Ali Nazari Hossein fugiu da guerra do Afeganistão. Fugiu da desesperança, do futuro incerto, fugiu para estudar e sonhar. Disse-lhe isso o pai, que juntou ao seu dinheiro o de familiares para os dois filhos mais novos deixarem Parwan, a cidade natal, na província de Cabul. Sofreu uma emboscada nas montanhas quando seguia de carrinha para vender os produtos que cultivava, feriu-se na perna e desistiu da agricultura. Convenceu-se de que o melhor seria enviar Ali, na altura com 15 anos, e Ahmada, com 13, para a Europa. O mais novo chorou tanto que, já na Grécia, pediu para ser deportado. Ali alcançou Lisboa ao fim de 651 dias e milhares de quilómetros: a pé, de carro, de autocarro, de comboio, de bote e num camião. Viajou na mala do carro e no eixo de um camião. Três meses depois de chegar a Portugal, começou a praticar artes marciais e já ganhou sete medalhas. Sonha um dia conquistá-las com a camisola portuguesa.."No Afeganistão tinha problemas, não conseguia estudar, e o meu pai, o meu tio, o meu irmão mais velho, juntaram dinheiro para eu sair ", conta Ali, hoje com 20 anos. A mãe morreu, Ali vivia com o pai e a madrasta em Parwan. A irmã mais velha, com 29 anos, vive no Irão, e tem um irmão, de 25, no Dubai. Ahmada, de 18, vive no Afeganistão. Estava num campo de refugiados na Grécia quando pediu para ser deportado. Ali pensa que estão nesses países, mas não têm falado..Deixou o Afeganistão com 15 anos, em dezembro de 2014, fez 20 no dia 1 de março deste ano. O irmão, dois anos mais novo, não aguentou as saudades. Fazem parte dos milhares de menores de idade que fogem do país sem a família. Em 2016, entraram em Portugal 32 crianças e jovens refugiados não acompanhados, 35 em 2017 e 40 em 2018. São apoiados, como os adultos, pelo Centro Português para os Refugiados (CPR). Vivem na Casa de Acolhimento para Crianças Refugiadas na Bela Vista, em Lisboa..Ali fugiu do Afeganistão num grupo com "mais de cem pessoas". Dispersaram-se pelo caminho, encontrou outros "amigos", também um tio e o irmão mais velho em Teerão. Não é preciso quanto às datas e aos locais por onde passou, também não sabe quanto dinheiro gastou, apenas diz que "foi muito"..Levou quase 22 meses até chegar a Portugal, mas esta não foi a primeira escolha. "Não tinha destino, o que queria era viver na Europa. Andava conforme encontrava amigos, ouvia o que diziam, seguia-os", explica. Foram 15 dias a pé desde Cabul para passar a fronteira com o Irão, atravessou montanhas e rios. Em Mashhed, a segunda cidade iraniana, apanhou um autocarro para a capital. Em Teerão viveu oito meses com o irmão, trabalhou na oficina de automóveis do tio. Precisava de dinheiro para a viagem e esperava um Mediterrâneo mais calmo, da Turquia para a Grécia..Escondeu-se na mala de um carro até à fronteira do Irão com a Turquia. Passou a fronteira a pé, o que aconteceu sempre que cruzava os países, oito vezes no total. Apanhou um autocarro para Istambul e desceu até Izmir, à espera da oportunidade para se fazer ao mar. Arranjou lugar num bote sobrelotado, 60 pessoas, sabendo que podia ficar pelo caminho. "É perigoso, mas há muitas pessoas que conseguem passar e é a única forma de se chegar à Europa. O que queremos é chegar, temos de esconder o medo", justifica Ali, que tinha o irmão mais novo a cargo..À primeira tentativa, foram apanhados pela polícia turca, ele foi um dos nove a fugir. A mochila que levava perdeu-se no mar, incluindo 300 euros e 200 dólares. Três dias depois, nova tentativa, foram resgatados pela polícia grega após duas horas no mar, junto à ilha de Lesbos. Viveu num campo de refugiados, reencaminharam-no para Atenas, onde esteve nove meses, nos campos de Pireu e Oinofyta..Em Oinofyta conheceu Mariana Cardoso, investigadora que esperava a defesa da tese de doutoramento em Neurociência e ali fez voluntariado e ensinava inglês. Também Canelle Kraft, uma francesa que residia em Portugal. Gostou logo delas, ainda sem saber que se tornariam fundamentais. Deixou o campo de refugiados, fugiu da Grécia num camião, encaixado no eixo entre as rodas. 