Gerações perdidas ou talvez não

Roaring Twenties, Anées Folles. Os anos 20 começaram antes, numa guerra a que se chamou grande. Os americanos Ernst Hemingway e John dos Passos fizeram aquela guerra, como condutores ou maqueiros de ambulâncias, no norte de Itália, mas não era "aquela" guerra. Era guerra, e perigosa ​​​​​​​como todas.
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Foram cinco os anos mais importantes da década de 1920. Ei-los: 1914, 15, 16, 17 e 18... Leram bem: o mais importante para aquela década - os loucos anos 20, Années Folles, como a batizaram os franceses, os crepitantes 20, Roaring Twenties, chamaram-lhe os ingleses e americanos - acontecera antes dela. Os anos da Grande Guerra, uma perdição absoluta. E esta marcou tudo o que se seguiu, os mapas (caíram e redesenharam-se impérios), a política (nasceu o proletariado, na Rússia comunista e nas democracias) e as artes. Uma parte destas, a literatura, iria alimentar-se durante um século com o que se passou nas trincheiras entre 14 e 18. E a década de 1920 seria a primeira herdeira.

Entretanto, relembremos a fonte dos acontecimentos. Desde logo, a grande guerra deve ser escrita assim, sem maiúsculas. Porque ela - muitos antes de ser erigida em estátuas e cunhada como época histórica - foi substantiva: lama e morte. Os portugueses têm um pequeno livro, de mau título e sem grande estilo de escrita, para conhecerem bem a hecatombe: A Malta das Trincheiras, de André Brun. Poderia ser ironia ter calhado esse testemunho a um escritor de teatro, e do levezinho, autor de peças como A Maluquinha de Arroios. Poderia, não fosse o tema pedir factos, factos e factos, como só um corajoso oficial voluntário para a frente de batalha os podia contar. A Grande Guerra exigia testemunhos presenciais, a imaginação não chegava.

O palco era aquele, norte de França e Flandres. Túneis de terra preta, enlameada ou gelada, cavados do tamanho dos ombros, não mais. A ação era ao ritmo ditado pelos generais que, sediados a poucos quilómetros e a abrigo, ordenavam saltar a trincheira e avançar uns metros. E, pior ainda do que a ação fútil e mortal, dias e semanas de espera, entremeados pelo cair dos obuses.

Há fotos feitas em centenas de quilómetros ao longo das fronteiras norte e leste de França que nos mostram o lugar dessa guerra: começa a vilazinha (aconteceu a centenas) por ser o edifício da escola, a mairie e a estação ferroviária; depois, as casas vão desaparecendo da paisagem, há só muros e árvores partidas; finalmente, a terra rasa, revolvida, sem um palmo de muro nem um tronco... De cada lado desse nada, duas filas de trincheiras com homens inimigos. À espera.

À guerra, essa coisa feia mas tantas vezes empolgante, fora-lhe tirada toda ilusão de carga da brigada ligeira... Aquilo, aquela espera, sem esperança de conquista ou de glória, só com a espera da morte num inferno sujo e frio, e longo e longo, mexeu muito fundo numa geração de europeus. Até os estados-maiores enveredavam pelo absurdo.

Em várias ocasiões, com generais ingleses - quer dizer, do país da mais antiga democracia ali presente - aconteceu a ordem de mais um fútil ataque vir acompanhada pela lista de uma dúzia de soldados a serem fuzilados. Não tinham feito nada, nem protestar, nem mostrar-se cobardes. O fuzilar era só como exemplo, uma precaução. Os oficiais sabiam que comandavam homens sem esperança. Brun olhava para um dos seus homens sentado numa ruína e escreveu dele estar "a ouvir crescer a barba." Nada ou obuses a martelar o matadouro - e era tudo.

Inferno, mas mesmo esse com matizes, todos cinzentos mas um ainda mais inferno do que os outros. Em A Malta das Trincheiras, André Brun conta que depois da frente de combate havia ainda a terra-de-ninguém. Falso nome, porque a noite, "picada de estrelas e lavada de luar", era atravessada por atamancadores, que iam recompor o arame farpado e os parapeitos das trincheiras. E nessa terra-de-ninguém cruzavam-se patrulhas de ambos os lados. Que se encontravam, fingindo por vezes que não se viam... Entretanto, nas trincheiras, os homens barbeavam-se de cor, sem espelho. Os lãzudos, como Brun chamava aos companheiros (em francês eram os poilus, peludos), habituavam-se e um, apanhado a mirar por cima do parapeito, explicou: "Para ver de onde ela vem, meu capitão." A morte tratada em coisa do quotidiano.

Foram assim, dias, meses, anos. Marcou tanto a Europa e poucos dramas pessoais o mostram tanto como o destino de Stefan Zweig. Europeu, culto, humanista, aquele que entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial foi talvez o mais famoso dos escritores, saiu da Grande Guerra absolutamente pacifista. Tanto que, apesar de judeu, com os seus livros queimados, a sua Áustria ocupada e obrigado a exilar-se por Hitler, hesitou sempre em exigir uma outra guerra para combater o nazismo. Em 1942, amargurado por essa hesitação, suicidou-se, no exílio.

Quem viveu essa guerra de trincheiras, a Grande Guerra, como André Brun, foi subjugado por ela. O homem encontrara, enfim, o seu dominador, o anti-homem. Os derrotados dos dois lados, alemães como Erich Maria Remarque (A Oeste nada de Novo) e Ernst Junger (Tempestades de Aço) ou franceses, Blaise Cendrars (A Mão Cortada), Henri Barbusse (O Fogo), Roland Dorgelès (As Cruzes de Madeira), ambos, viram a enormidade e transmitiram-na. Dalton Trumbo escreveu e dirigiu, em 1971, uma obra-prima antimilitarista do cinema (E Deram-lhe Uma Espingarda) e Pierre Lemaitre ganhou, em 2013, o Goncourt, com o comovente romance Até Nos Vermos Lá em cima. Outros, Como Louis-Ferdinand Céline, interiorizaram a Grande Guerra, em que foi ferido, criando um seu universo próprio, pessimista e absurdo (Viagem ao Fim da Noite).

Os americanos Ernst Hemingway e John dos Passos fizeram aquela guerra, como condutores ou maqueiros de ambulâncias, no norte de Itália, mas não era "aquela" guerra. Era guerra, e perigosa como todas, Hemingway foi ferido, mas não foi na guerra absoluta e concentracionária das trincheiras. Gertrud Stein, judia americana que vivia em Paris, cunhou o termo de "Geração Perdida", para aqueles que na década de 20, alguns antigos combatentes da Grande Guerra, outros não, escritores americanos exilados em França, todos marcados pelo anúncio desesperado do que somos capazes. Hemingway escreveu, em 1926, O Sol Nasce Sempre(Fiesta), onde, na epígrafe, alude à Geração Perdida. Três anos depois, da sua experiência de guerra, ele escreve O Adeus às Armas, o seu primeiro grande sucesso internacional. De trás da sua guerra, uma história de amor - uma convivência contraditória, o amor e o mal absoluto da Grande Guerra.

Contradição mesmo? Voltem a André Brun, verdadeiro combatente entre a malta das trincheiras. Um dia, a páginas tantas, ele descreve-nos, à luz do poente, que "um grande cavalo preto arrasta o arado sobre o qual se senta, cachimbando, um velho de cabelos brancos." Um velho camponês flamengo, entre ex-camponeses transmontanos e ex-camponeses bávaros, lembrando-lhes, a esses jovens perdidos, que talvez ainda viessem a ter outra oportunidade.

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