Fuijimori nunca foi bom para Mario Vargas Llosa

O mais recente romance do Prémio Nobel Mario Vargas Llosa é uma sátira em que só a mão do escritor salva a galeria de personagens.
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O que o escritor e Nobel da Literatura Mario Vargas Llosa faz no seu mais recente romance é acertar contas com o seu antigo rival, Alberto Fujimori, que o derrotou na corrida eleitoral à Presidência do Peru em 1990. Uma derrota que nunca esqueceu e que, numa coincidência temporal, voltou a estar nos noticiários no início deste mês, quando a filha de Fujimori esteve para ganhar as mais recentes eleições peruanas.

Vargas Llosa faz de Cinco Esquinas um romance que poderia ser levado à cena como uma comédia de costumes, com forte decalque na realidade do seu país sobre aqueles tempos de Fujimori. Todos os personagens deste novo romance são como que criados com um recorte de dramaturgo, após o que são colocadas dentro dos capítulos como atores necessários para a narrativa que interessa ao criador. Não sendo uma peça de teatro, transforma-se numa violenta sátira em que a narrativa se inspira, como avisa no início da obra, "na personalidade de seres autênticos", com os quais "partilham o nome", embora "ao longo do romance sejam tratados como seres de ficção".

Feito a aviso, o autor decide divertir-se ao mesmo tempo que faz um retrato crítico dos anos em que Fujimori governou o Peru e instalou, além da corrupção, o terror com a ação da polícia política. Motivos pelos quais foi condenado a 25 anos de prisão posteriormente. Se o que Vargas Llosa pretendia era transformar os anos Fujimori numa espécie de lixeira social, consegui-o. Não há personagem que seduza o leitor e, fora o que menos brilha em toda a narrativa, a do advogado Luciano, nenhum se aproveita a nível de caráter. Pode dizer-se que na extensa galeria de personagens criadas por Vargas Llosa ao longo da sua carreira literária, chegou ao estágio em que era necessário serem tudo menos seres humanos decentes que suavizassem aquela época. Todos são fruto de uma altura que o escritor despreza e o registo literário comprova-o logo ao segundo capítulo, onde atira ao leitor a podridão e o compadrio da comunicação social de modo a beneficiar-se do regime político.

Depois, existem personagens meteóricos. Um jugoslavo de nome Kosut que serve para a grande tramoia. Um habitante de Lima de nome Willy que serve para justificar uma reviravolta rápida necessária ao correr do romance. Não faltam certos devaneios de âmbito sexual que surgem a abrir e a fechar Cinco Esquinas, que poderiam até muito bem ser o objeto de um trabalho literário inovador por parte de quem tem muita mão para a escrita em vez de despropósitos de sonhos de classe média com um toque a imprensa cor de rosa. Trata-se da relação apaixonadas de duas "esposas" que, insinua, deveriam ser bem comportadas mas que acabam por se entregar uma à outra por necessidade de dar um caminho à narrativa.

Aliás, Cinco Esquinas é um daqueles romances em que há necessidade de tomar partido a favor do seu autor. A dado momento, o leitor sente-se no meio de uma comédia burlesca e questiona-se se deve continuar a levar a sério o que Mario Vargas Llosa relata. Então, ou partilha da opinião de que o registo pretende ser o de uma crítica social ou desiste para seu bem. Situação que deverá ter-se posto ao próprio autor, que inova no capítulo final, a que dá o título de Happy End. Pois está o leitor a tentar chegar ao fim e saber como se fecham estas 299 páginas de muitas vivências quando, de repente e em 13 páginas de parágrafos alternados, o escritor fecha todas as pontas soltas. É original este final...

O que não Vargas Llosa não perdoou a si próprio foi pôr na narrativa por alguns momentos o mal fujimoriano vitorioso, com uma jornalista do social e o braço direito do Presidente de braço dado para deitar abaixo os inimigos do regime. Então, num volte-face, a jornalista redime-se e expõe o político mau... Se fosse no teatro, seria mesmo uma comédia. Na literatura torna-se uma algo. O maior lamento é a falta de estatura de um declamador, Juan Peineta, o grande protagonista que o Prémio Nobel da Literatura teve nas mãos e perdeu.

Reedições de outros tempos

A contrapor a estas 320 páginas, existem outras 1136 das reedições de duas grandes obras de Mario Vargas Llosa. Trata-se de A História do Fim do Mundo, de 1981, e A Festa do Chibo, de 2000. Em ambos a galeria de personagens é impressionante e a presença de acontecimentos reais também existe.

No primeiro livro, recupera a Guerra de Canudos, no final do século XIX, recriando a figura do líder religioso fundamentalista António Conselheiro, de acordo com romance clássico brasileiro Os Sertões, de Euclides da Cunha. O escritor até viveu vários meses no sertão para recriar os cenários. O segundo livro, A Festa do Chibo, também é considerado um dos romances maiores do Nobel. Passa-se na República Dominicana durante o século passado e relata a história do general Rafael Leonidas Trujillo Molina - apelidado de o Chibo - e que governou durante mais de três décadas aquele país. Com vários momentos da história a cruzar-se, Vargas Llosa refaz esse período conturbado.

O registo destas duas reedições é bem diferente do seu novo romance, mesmo que todos eles se preocupem em retratar a violência de três ditaduras.

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