52 horas sem comer nem dormir. Só descansou quando o condutor fez a travessia de barco, mas sem sair de baixo do veículo. Chegou à Itália durante a noite, descarregado num campo agrícola. De manhã apanhou o autocarro para Milão, onde encontrou amigos. E com eles seguiu até Paris, onde viveu 45 dias numa tenda debaixo da ponte, nas margens do Sena, comia o que aparecia, poucas vezes tomou banho. Recorda Ali: "Um amigo disse-me "vai para Portugal, lá é muito bom"." Veio num grupo de quatro, sem um tostão nos bolsos..Viajaram de comboio até perto da fronteira com a Espanha, apanharam um revisor "simpático" que os deixou passar. Saíram na última paragem, com o objetivo de chegar a Barcelona. Caminharam quatro horas de noite pelos Pirenéus. Chegados a Espanha foram apanhados e recambiados para França. Só à quarta tentativa conseguiram..Amizade, sorte e não só.A paragem seguinte foi Tavira, por vezes de comboio, muitas a pé, levaram 15 dias, chegou em outubro de 2016. A polícia descobriu-os e escoltou-os ao centro de detenção do Aeroporto de Lisboa, onde estiveram cinco dias. Encaminharam Ali para o Centro de Instalação Temporária do Porto; ficou dois meses. Era menor, com estatuto de proteção especial, foi acompanhado pelo CPR, primeiro no centro de acolhimento da Bobadela, depois na Casa de Acolhimento para Crianças Refugiadas na Bela Vista. Saiu há oito meses..Recebe 435 euros da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, paga 250 pela casa no Alto de São João. Encontra-se com o DN lá perto, na Alameda, num encontro que começa com Ali a apanhar cinco euros em moedas no chão. Diz logo: "Vou dar este dinheiro a quem encontrar na rua a pedir." Questionado o porquê, responde: "Não podemos ficar com o que encontramos, não é nosso, dá azar. E eu tenho tido muita sorte." Faria o mesmo se encontrasse um objeto ou uma peça de roupa, explica. Fala a sorrir, contando os maus bocados sem ressentimentos, sempre otimista..As voluntárias com quem esteve na Grécia revelaram-se preciosas para a sua integração. O valor da renda é um preço especial conseguido por Canelle Kraft, que viveu na mesma casa. Após o voluntariado em Atenas, Canelle voltou a Portugal. Quando soube que tinham detido um afegão em Tavira, menor e que lhe faltava um dente, correu para o Algarve porque sabia que faltava um dente a Ali. Mas o rapaz já não estava lá. Só o conseguiu encontrar na Bobadela. Mariana Cardoso faz investigação nos EUA, mas está em contacto com o Ali. E os pais e os irmãos são a família que o jovem aqui não tem, nos convívios ou nas emergências..Ali começou a treinar três meses após chegar a Portugal, aperfeiçoou técnicas que adquiriu em miúdo no Afeganistão e no Espaço Reaj, em Alvalade. Pratica kung-fu, kickboxing, muai thai e sanda (boxe chinês). Agradece aos treinadores a paciência, começou sem saber português e mal falava inglês. O que mais gosta é de sanda e vê no treinador, Diogo Rodrigues, um amigo. "Tenho entrado em combates e já ganhei sete medalhas. Quero ficar aqui, obter a nacionalidade portuguesa e combater por Portugal", diz entusiasmado..Gostaria, também, de ter emprego e voltar a estudar, mas precisa de obter equivalências aos estudos no Afeganistão. Trabalhou numa geladaria, de um cidadão do Bangladesh, que pagava mal e não fez contrato. "Faço qualquer coisa", diz. Mas o que queria mesmo era voltar a trabalhar com livros, como na última Feira do Livro de Lisboa, a atender o público no stand da Alêtheia, de Zita Seabra..Ali Nazari conheceu Zita Seabra no parque da Bela Vista, num dia em que ele não estava bem. "Disse-me que me ajudava e ajudou. E vão escrever um livro sobre mim, até já tem capa e nome: O Meu Amigo Bruce Lee."
