Galamba: que Socialismo?

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"Isto anda tudo ligado"
Eduardo Guerra Carneiro

O estado a que o Governo do Partido Socialista chegou é, diga-se sem rodeios, preocupante. Até certo ponto chocante e, por último, revelador. O PS obteve maioria absoluta e, há dias, celebrou os 50 anos da sua existência. Fundado por Mário Soares a 19 de Abril de 1973, e cuja origem tem na A.S.P um dos momentos-chave da sua história e tem em Antero de Quental, José Fontana e Azedo Gneco três presenças inspiradoras do século XIX, quem sabe desse passado em que ideal e competência eram traves-mestras da acção política no contexto pré-Iª República. Grandes figuras do movimento socialista antes de 1973, do Núcleo de Doutrinação e Acção Socialista (1942-44), à já referida A.S.P, que Mário Soares, Manuel Tito de Morais e Francisco Ramos da Costa criaram em Genebra em 1964, deviam inspirar este PS. Tecnocratas nunca foram políticos com visão estratégica e raramente têm consciência histórica. Mas António Costa rodeou-se de fiéis ao Chefe -- tecnocratas, mas muitos nada conhecem do país real, são só gente de gabinete.

O Partido Socialista tem uma história indissociável da luta pela liberdade e a democracia em Portugal. Só o PCP, por onde passaram intelectuais e resistentes de enorme envergadura, pode orgulhar-se do mesmo património, pese embora, hoje, a ortodoxia cegar de anacronismo um partido fundamental para o nosso país. E no entanto, julgo que aliança de esquerda jamais deveria ter sido desfeita, pois a reboque do chumbo do OE de 2021 foi o socialismo que se descaracterizou por completo. É pena que este Governo, em quem muitos depositaram grandes esperanças, seja o espelho dessa descaracterização. Não obstante os indicadores económicos serem (diz-se) positivos, os portugueses não o sentem. O PM insiste em erros de casting. Da educação ancorada num ideal digital-tecnocrata estupidificante, à Justiça, morosa, com dois pesos e duas medidas; da corrupção na TAP, ao nepotismo óbvio em empresas e sectores estatais, há sintomas de doença sistémica na democracia portuguesa. Que diria Soares se estivesse vivo? A crise na habitação, os baixos salários, a carga altíssima de impostos, muito do PS de Salgado Zenha, de António Arnaut, de António Macedo e de Jorge Sampaio e de Maria Barroso - o socialismo de rosto humano -- parece ter desaparecido. Governa-se ao serviço da privatização e dos grupos económicos que têm milhões de lucros ao passo que quem trabalha, empobrece.

O caso de João Galamba é, neste contexto, o ponto culminante da ideologia oca que, de há duas décadas, faz de Portugal um país de fogos-fátuos. Do Euro-2004 às Jornadas Mundiais da Juventude, do World Web Summit aos eventos "para inglês ver", o erro do PS e do PSD está em olharem apenas para dentro das suas máquinas. Nós, portugueses, não vislumbramos praticamente ninguém que tenha prestado um serviço público digno desse nome, independentemente do partido A ou B ou C. Da história do computador roubado, à intervenção do SIS e da PJ; das agressões entre o Ministro Galamba e o seu ex-assessor, a pessoas do gabinete de Galamba barricadas num WC do MI; das perguntas e respostas combinadas entre deputados do PS e a CEO da TAP, às mensagens trocadas entre Galamba e o seu adjunto (um treinador de andebol do Benfica...), tudo confirma a falência da nobreza de espírito das classes dirigentes do país.

O sonho de uma vida melhor que Abril nos deu, onde está? Em 2023, Portugal está longe de continuar a poder ser fiel 1974 prometeu. Abril deu-nos imenso: mas Abril aburguesou-se, descaracterizou-se, partidarizou-se. Os ideais de Abril corromperam-se em nome do deus-dinheiro, única lição que o cavaquismo soube dar à minha geração. Se não há comparação entre o país medieval e obscurantista do Estado Novo com o país de 2023, a verdade é que constatamos o óbvio: para se ser alguém em Portugal é preciso ser-se visconde ou barão. Há teses imutáveis. Jovens da JS que, por sê-lo, chegam a presidências de juntas de freguesia; ou por serem filhos, sobrinhos, familiares, amigos, deste ou daqueles "altos quadros" do PS ou do PSD são postos em chefias de organismos, entidades, pelouros, ou convidados para assessores. Toda esta gente é exímia no carreirismo político. O que estudaram? Como estudaram? O que leram? Que trabalhos na vida tiveram? Também aqui o PSD ilude-se e ilude-nos ao dizer-se preparado para governar. Que social-democracia é, de facto, a do PSD? No afã de estar up to date, todos se esquecem que a História pesa. A Educação conta. Olhando para os nossos políticos, pergunto-me se não são já o reflexo óbvio da degenerescência do ensino em Portugal: ignorantes, mas saídos com mestrados e doutoramentos das faculdades. Ministros, parlamentares (o Chega é a caricatura animalesca desta realidade) que, servindo-se da democracia, servem-se a si e aos seus apetites. Muitos dos nossos deputados, nascidos já depois de Abril de 74, venderem a alma ao diabo no carreirismo partidário. Vivem à sombra da árvore das patacas que são os partidos. Por isso João Galamba tem de se demitir. Ele é o espelho da falência moral de uma massa de "políticos" que o PS, da pior forma, doutrinou e industriou. Francisco Salgado Zenha, Jorge Sampaio, António José Seguro... Quem é independente, culto e corajoso tem, hoje, lugar neste PS?

Livro: A Nobreza de Espírito

Autor: Rob Riemen Editora: Bizâncio

Sinopse: É breve a sinopse de hoje e a razão é simples: neste livro o filósofo holandês, autor de O Eterno Retorno do Fascismo (Bizâncio, 2012), apela a que a Europa, e em especial os seus governantes e intelectuais resgatem da ideologia oca neoliberal, a que impera desde Reagan e Tatcher em todo o mundo, o valor e a verdade de certas palavras e expressões. "Nobreza de Espírito" é uma dessas expressões. Clássica, com raízes na filosofia grega, na ética dum Cícero, na moral iluminista, hoje a nobreza de espírito é o que de novo se pede na política. A crença de que está tudo bem se a economia estiver bem é a mentira que Rob Riemen neste livro desmonta. É o espírito e a sua nobreza que de novo devemos (urgentemente) cultivar.

Professor, poeta e crítico literário

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