Gâmbia. Uma ilha comprada pelos portugueses
A Gâmbia é o país mais pequeno e mais estreito de toda a África, estendendo-se do mar para o interior do continente. É uma espécie de corpo encravado no Senegal. Estas fronteiras foram delimitadas, em 1889, pelos governos de França e da Grã-Bretanha que, na época, haviam chegado a acordo sobre o assunto. Curioso é o curso do rio que percorre o país em toda a sua extensão, o que confere à imagem mapeada da Gâmbia e do Senegal uma curiosa semelhança anatómica e sexuada com o corpo humano. A capital do país, Banjul, localiza-se na desembocadura do rio Gâmbia, no Atlântico, por onde passou a minha curta estada. Esta viagem aconteceu depois da saída do anterior presidente, Yahya Jammeh, em 2016, que promoveu um regime totalitarista e agressões aos direitos humanos, sendo que o país passou a ser informalmente muçulmano - por imposição e sem a adoção da Sharia - para angariar fundos dos países islâmicos ricos, mas sem quaisquer resultados. A viagem desde Cabo Verde permitiu-me conhecer a capital, a foz do rio e a ilha de Kunta Kinteh, que serviu de base para o comércio de escravos, desde o século XV até à independência da Gâmbia (1965), e que está inscrita, desde 2003, na lista do Património Mundial. Segundo a UNESCO, esta ilha e os seus sítios correlacionados testemunham as principais épocas e facetas do encontro entre a África e a Europa ao longo do curso do rio Gâmbia, desde o período anterior à escravidão até a independência, passando pela era pré-colonial. O local possui especial interesse histórico por ser um dos cenários do início e da posterior abolição do tráfico de escravos e devido ao seu papel como primeira via de acesso ao interior do continente africano. Em 1456, a ilha foi adquirida por Portugal aos governantes locais, ainda antes da nossa chegada a Cabo Verde (1462), iniciando-se a construção de uma fortificação e o assentamento de San Domingo, que incluía jardins e uma igreja com cemitério. Esta presença portuguesa faz parte dos testemunhos das diferentes facetas e fases do encontro afro-europeu, dos séculos XV a XIX. O rio Gâmbia foi particularmente importante, originando a primeira rota comercial para o interior da África. O local já era ponto de contacto com árabes e fenícios antes da chegada dos portugueses no século XV. A região constitui uma paisagem cultural, onde os elementos históricos são mantidos no seu contexto cultural e natural. O conjunto tem sete locais distintos: toda a ilha, os restos de uma capela portuguesa e de um armazém colonial na aldeia de Albreda, o edifício Maurel Frères na aldeia de Juffureh, a memória do pequeno assentamento português de San Domingo, bem como o Forte Bullen (1826) e a Bateria de Seis Canhões (1816). Curiosamente, estes últimos testemunhos foram construídos com a intenção específica de abortar o comércio de escravos, uma vez que se tornou ilegal no Império Britânico, após a aprovação da Lei de Abolição (1807). No final da minha visita àquela ilha adquirida pelos portugueses e agora "pertencente" à Humanidade, eu olhei de novo o Atlântico a partir da capital e concluí que o "slogan" deste país é apropriado, sobretudo vivendo ele, agora, sob uma paz democrática: "A costa sorridente de África."
Jorge Mangorrinha, professor universitário e pós-doutorado em turismo, faz um ensaio de memória através de fragmentos de viagem realizadas por ar, mar e terra e por olhares, leituras e conversas, entre o sonho que se fez realidade e a realidade que se fez sonho. Viagens fascinantes que são descritas pelo único português que até à data colocou em palavras imaginativas o que sente por todos os países do mundo. Uma série para ler aqui, na edição digital do DN.