Futscher Pereira: "Salazar era frio, não se deixava dominar pelas emoções"
Não está ainda em falta a biografia definitiva e abrangente sobre Salazar?
Sim, falta. A biografia de Franco Nogueira é uma obra monumental que será sempre incontornável, mas é essencialmente uma hagiografia e tem omissões e histórias mal contadas que precisam de ser corrigidas. O de Filipe Ribeiro de Meneses é importante mas, como o próprio subtítulo indica, é uma biografia política. Não satisfaz a natural curiosidade das pessoas pela vida privada de Salazar e pelas múltiplas facetas da sua personalidade, nem procura integrar esta com a vida política.
Quais as facetas do governante menos bem fixadas no seu entender?
Desde logo, subsiste a dúvida de sempre sobre a natureza das relações de Salazar com as mulheres. Que era muito sensível ao charme feminino, não há a menor dúvida. Mas terão essas relações sido consumadas ou ficaram-se por meros devaneios platónicos? Noutro plano, seria interessante apurar com mais exatidão, se for possível, as suas relações com a PIDE ou por outras palavras a sua responsabilidade pessoal e não apenas política na repressão e na violência de Estado. Salazar era uma personalidade com muitas facetas, algumas contraditórias. Para delinear e fixar o seu caráter, era preciso um historiador com dotes de romancista.
Os historiadores veem com bons olhos um embaixador, mesmo que mestre em Ciências Políticas, a intrometer-se?
Terá que lhes perguntar! Não me parece que as áreas de especialização académicas, especialmente nas humanidades, devam constituir domínio reservado de professores universitários. Dito isto, tenho sempre recebido boa colaboração dos amigos historiadores.
O cenário desta investigação é a diplomacia do Estado Novo. Tem acesso privilegiado a estas fontes ou deve-se à sua profissão?
Não tenho acesso privilegiado a fontes. Nada do que escrevi se baseia em entrevistas. É verdade que me tratam bem no Arquivo Histórico-Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros, mas acredito que isso suceda com outros investigadores. Ser diplomata ajuda porque desperta o interesse pela matéria e a prática de ler e redigir relatórios e informações dá experiência na interpretação de documentos.
No anterior volume e neste encontrou "novidades" sobre Salazar?
A atividade diplomática de Salazar sempre foi muito intensa e, à exceção da obra de Franco Nogueira, não tem sido um aspeto muito estudado da sua vida política. O que estes volumes revelam é que a política externa foi um domínio altamente prioritário para Salazar e ao qual dedicou imenso tempo e atenção. Mostram com certo pormenor uma faceta sua menos conhecida.
O terceiro volume será mais polémico devido a percalços de fim de mandato?
Não sei se será mais polémico, nem é minha intenção fazer. O facto de haver uma guerra nesse período abrangido pelo 3º volume, de 1962 a 1974, pode tornar a narrativa mais absorvente.
Parte importante deste estudo é sobre o período da Guerra Fria. Portugal não teve um protagonismo muito maior do que por norma lhe é atribuído?
Sim, é verdade. Portugal contava mais e tinha mais peso do que normalmente se supõe. Em primeiro lugar, era um de apenas quatro países europeus - além da Grã-Bretanha, da França e da Bélgica - que ainda possuíam impérios coloniais com dimensão importante. Em segundo lugar, havia a questão da base das Lajes, que era a mais importante, pelo menos uma das mais, bases militares americanas no estrangeiro. Em terceiro lugar, o número de estados independentes era muito menor do que é hoje, desde logo na Europa. E dos que já existiam, muitos estavam sob o jugo soviético. Em quarto lugar, não devemos esquecer que Espanha estava bastante mais isolada politicamente, o que conferia a Portugal um maior peso no conjunto da Península Ibérica.
Salazar esteve à altura das manobras diplomáticas necessárias à sobrevivência de um império ultramarino?
Salazar devia ter estado à altura do momento histórico da transição das colónias para a independência, ou se quisermos, prepará-las para exercerem o direito a autodeterminação, como fizeram a França e a Grã-Bretanha. Se se coloca a questão em termos da sobrevivência do império, há que responder que sim, visto que o império ainda durou vários anos depois da sua morte. Mas essa talvez não seja a maneira correta de colocar a questão.
Um dos pontos quentes deste período é a disputa com a União Indiana sobre Goa. O desfecho era o único possível?
É sempre complicado fazer história contrafactual. Que Goa acabasse integrada na União Indiana era porventura inevitável - mas nunca se sabe, veja o que aconteceu em Timor. Agora que isso tivesse de acontecer na sequência de uma invasão militar, não era provavelmente inevitável, se tivesse sido outra a atitude de Portugal. Agora, com a política intransigente seguida pelo Estado Novo era provavelmente o único desfecho possível, a menos que a Índia desistisse das suas reivindicações.
Os acontecimentos catastróficos de 1961 em relação ao império colonial deveriam ter exigido um acerto no rumo da governação salazarista?
