Full Moon Madness: Um dia na estrada com os Moonspell

O DN conheceu em Aveiro os bastidores de uma das bandas nacionais mais conhecidas lá fora, que comemora 25 anos. A atestá-lo está a passagem por 60 países. Pedro Vilela Marques
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São mais de uma dezena as barracas de bebidas espalhadas pelo pavilhão da Feira de Exposições de Aveiro, mas o tema é quase sempre o mesmo: sexo. Desde as que prometem "prémios às raparigas que mostrem as mamas" até às que adulteram filmes blockbusters e os transformam em títulos pornográficos, e as que têm desenhadas nas paredes mulheres nuas e em poses de bolinha vermelha. Um ambiente de semana académica - o Enterro - aparentemente pouco indicado para receber uma banda de metal gótico. Mas só aparentemente.

"Quando chegámos havia o receio de que o Eurofestival tivesse roubado público ao nosso concerto. Mas afinal provou-se que ainda há muita gente que mantém a sanidade mental." São já duas da manhã e os Moonspell preparam-se para tocar Alma Matter, aquela que anunciam como a última música do concerto que começou já na madrugada de 10 de maio, noite de lua cheia, como fazem questão de notar. Começamos pelo fim, mas na verdade, para a banda, o espetáculo leva já nove horas.

As viagens e a família

Passa pouco das cinco da tarde do dia anterior quando descemos uma apertada passagem de cerca de 20 metros que desemboca numa pequena sala do edifício do parque de exposições. O espaço que nas próximas horas servirá de camarim improvisado para os Moonspell. Lá dentro, Fernando Ribeiro e Pedro Paixão, o vocalista e o teclista/guitarrista da banda, recebem-nos a meio da preparação para o sound-check, enquanto os elementos da organização, a cargo da associação de estudantes, ainda mal começaram a abastecer a sala. "Não temos pão integral, só pão normal, pode ser?", pergunta uma jovem a medo. "Não há problema nenhum", responde descontraído Fernando Ribeiro. "O que me apetecia mesmo era uma cerveja fresca."

Mas não se pense que o resto da tarde foi passado com garrafas a passar de mão em mão. "Não temos o hábito de ir para os concertos bêbados. Já aconteceu, lembro-me de uma história no Texas em que tocámos já muito bebidos, mas, regra geral, não o fazemos", conta Fernando Ribeiro, enquanto enrola um dos charros fumados nessa tarde. "Nós somos todos legalize it", explica. "Mas também somos contra toda e qualquer dependência, seja de álcool, drogas, o que for." São muitas as histórias, muitas no campo do mito, algumas verdadeiras, de excessos e destruição associadas a bandas de heavy metal. Quase tantas como os estereótipos de que o próprio género musical é alvo. Mas aqui não há relatos de pintainhos esmagados ou rituais satânicos, antes de rigor.

A comemorar 25 anos de carreira, os Moonspell são uma das bandas portuguesas mais conhecidas e reconhecidas no estrangeiro. A atestá--lo está a passagem por 60 países de quase todos os continentes - "só nos falta a Oceânia" - e o meio milhão de cópias vendidas dos onze discos que já editaram. Fama mundial que, por exemplo, "já nos obrigou a acabar um concerto na Grécia e a viajar imediatamente para Vancouver, onde começávamos uma digressão pela América do Norte. Na prática, com os fusos horários, chegámos ao Canadá à mesma hora a que tínhamos partido da Grécia", lembra Mike Gaspar, o baterista da banda. "Nos Estados Unidos já tivemos viagens no tour bus de mais de 30 horas seguidas, em que parecia que dávamos em malucos, para chegar a tempo dos concertos." No seu caso, as consequências das "horas de sono perdidas que nunca mais voltam" estão gravadas no corpo: lesões nos joelhos, nos cotovelos, nos ombros, a ciática, enumera Mike, enquanto faz exercícios de aquecimento antes de se sentar atrás do kit de bateria.

Esta semana deveria arrancar mais uma digressão na América Latina, tournée cancelada na véspera do concerto em Aveiro. "Teve de ser, faltavam 15 dias e o promotor ainda nem tinha tratado das viagens", explica Fernando Ribeiro. "Mas assim até vamos regressar lá já com álbum novo", referindo-se a 1755, trabalho inspirado no terramoto que arrasou Lisboa e que a banda acabou de gravar. Um copo meio cheio que se junta a um outro ponto a favor: mais tempo com a família. À exceção do guitarrista, Ricardo Amorim, todos os elementos da banda já têm filhos e Fernando até é padrinho de Anaís, a filha de 1 ano de Mike Gaspar.

Casado com Sónia Tavares, vocalista dos Gift, Fernando Ribeiro serve-se da rede familiar para tomar conta do único filho do casal, Fausto, quando estão os dois na estrada. "Estamos juntos menos tempo do que gostaríamos. Neste momento a Sónia está com os Gift em Espanha e para vir tocar aqui tive de deixar o Fausto com o avô, em Leiria. Quando tenho concertos na zona de Lisboa ele fica com a minha mãe, na Brandoa, e quando vamos para o Norte fica com o meu pai, em Viana do Castelo."

Uma babilónia de culturas

A meio da tarde, já em cima do palco para as afinações, os primeiros minutos do soundcheck parecem tensos. "Fiquei logo fodido, decidiram mexer na equalização do meu microfone, que é sempre igual", confidenciaria o vocalista no final. Cá em baixo, não mais de vinte pessoas circulam pelo recinto a reabastecer as barracas de bebidas. Um prostra-se em frente ao palco enquanto Fernando Ribeiro e Mariangela Demurtas - vocalista italiana da banda Tristania - ensaiam Raven Claws. Tempo ainda para tocar Extinct - com direito a transmissão em direto no Facebook - e Night Eternal. Ao todo, entre músicos, técnicos de luzes, de som e o road manager, a entourage dos Moonspell era constituída por uma dúzia de pessoas. Uma babilónia de culturas, que junta portugueses, luso-americanos - Mike Gaspar -, venezuelanos - Aires Pereira, baixista da banda desde 2003 -, uma cantora da Sardenha, técnicos brasileiros e belgas.

