos votou favoravelmente - em oito destes casos foi o BE que contrariou o partido no governo. Por outro lado, 15 iniciativas que contaram com a aprovação do PS foram rejeitadas pelo PCP e pelo PEV. Finalmente, 30 iniciativas que contaram com o voto favorável do PS foram rejeitadas por todos os seus parceiros parlamentares..Noutras 56 iniciativas (10% do total), pelo menos um dos partidos absteve-se, mas não votou contra outro partido da geringonça. De notar, no entanto, que, não obstante estas divergências, em 418 iniciativas toda a gerigonça votou no mesmo sentido, ou seja, a grande maioria das vezes (77%)..Aqui chegamos a uma outra característica desta legislatura que os dados no gráfico nos mostram. O PSD e o CDS não fizeram o mesmo nível de oposição às propostas do governo que os partidos à esquerda do PS fizeram em legislaturas anteriores. Se no início apresentaram valores maiores de oposição, foram rejeitando menos iniciativas do executivo ao longo da legislatura..Este efeito é mais acentuado no caso do PSD, demonstrando a estratégia de Rui Rio de aproximação ao PS. Aliás, as referidas 30 iniciativas com voto favorável do PS mas rejeitadas pelos seus parceiros parlamentares foram todas aprovadas, tendo o PS contado com o apoio expresso ou a abstenção de pelo menos um dos partidos de direita. Ou seja, se o PS contou quase sempre com o apoio da gerigonça, quando o apoio desta faltou este soube negociar com a direita..Será interessante também ver sobre que temas versavam as 30 iniciativas nas quais o PS não conseguiu o apoio da gerigonça. Oito discutiam alterações fiscais, cinco versavam assuntos de habitação, quatro iniciativas eram sobre lóbi, quatro referem-se a poder local, três são sobre dados pessoais e duas regulamentavam as novas plataformas de transporte individual..Oportunidade à esquerda.Se as análises deste governo têm-se debruçado principalmente sobre a capacidade de o PS liderar a gerigonça, não devemos descurar a oportunidade que esta representou para os restantes partidos de esquerda. Como podemos ver no gráfico acima, o BE, o PCP e o PEV viram uma maior percentagem de iniciativas suas aprovadas no Parlamento quando comparado com legislaturas anteriores. De destacar o Bloco, que viu mais de um terço das suas iniciativas legislativas (94) aprovadas. No mesmo sentido, o PEV apresentou quase tantas iniciativas (103) como nas três anteriores combinadas (114). Ou seja, mesmo que fora do governo, estes três partidos tentaram (e mais do que no passado conseguiram) definir a política nacional através da sua atuação no Parlamento..Olhando para trás, esta legislatura foi de facto inovadora pela inclusão das três forças mais à esquerda do Parlamento no arco da governação. Os dados apontam para o sucesso desta inovação, o PS conseguiu governar sem maioria e os seus parceiros conseguiram ajudar a determinar a política governativa. A questão que se põe é qual será o comportamento destes três partidos no futuro. Será que voltarão aos seus anteriores padrões de oposição. Ou será esta mudança mais estrutural do que conjuntural?