Futebol, tricô e camisolas sujas

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Um dia, fiz uma reportagem sobre pessoas refugiadas no útil. Nos anos 1980 (foi ontem), andei à volta do Estádio da Luz (podia ter sido em Alvalade ou nas Antes, mas foi na Luz), durante um jogo, falando com as solitárias ocupantes dos automóveis estacionados. Quase sempre sentadas no lugar do morto, havia mulheres a fazer tricô. Esperavam o marido adepto e respondiam-me com um encolher de ombros, olhos fixos na dança das agulhas. Eram pacientes e doces mas, convenhamos, não era natural aquilo, nem nos anos 1980 - logo depois, os homens iriam regressar ao carro, o que lhes devia espevitar, a elas, se não a vontade de perceber um fora-de-jogo, pelo menos a curiosidade sobre o que os tornara, a eles, macambúzios ou eufóricos, consoante o resultado. "Resultado" ou lá o que era isso que se passara no interior misterioso do estádio.

Em 1789, Maria Antonieta não disse a frase "se o povo não tem pão, porque não come brioches?" ou, se o fez, plagiou Rousseau, que a publicara muitos anos antes. O que interessa é que tal frase, um pormenor na magnitude histórica da Revolução Francesa, ilustra que não é em vão que os de cima, rainhas ou adeptos de futebol, podem ignorar os de baixo, povo ou fazedoras de malhas. É certo que os tempos iriam misturar, e continuam, os de cima com os de baixo, criados que ascendem a burgueses e compram baronatos. Mas houve momentos em que a contradição cortou a direito: Maria Antonieta sentiu-o no pescoço.

Hoje, filhas de antigas refugiadas no útil, e por vezes até as próprias, saltaram para as bancadas e lançam em público e aos gritos "passa bola, caragos!", com a veemência de quem percebeu que os estádios, afinal, não encerram mistério nenhum. Isto é, no futebol também aconteceu aquela progressão social que nos faz esperar que no fim do jogo ganhemos todos. Entretanto, a acumulação de injustiças - a fome do povo ou a frustração de passar uma tarde sentada num automóvel estacionado - deverá criar, sempre o suspeitei, alguma violência revolucionária. No caso da aristocracia, por exemplo, houve a guilhotina.

No futebol, a transição para a normalidade, haver também mulheres nos estádios, já aconteceu, como relatei. A passagem delas, dos parques de estacionamento para as bancadas, fez-se de forma pacífica. Talvez as revistas à entrada dos estádios, embora tornadas necessárias e comuns por outros motivos, tenham impedido as agulhas de tricô de fazer a mesma migração que as donas. Enfim, nunca me dei conta de manifestações de violência reagindo contra da tirania antiga dos maridos adeptos. Até ontem. Ontem, Dia da Mulher, quer dizer, também da memória das mulheres da malha à volta dos estádios, dei-me conta de uma narrativa atual, que tem toda a aparência de vingança histórica sobre a antiga opressão.

Como foi noticiado, a Operação E-Toupeira - sobre alegadas falcatruas do Benfica - foi iniciada depois de um telefonema anónimo ter dado pistas à PJ. O agente que recolheu a informação, contou o Observador, "transmitiu todos aqueles dados à diretora do DIAP de Lisboa, Fernanda Pego, e à procuradora titular do caso dos e-mails, Andreia Marques. E, dois dias, o investigador redigiu à diretora da Unidade Central de Combate à Corrupção, Saudade Nunes, uma informação de serviço". Nesta citação contam-se três magistradas, três mulheres, todas elas envolvidas, e no topo, no combate ao crime num caso ligado ao futebol!

Claro, é mero acaso. Mas há como que uma justiça divina. Num passado recente, houve mulheres a tricotar meias grossas, durante hora e meia, mais o intervalo, isso no caso de não haver prolongamento, ao frio ou ao calor de um carro estacionado e sem ar condicionado ligado, enquanto os maridos se maravilhavam, gritavam, enfim, sentiam-se vivos numa festa coletiva... E um pouco mais de um quarto de século depois, foram uma Fernanda, uma Andreia e uma Saudade a pôr o futebol encurralado. Claro, não houve vingança de género, no máximo só algo nos genes a reagir a horas infelizes do passado... E, claro, eu abuso ao fazer essa relação, mas faço-a como outros inventaram a frase que Maria Antonieta não disse. As lições morais contam-se melhor com pequenos pormenores que fazem as verdades resplandecer e apetecer-nos dizer: Se non è vero, è ben trovato...

Em todo o caso, a solidariedade feminina que inventei para as três senhoras magistradas é bem melhor desculpa do que a miséria de certos futeboleiros ao defender o Benfica. Estes desvalorizam as alegadas informações fornecidas ao assessor jurídico do clube, Paulo Gonçalves, por um funcionário informático a trabalhar nos serviços judiciais: coisa sem importância, dizem, pois foi a troco de bilhetes e camisolas... Como se o dolo estivesse no valor da paga! Há bandidos que se vendem barato, mas causam prejuízos caros.

No caso, o que está em causa, embora falte provar, é a hipótese de o informático ter fornecido informações oficialmente sob sigilo sobre Benfica, para beneficiar este clube, e sobre o Sporting e o FC Porto, para os prejudicar. Sendo essas informações guardadas pela Justiça - a Justiça que é de todos -, o desvio delas leva à desigualdade. É como se uns pudessem frequentar os estádios, a festejar, e os outros ficassem remetidos a ficar à porta, a tricotar. O preço disso é enorme. Parte dele, isto: as camisolas que o informático terá recebido estavam sujas.

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