Em 2015, ano que marcou o centenário do início do genocídio arménio, uma sondagem revelava que 91% dos turcos não acreditavam que os seus antepassados haviam seguido uma política de extermínio resultante em até 1,5 milhões de mortos. A Turquia nunca conseguiu olhar para o espelho e admitir o que historiadores (não turcos) estabelecem como um facto, pelo que o recente reconhecimento do genocídio arménio, por parte do presidente dos Estados Unidos Joe Biden, é mais um golpe na construção histórica da Turquia moderna, assente no orgulho nacionalista dos Jovens Turcos, responsáveis a um tempo pelas bases da modernização do país e por crimes hediondos..Associação Portugal-Arménia saúda "reconhecimento histórico" do genocídio pelos EUA."Durante uma guerra, acontecem coisas a ambas as partes, pelo que não faz sentido chamar-lhe isso", disse Selda, uma reformada de Istambul à AFP, quando se soube que Biden reconheceu o genocídio arménio. Antes, o presidente norte-americano falou ao telefone com o homólogo turco, Recep Tayyip Erdogan, no que foi a primeira conversa entre ambos com o democrata na Sala Oval, três meses depois da tomada de posse - a ordem pela qual um novo presidente dos EUA fala aos líderes mundiais é um indicador da relevância e do momento das relações atribuída a cada país..Durante a campanha eleitoral, o vice de Obama havia prometido seguir os passos de 31 estados (Portugal incluído), do Parlamento Europeu e do Congresso norte-americano e reconhecer o que os seus antecessores, por taticismo, não fizeram..Citaçãocitacao"Numa época de turbulência regional e de amargo declínio económico, a Turquia precisa mais dos EUA do que o contrário. Sob Joe Biden, existe uma política clara de pôr à distância Ancara", diz Asli Aydintasbas .Erdogan disse que Biden precisava de "olhar para o espelho" ao falar de genocídio. "Também podemos falar sobre o que aconteceu aos nativos americanos, aos negros e no Vietname", disse o líder turco. Antes, Ancara convocou o embaixador dos EUA para notar que a decisão de Biden tinha aberto "uma ferida nas relações que é difícil de reparar"..Twittertwitter1385996198532747267.Porém, a Turquia não anunciou medidas de retaliação, em contraste com o sucedido quando outros países reconheceram o genocídio. Em 2019, depois de o Senado dos EUA ter adotado a resolução do reconhecimento do genocídio, Erdogan havia ameaçado fechar a base aérea de Incirlik, ao serviço da força aérea norte-americana desde 1980 e onde estará arsenal nuclear. Na semana passada houve uma manifestação junto ao consulado norte-americano em Istambul a exigir a saída dos militares de Incirlik, uma ideia também defendida pelo líder do Partido dos Patriotas, Dogu Perinçek.."Parece que Ancara irá minimizar a questão do reconhecimento do genocídio arménio e não arriscar uma maior degradação nas relações com os EUA. Os laços turco-americanos têm sido muito complicados ao longo dos últimos anos, mas sob Joe Biden existe uma política clara de não passar cartão à Turquia, pondo à distância o governo de Ancara", comenta ao DN Asli Aydintasbas, perita do European Council on Foreign Policy.."Isto torna Ancara muito nervosa e há um desejo de consertar as relações com Washington. É por isso que é provável que tanto Erdogan como o seu governo minimizem a questão do genocídio. Numa época de turbulência regional e de amargo declínio económico, a Turquia precisa mais dos EUA do que o contrário. Durante muito tempo, os turcos disseram aos homólogos norte-americanos que o contrário era verdade. Agora os americanos estão a tentar inverter essa dinâmica de poder", sustenta. "Ele é um pragmático e pressionará, se puder, mas cederá se tiver que ser", diz a ex-jornalista turca sobre Erdogan..Em 2014, o governo turco enviou condolências aos arménios, e admitiu que 300 mil morreram ao serem expulsos das cidades e vilas da Anatólia Central e Oriental nos anos finais do Império Otomano, uma consequência de uma "deportação necessária" porque se temia que os arménios tomassem o partido da Rússia durante a guerra. Ancara alega não ter havido uma iniciativa deliberada para exterminar a população arménia, e que também morreram muitos turcos nesse período..O termo genocídio, que ainda não existia à época, foi cunhado por um judeu polaco exilado nos Estados Unidos, Raphael Lemkin. Conta a biografia deste advogado que foi ao ler sobre os massacres sofridos pelos arménios que surgiu a ideia de criar leis universais contra crimes em massa. Mas para o Estado turco, a palavra genocídio não pode ser conjugada com arménio. É um delito previsto no código penal desde 2005, posição que entre os principais partidos só merece reparos do pró-curdo HDP..As novas gerações, com mais acesso a fontes alternativas que a historiografia oficial, estão mais abertas ao reconhecimento da mortandade causada pela deportação para o deserto sírio e pelos assassínios em massa, e até criaram uma petição online em 2008 a pedir desculpa pela "catástrofe", mas a iniciativa acabou com o site encerrado por ordem judicial..cesar.avo@dn.pt