Um grupo restrito a que se juntaram nesse dia Ricardo, que está a escrever a biografia da banda, e um fã - ou "fãmigo", como se define a si próprio - especial para a banda. Mal entram no camarim, acabado o ensaio geral, são recebidos por Joaquim com sorrisos abertos e um saco cheio de gravações piratas dos mais diferentes países, prontas a serem autografadas, que revelam a confiança de quem já se conhece há muitos anos. "Comecei a seguir a banda logo desde o Wolfheart [lançado em 1995] e desde aí tento ir a todos os concertos dos Moonspell em Portugal." Uma fidelidade que nem a doença de Crohn (doença inflamatória crónica do intestino), que o atirou para uma cama de hospital, conseguiu cortar. Aos 46 anos, Joaquim continua de baixa, mas não deixa de ir aos concertos sempre que pode e recorda aquele especial em Guimarães, no final do ano passado, a que foi apenas três dias depois de sair do hospital.

Já a caminho do jantar, Joaquim ocupa o lugar de pendura no Mercedes de Fernando Ribeiro e é um dos primeiros a ouvir músicas ainda com produção em bruto do novo álbum dos Moonspell, um trabalho mais agressivo do que os anteriores e totalmente cantado em português. "A ideia era mesmo essa", reconhece Fernando, "é mais old school, queria que se sentisse que eu estava no meio das ruínas do terramoto".

Já sentados à mesa, Fernando Ribeiro pede salmão e uma sopa, coisa que não pese durante o concerto. Só depois se apercebe que estamos num restaurante brasileiro, onde não há o mais leve vestígio de peixe. Contenta-se então com uma sopa de legumes, um pedaço de picanha e um copo de vinho. Durante a refeição, recordam alguns dos concertos que mais os marcaram. "No Convento do Beato, em 1996, ou a primeira vez que tocámos no México", um dos países onde os Moonspell mais vendem, juntamente com a Alemanha, o mercado de referência na Europa para as bandas de metal, e a Escandinávia.

Fernando Ribeiro aproveita para criticar a coqueluche musical do momento, grande ódio de estimação da noite: Salvador Sobral. "Não tenho nada contra o rapaz, só não tolero esta ideia que isto é do melhor que se fez na música portuguesa, como se não tivéssemos uns Verdes Anos, uma Canção do Engate, tanta coisa boa."

Em modo Moonspell

Faltam poucos minutos para a meia-noite quando os Moonspell chegam ao edifício da feira de exposições. No palco, uma banda de covers toca uma música dos Blur para uma sala com pouco mais de uma centena de pessoas. "Se querem sentir pressão vão lá fora ver o ambiente, está deprimente", atira Pedro Paixão, acabado de entrar no camarim. Na casa de banho contígua, Fernando Ribeiro já faz alongamentos e exercícios de preparação para o concerto. "Se há coisa que aprendi nestes anos todos é que as coisas nunca são tão más quanto parecem", responde o vocalista, enquanto se prepara para vestir umas calças de couro e uma camisola de mangas de rede com símbolos alusivos ao álbum Irreligious, que este ano faz 20 anos e marcará grande parte da setlist da noite. "Agora já estou em modo Moonspell." Falta pintar os olhos de negro para completar a persona. No corredor, Mike Gaspar, de casaco de camuflado vestido, salta à corda e faz exercícios de aquecimento.

Mas e se a sala não encher, como reage a banda em palco? "Nós temos um conceito que está para além do público", responde prontamente Fernando Ribeiro. "É claro que preferimos ter sala cheia, mas não é por isso que nos entregamos menos." Poucos minutos depois, tivemos a prova disso mesmo. Já com a sala mais composta da mesa de som para a frente, mas ainda completamente despida atrás e nas laterais, os Moonspell subiram ao palco às 00.45 programadas e atacaram Opium como se estivessem a tocar no Wacken Open Air. Uma energia que foi contagiando o público ainda relativamente amorfo e chamando os ainda dispersos pelo recinto. A primeira parte do concerto foi dominada por músicas de Irreligious, com passagens por Wolf-heart. Quando, a meio da atuação, os Moonspell tocaram a dupla Ataegina/Trebaruna já o ambiente tinha dado a volta, com muitos pulos nas primeiras filas e até um mosh recorrente que se mantiveram durante todo o encore, finalizado com o hino Full Moon Madness.

"Eu não disse que a coisa ia correr bem?" Roupa encharcada em suor - "a minha mulher diz que as minhas camisolas cheiram a rato da pradaria depois dos concertos" -, Fernando recosta-se numa cadeira de plástico com um sorriso nos lábios. Os elementos da banda vão chegando ao camarim e cumprimentam-se em sinal de conquista. As conversas balançam entre o presente, com pormenores da atuação, o passado, com recordações das primeiras tours internacionais - "o que mais se pode pedir do que começar logo em 1996 a tocar com a nossa banda favorita, os Type o Negative?" - até chegarem às histórias dos... filhos.

Ao cimo do corredor, cerca de uma dezena de groupies adolescentes vestidas de preto amontoam-se à espreita, na esperança de conseguirem uma selfie ou um autógrafo. Olham-nos com inveja quando passamos por elas. Para trás ficam as últimas palavras da banda: "sem censura", assim é a vida na estrada.

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