Gabriela, 1977, a novela que mudou a televisão
Na edição de 3 de novembro de 1977, a primeira página do Diário de Notícias repartia-se por vários temas noticiosos: o primeiro-ministro do I Governo Constitucional, Mário Soares, tivera, em Paris, um encontro com o ministro dos Negócios Estrangeiros da Arábia Saudita; Brejnev propunha, no 60.º aniversário da revolução soviética, a suspensão dos ensaios nucleares; Benfica e FC Porto seguiam adiante nas provas europeias de futebol; o aumento do consumo do leite ia obrigar a importações; a Ponte D. Maria Pia, no Porto, preparava-se para festejar o centenário; havia reclamações dos candidatos a professores e novas notas de 20 escudos em circulação. No canto inferior direito, dois atores brasileiros - absolutamente desconhecidos por cá seis meses antes - ganhavam direito a fotografia e à indicação de que tinham sido esperados no aeroporto da Portela por centenas de pessoas, desejosas de verem de perto essas estrelas recentes, Elizabeth Savalla e Fulvio Stefanini. Ou, para sermos honestos, de serem testemunhas oculares da presença entre nós de Malvina e Tonico Bastos.
No desenvolvimento da notícia, dava-se conta de que os dois tinham chegado com Chico Anísio (1931-2012), um humorista que foi uma das maiores figuras de sempre da TV brasileira. Savalla e Stefanini, que nunca foram propriamente grandes figuras, beneficiavam de uma febre revolucionária provocada pela primeira telenovela exibida na televisão portuguesa, uma adaptação do romance de Jorge Amado, Gabriela, Cravo e Canela (1958). Não era a primeira vez que Ilhéus e o ano de 1925 se tornavam "cenário" de TV - a TV Tupi já o ensaiara uns anos antes. Mas foi esta segunda versão, feita para assinalar o décimo aniversário da TV Globo (que surgiu em 1965) e o quinto ano consecutivo da liderança de audiências no Brasil, que acabou por cativar os espectadores, primeiro no país de origem, depois e de forma esmagadora, em Portugal, para onde foi importada por decisão de Carlos Cruz, numa das suas passagens pela direção de programas da RTP.
Acontece que as personagens de Malvina e Tonico Bastos tinham mesmo um apelo especial. A jovem era a rebelde filha de família, precursora do conflito de gerações, moldada pelo romantismo dos livros, impetuosa e pouco disposta a uma cega obediência ao conservadorismo hipócrita do pai. A própria Elizabeth Savalla tinha pontos de identidade com a mulher que representava: durante uma das provas, ela revoltara-se contra a exigência do realizador, Walter Avancini, que lhe exigia um francês perfeito, ripostando ela que estava mais preocupada com a representação... E ganhou o papel. Já Stefanini não precisou de lutar muito para vestir a pele do mulherengo Tonico, a que nem o pai (o verdadeiro chefe da cidade, coronel Ramiro Bastos) nem a devota mulher conseguem quebrar os ímpetos sedutores. Segundo reza a história, Fulvio foi mesmo o primeiro ator a ser escolhido em todo o elenco. A popularidade em Portugal era enorme, para ambos, também porque as personagens tinham extravasado do pequeno ecrã: Malvina inspirou, durante meses, o penteado, com franjinha e cabelo curto; Tonico conseguiu que se comercializassem, também entre nós, os pequenos pentes para "aprumar"o bigode.
Sónia e os coronéis
Em Portugal, Gabriela estreou a 16 de maio de 1977 e concluiu a sua apresentação seis meses depois (ou seja, cerca de duas semanas depois da vinda de Malvina e Tonico). Esse meio ano chegou para mudar quase tudo, desde o consumo de TV - a escassez de televisores, 150 por cada mil habitantes, levou a grandes concentrações em cafés e sedes de instituições populares, de aldeia ou de bairro - à respetiva programação - com um mesmo programa a aparecer no horário nobre de segunda a sexta-feira, algo que não acontecia antes -, passando pela linguagem e costumes. Ficaram célebres os adiamentos, por uma hora, das sessões parlamentares para que os deputados não perdessem um episódio.
As expressões típicas do diálogo entraram na gíria dos portugueses: "sapato não!", "moço bonito", tiradas habituais da protagonista, "ô, xente!", desabafo de Ramiro Bastos, e a célebre "já lhe dei meu cartão?", de Argileu Palmeira, passaram a fazer parte das conversas e serviram até para aproximar diferentes classes socioeconómicas, uma vez que a rendição a Gabriela foi transversal. A política dos coronéis e os delírios da oposição prenderam a atenção geral - tinham passado apenas três anos sobre a revolução em Portugal. Ilhéus, de volta a 1925, não se diferenciava, na substância, de uma pequena cidade do interior português, capaz de espiar e comentar os namoros, sobretudo os ilícitos, e de remoer um caso como o de Dona Sinhazinha, personagem que morre nos braços do amante. O marido assassino, um dos coronéis, não consegue evitar o maior dos escândalos - a defunta usava, quando foi baleada, umas sacrílegas meias pretas...
Outro fator de apelo era a presença de Sónia Braga, à época com 25 anos, que ganhou uma corrida em que chegaram a ser referidas Ana Maria Magalhães (que acabou no papel de Glória) e até a cantora Gal Costa. Tudo concorria para uma figura inesquecível: o corpo, os cabelos, as roupas, as falas, as formas de olhar e de sorrir. Não surpreende que o próprio escritor Jorge Amado tenha considerado a atriz como uma bênção, tanto mais que ela voltaria a ser Gabriela no cinema (em 1983, filme realizado por Bruno Barreto e com Marcello Mastroianni como Nacib), já depois de outra aproximação à obra do autor baiano, em Dona Flor e Os Seus Dois Maridos (filme de 1976, também de Bruno Barreto, com José Wilker e Mauro Mendonça) e antes de chegar a Tieta do Agreste (filme de Cacá Diegues, de 1996). Por mais versões que possam surgir - e a Globo voltou à trama em 2012 -, Gabriela será sempre Sónia, mesmo que a inversa não seja verdadeira. E seria sempre um prazer entregar-lhe os louros pela mudança.