Gente que sabe tudo sobre o vermelho
Maria é a maior especialista do mundo em vermelho. Tudo o que se sabe sobre o vermelho, Maria sabe. A suas investigações e trabalhos sobre os pigmentos e a química do vermelho, sobre a reação da luz e os comprimentos de ondas são referência para quem quer entender o vermelho. Toda a ciência, mesmo a ciência social do vermelho, não tem segredos para Maria.
Físicos, químicos, psicólogos, economistas e artistas, depois de lerem os seus textos, peregrinam a Boston para escutar os seus seminários e para saber tudo sobre o vermelho. Mas, quando finalmente entram no auditório e veem Maria, assalta-os a dúvida. Saberá ela mesmo tudo o que há para saber sobre o vermelho? Não lhe faltará um pedacinho de informação, nomeadamente a sensação de vermelho, uma vez que Maria é cega de nascença e nunca viu a cor em que é especialista?
Esta história é uma versão da experiência mental conhecida por Mary"s Room, criada pelo filósofo Frank Jackson para demonstrar a impossibilidade de se saber tudo apenas pelo estudo das propriedades físicas dos fenómenos - ou seja, pela razão, pela lógica e pelo método científico - uma vez que há informação, no caso a sensação de vermelho, que só se obtém pela experiência. A discussão é filosófica e longa, e pode ser lida na internet. Não é sobre ela que discorro.
Outro autor, o escritor Robert Heinlein, escreve (não sei se n"O Número da Besta ou no Friday) que numa democracia a diferença entre um governo de direita e um governo de esquerda é clara e tem que ver com o modo como se pratica o bem do povo.
Os governantes de direita vão para o poder para fazer negócios, diz ele, para se encherem de dinheiro. Ora a única maneira de se manterem no poder, continuando a fazer os bons negócios que para lá foram fazer, é dando ao povo aquilo que o povo quer. Se o fizerem continuarão no poder e a encher os bolsos.
Ora o problema da esquerda, segundo Heinlein, é que vai para o poder para fazer o bem do povo e não negócios (um princípio que talvez a recente esquerda neoliberal dos fatos impecáveis, ao aproximar-se da direita, tenha abandonado); e do bem do povo, a esquerda, tem uma conceção académica, livresca, quixotesca, mesmo. O bem do povo, para a esquerda, pode não ser (raramente é) aquilo que o povo quer. É sim aquilo que o povo, de acordo com a esquerda, precisa. Segundo Heinlein, a direita corrupta daria quase sempre melhores governos do que a esquerda utópica, precisamente porque, não querendo matar a galinha dos ovos de ouro, teria mais intuição para o bem do povo.
Claro que esta visão está hoje ultrapassada, pelo menos no que à separação esquerda-direita se refere. Hoje há esquerdas corruptas, como há direitas utópicas. E há, até, como parece ser do consenso geral, governos a soldo de empresas de tal modo gananciosas que são capazes de começar guerras (como a do Iraque) para fazer negócio, desprezando por completo o interesse dos que os elegeram.
Mas, no geral, o que nos diz Heinlein é que o bem utópico faz mais mal ao povo do que os interesses particulares que governam os Estados, porque nada tem que ver com o pão nosso de cada dia mas sim com a ideia de que um dia todos teremos croissants quentes e estaladiços à mesa. Até lá é sofrer.
Saber o que o povo ou a sociedade quer, sem nunca ter feito parte dela, é como saber tudo sobre o vermelho sendo cego. Muitos dos que se vão para lá encher, e no processo governam dando ao povo o que o povo quer, é gente que veio ou está muito perto dele e por isso tem medo de para lá voltar. Esses sabem o que o povo gosta porque sentiram e sentem o que é ser um deles.
Os que são dados a utopias, normalmente viveram em pedestais (académicos ou sociais), e têm ideias fixas sobre o que povo ou a sociedade devia ser; e acabam, a maior parte das vezes, desiludidos porque o povo não se conforma à sua ideia. E por isso são cruéis e aplicam remédios e castigos. São de esquerda e de direita, tanto faz, mas são quase sempre académicos, escravos de modelos teóricos e de contas que batem certo no papel, gente que viveu fechada no estudo, fechada em ideias, ou fechada em casulos sociais onde elas são reforçadas; gente que nunca fez, nunca sentiu, nunca se sujou. Gente que sabe tudo sobre o vermelho, que estudou e leu tudo sobre o vermelho, mas nunca o viu. São como a Maria.
Será esta a escolha? Se for nós somos o diabo.