Génesis visto da América e Édipo lido por Cocteau
Stravinsky é o elo que liga as obras que amanhã sobem ao palco do São Carlos. Pois que, se é o autor de Oedipus Rex, foi também um dos compositores que assinaram trechos para a Genesis Suite, que o São Carlos ora dá - "em estreia europeia", alvitrou Paolo Pinamonti na apresentação da temporada.
Em três noites consecutivas, poderemos escutar ambas as obras, tocadas pela Sinfónica Portuguesa (direcção de Donato Renzetti) e recitadas por Fanny Ardant, actriz cuja última visita a Lisboa fora motivada pela edição de um disco de Mísia. Acresce o elenco para o Oedipus: tenor Will Hartmann (Édipo), mezzo Mariana Pentcheva (Jocasta), barítono Keel Watson (Creonte/ Mensageiro), baixo Victor von Halem (Tirésias) e tenor Pedro Chaves (Pastor), para lá do Coro do São Carlos (coro de Tebanos).
Oedipus Rex usa um texto de Jean Cocteau (1889-1963) baseado no Édipo Rei, de Sófocles (séc. V a.C.) e vertido para o latim por Jean Daniélou. Conta-se que, sensível ao desgosto de Cocteau por ver o francês do seu texto tornado "invisível" na versão latina, Stravinsky anuiu a que o poeta escrevesse uns textos que intercalariam os város quadros da obra, com a função de esclarecer a acção. São estes textos que Ardant irá recitar.
Stravinsky trabalhou no seu Oedipus desde 1925, dando-se a estreia a 30 de Maio de 1927, no Théatre Sarah Bernhardt, mas em versão de concerto. Coube à Ópera de Viena a primeira encenação, a 23 de Fevereiro de 1928. Ainda neste ano, Otto Klemperer pô-la-ia no cartaz da sua Krolloper (Berlim).
Em dois actos e com uma duração inferior a uma hora, Oedipus Rex articula-se numa série de árias, duetos e coros, ligados pelos textos recitados. Musicalmente, a obra enquadra-se no período neo-clássico do compositor, sendo também marcada por uma predominância do elemento rítmico, típica do autor, e por harmonias que mesclam o exemplo clássico e a incorporação de elementos jazzísticos. A opção pelo latim prende-se com a vontade do autor em emprestar à obra um carácter mítico e hierático de invocação.
Dezassete anos mais tardia é a génese da Genesis Suite, projecto do maestro de cinema Nathaniel Shil- kret para uma edição discográfica da Bíblia. Shilkret queria sete ilustrações musicais para os primeiros 11 capítulos do Livro do Génesis (que tem 50), desde a Criação até à Torre de Babel e escolheu para o efeito um conjunto de compositores de ascendência judaica (mais ou menos assumida) que se tinham refugiado em Los Angeles durante a II Guerra.
Acordou-se a seguinte distribuição: Schönberg (1874-1951) faria um Prelúdio para a Criação, cuja ilustração musical caberia ao próprio Shilkret; Alexander Tansman (1897-1986) ficou com o Adão e Eva; Darius Milhaud (1892-1974) com Caim e Abel; Ernst Toch (1887-1964) com o Dilúvio; Mario Castelnuovo-Tedesco (1895-1968) com a Arca de Noé e Stravinsky (1882-1971) com Babel.
A obra estreou a 18 de Novembro de 1945, em Los Angeles, mas um incêndio em casa de Shilkret, anos depois, inutilizou em grande parte as partituras. O trabalho de reconstrução, realizado na década de 90, coube a James Westby e Pat Russ. É graças a eles que ouviremos as contribuições de Schönberg, Milhaud, Castelnuovo-Tedesco e Stravinsky.