Gabriel Abrantes brinca com CR7
Antes dos aplausos enérgicos ontem no final da sessão de Diamantino, de Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt, o realizador e artista português dizia ao público que o filme era como uma explosão claustrofóbica cheia de coisas. A estreia de Abrantes (que muitas vezes trabalha com o colega americano) nas longas é de facto uma explosão, daquelas que atira literalmente os estilhaços para cima do espectador. Espectador esse que tem de se fazer à vida perante este caleidoscópio de mistura de géneros: da comédia juvenil à sátira performativa, passando pelo thriller e fantasia ácida.
O filme conta a história do maior jogador do mundo, Diamantino (interpretado com pujança por Carloto Cotta), que depois de falhar o penálti decisivo na final do Campeonato do Mundo da FIFA entra em crise. Diamantino, angustiado com a morte do pai, o tratamento opressivo das suas irmãs e o gozo na net pelo seu fracasso na seleção portuguesa, acaba por se meter numa experiência científica que visa clonar o seu génio futebolista para deixar anestesiado o povo português. Pelo meio, adota um refugiado vindo de Moçambique, que, afinal, é uma agente das forças secretas portuguesas de origem cabo-verdiana. Escusado será dizer que Diamantino é uma caricatura de Cristiano Ronaldo, apesar de ter sotaque açoriano.
A insanidade do projeto de Abrantes e Schmidt vive a partir de uma farsa sobre o grau da inocência. Este CR 7 também tem carros de luxo e os tiques do verdadeiro (festeja os golos da mesma maneira e veste-se de igual forma) mas só tem 10% do seu cérebro potenciado. Mas o gozo não é cruel e leva-nos até David Foster Wallace clonado com Walt Disney - aquelas irmãs interpretadas por Anabela Moreira e Margarida Moreira são importadas de Cinderela. O humor tem os excessos lúdicos que podem criar situações de limite como a dada altura crescerem seios ao futebolista ou ele ter de ser entrevistado por uma anfitriã de talk-shows impactante, interpretada de forma hilariante por Manuel Moura Guedes.
Não há que ter medos, Diamantino é um objeto de uma energia nova no cinema português, capaz de falar deste Portugal, da sua xenofobia e dos seus mitos, achincalhando a sociedade-espetáculo e a histeria do novo mediatismo. Que o faça com gagues sem punch-line é outra das novidades, nem que para isso possa perder força na tradução de todo o delírio. Por exemplo, este deus da bola, antes de marcar golos, imagina cãezinhos felpudos e fofos no relvado. Sim, o delírio de Abrantes tem estes golpes que vão assustar quem está desprevenido.
Esta insanidade convoca métodos drásticos e assume uma dimensão virtual com efeitos visuais constantes, jamais sem perder a audácia de se aventurar pelo ridículo. Claro que pode ofender Cristiano ou quem se der mal com esta diarreia de estímulos, mas saímos da sala com um sorriso forte e potente. E prova-se que Abrantes não perdeu a loucura saudável das suas curtas. A sua produtora, Maria João Mayer, contou ao DN que vai tentar estreá-lo em Portugal na rentrée, embora se possa adivinhar que tem tudo para ser uma coqueluche das grandes nos festivais internacionais.
Na competição, ColdWar/Guerra Fria, de Pawel Pawlikowski, não ofereceu diabruras mas antes uma história de amor onde a paixão separa os amantes numa Polónia entre o final dos anos 1940 até aos 60. Ou como a Cortina de Ferro transformou a Polónia. Visualmente espantoso (o preto & branco da imagem de Lukasz Zal é um triunfo absoluto), não deixa de ficar ligeiramente aquém do anterior filme do polaco, o multipremiado Ida, sobretudo por abusar de peripécias narrativas algo mal justificadas. Arrisca-se a ficar na retina como feito técnico.