Acho que esse acerto não era possível com Salazar no poder. A oportunidade de uma mudança de rumo gorou-se com o pronunciamento falhado de Botelho Moniz. Depois de 1961, houve outros momentos em que Portugal esteve em situação relativamente favorável para mudar de política em África, mas Salazar fez tudo o que pôde para o impedir e conseguiu evitá-lo, até postumamente, apesar de ter havido alguns movimentos, tímidos, nesse sentido. A identificação entre o Estado Novo e a defesa do Ultramar era tão forte que qualquer evolução na política ultramarina poria em causa o regime.
Se não fosse a morte abrupta de Kennedy, o confronto Salazar / Kennedy teria desembocado numa independência anterior de Angola, Moçambique e Guiné?
Duvido. A pressão americana poderia ter sido maior do que foi com a administração Johnson, mas a grande oportunidade de Kennedy para lograr uma mudança decisiva em Portugal foi a tentativa de golpe, ou de pronunciamento de Botelho Moniz. Depois, ao longo de 1961, tentou-se obter um resultado idêntico através da pressão diplomática, porventura na esperança de que o regime não lhe conseguisse sobreviver, mas ela rapidamente esbarrou na resistência do Pentágono, por um lado, preocupado em manter o acesso à base das Lajes e, por outro, na própria capacidade de aguentar do Estado Novo, que se revelou muito superior ao que os americanos esperavam. A partir de 1962, a administração Kennedy modera muito as pretensões e limita-se a tentar que a posição portuguesa evolua, de forma lenta e não bruscamente, como era seu objetivo em 1961.
Afirma que "Salazar sempre temeu e esperou esse confronto". Os esforços diplomáticos de Vasco Garin na ONU foram suficientes ou era uma questão indefensável internacionalmente?
Salazar sempre desconfiou imenso dos americanos e sempre os tentou manter à maior distância possível. Mas Salazar era realista e sabia que era impossível ignorá-los ou hostilizá-los abertamente. Na ONU, Portugal defendeu-se como pôde - sempre com tenacidade, normalmente com habilidade, embora também tivessem existido erros clamorosos, como a candidatura de Portugal ao Conselho de Segurança em 1960. A diplomacia portuguesa era respeitada e vista como profissional e proficiente. O problema é que ela se batia por uma causa perdida. Mesmo assim conseguiu resistir durante muitos anos.
A nossa diplomacia esteve à altura da política internacional de Salazar?
Acho que esteve. Os embaixadores, pelo menos nos sítios mais importantes, eram escolhidos pessoalmente por Salazar, com imenso cuidado. Eram geralmente grandes figuras do regime e da sociedade portuguesa. Só muito mais tarde, durante o período em que Franco Nogueira foi ministro, é que os postos de chefia de missão se tornaram um monopólio da carreira diplomática. Repare-se que Salazar foi ministro dos Negócios Estrangeiros durante onze anos. O MNE era, em boa parte, uma máquina que ele próprio moldara. Formaram-se hábitos de trabalho e aqui reside um dos segredos da sua longevidade, do regime e da sociedade portuguesa, que ainda hoje perduram.
Entre os capítulos mais diletantes está o do "coup de foudre" por Christine Garnier. O lado emocional em Salazar foi o seu calcanhar de Aquiles?
Não, não foi. Salazar era frio. Não se deixava dominar pelas emoções. A política e o poder sempre passaram muito à frente dos sentimentos.
A visita de Isabel II a Portugal consumou-se com uma manobra diplomática de Salazar para defender o regime?
Foi uma operação de propaganda e de relações públicas bem sucedida.
Salazar teve verdadeiros inimigos políticos - Galvão, por exemplo - ou apenas filhos de um regime desiludidos?
Os filhos desiludidos, como Delgado e Galvão, tornaram-se verdadeiros inimigos políticos. O ódio era imenso.
O golpe de Botelho Moniz e a quase vitória de Delgado foram os momentos mais críticos para a sua governação?
Penso que a campanha de Delgado em maio de 1958 foi realmente um momento de viragem, por duas razões: primeiro pelo enorme entusiasmo popular que suscitou, um fenómeno único em toda a história do Estado Novo. Segundo, por Delgado vir de dentro do regime e, em particular, do seu principal sustentáculo, as Forças Armadas. O golpe de Moniz foi também um momento critico porque, por detrás de Botelho Moniz, à espera nos bastidores, estavam Craveiro Lopes e Marcelo Caetano.
A ameaça comunista foi exagerada por Salazar de modo a sufocar a oposição?
Sim, o anticomunismo era visceral mas também instrumental. Chamar comunistas a todos os que eram da oposição era uma forma de lhes retirar legitimidade e de meter medo às pessoas.
Alguma vez até neste período Salazar sentiu que poderia ser apeado?
Em maior ou menor grau, acho que sentiu sempre e isso deve ter contribuído para que tenha durado tanto. Quem está no poder não se pode distrair e Salazar não andava distraído. Sabia bem que, apesar do seu regime ser uma ditadura, repousava em ultima análise nas Forças Armadas, cuja lealdade não era dado adquirido para sempre. Salazar era um ditador, mas era também um político muito atento a equilíbrios.
Diz que este é um livro essencialmente de história diplomática. Não pretende fugir a este domínio da investigação?
É preciso situar a história diplomática em contexto - no internacional - mas também no da política interna. Além disso, a história diplomática é normalmente um domínio um pouco árido.