Ali Nazari Hossein fugiu da guerra do Afeganistão. Fugiu da desesperança, do futuro incerto, fugiu para estudar e sonhar. Disse-lhe isso o pai, que juntou ao seu dinheiro o de familiares para os dois filhos mais novos deixarem Parwan, a cidade natal, na província de Cabul. Sofreu uma emboscada nas montanhas quando seguia de carrinha para vender os produtos que cultivava, feriu-se na perna e desistiu da agricultura. Convenceu-se de que o melhor seria enviar Ali, na altura com 15 anos, e Ahmada, com 13, para a Europa. O mais novo chorou tanto que, já na Grécia, pediu para ser deportado. Ali alcançou Lisboa ao fim de 651 dias e milhares de quilómetros: a pé, de carro, de autocarro, de comboio, de bote e num camião. Viajou na mala do carro e no eixo de um camião. Três meses depois de chegar a Portugal, começou a praticar artes marciais e já ganhou sete medalhas. Sonha um dia conquistá-las com a camisola portuguesa.."No Afeganistão tinha problemas, não conseguia estudar, e o meu pai, o meu tio, o meu irmão mais velho, juntaram dinheiro para eu sair ", conta Ali, hoje com 20 anos. A mãe morreu, Ali vivia com o pai e a madrasta em Parwan. A irmã mais velha, com 29 anos, vive no Irão, e tem um irmão, de 25, no Dubai. Ahmada, de 18, vive no Afeganistão. Estava num campo de refugiados na Grécia quando pediu para ser deportado. Ali pensa que estão nesses países, mas não têm falado..Deixou o Afeganistão com 15 anos, em dezembro de 2014, fez 20 no dia 1 de março deste ano. O irmão, dois anos mais novo, não aguentou as saudades. Fazem parte dos milhares de menores de idade que fogem do país sem a família. Em 2016, entraram em Portugal 32 crianças e jovens refugiados não acompanhados, 35 em 2017 e 40 em 2018. São apoiados, como os adultos, pelo Centro Português para os Refugiados (CPR). Vivem na Casa de Acolhimento para Crianças Refugiadas na Bela Vista, em Lisboa..Ali fugiu do Afeganistão num grupo com "mais de cem pessoas". Dispersaram-se pelo caminho, encontrou outros "amigos", também um tio e o irmão mais velho em Teerão. Não é preciso quanto às datas e aos locais por onde passou, também não sabe quanto dinheiro gastou, apenas diz que "foi muito"..Levou quase 22 meses até chegar a Portugal, mas esta não foi a primeira escolha. "Não tinha destino, o que queria era viver na Europa. Andava conforme encontrava amigos, ouvia o que diziam, seguia-os", explica. Foram 15 dias a pé desde Cabul para passar a fronteira com o Irão, atravessou montanhas e rios. Em Mashhed, a segunda cidade iraniana, apanhou um autocarro para a capital. Em Teerão viveu oito meses com o irmão, trabalhou na oficina de automóveis do tio. Precisava de dinheiro para a viagem e esperava um Mediterrâneo mais calmo, da Turquia para a Grécia..Escondeu-se na mala de um carro até à fronteira do Irão com a Turquia. Passou a fronteira a pé, o que aconteceu sempre que cruzava os países, oito vezes no total. Apanhou um autocarro para Istambul e desceu até Izmir, à espera da oportunidade para se fazer ao mar. Arranjou lugar num bote sobrelotado, 60 pessoas, sabendo que podia ficar pelo caminho. "É perigoso, mas há muitas pessoas que conseguem passar e é a única forma de se chegar à Europa. O que queremos é chegar, temos de esconder o medo", justifica Ali, que tinha o irmão mais novo a cargo..À primeira tentativa, foram apanhados pela polícia turca, ele foi um dos nove a fugir. A mochila que levava perdeu-se no mar, incluindo 300 euros e 200 dólares. Três dias depois, nova tentativa, foram resgatados pela polícia grega após duas horas no mar, junto à ilha de Lesbos. Viveu num campo de refugiados, reencaminharam-no para Atenas, onde esteve nove meses, nos campos de Pireu e Oinofyta..Em Oinofyta conheceu Mariana Cardoso, investigadora que esperava a defesa da tese de doutoramento em Neurociência e ali fez voluntariado e ensinava inglês. Também Canelle Kraft, uma francesa que residia em Portugal. Gostou logo delas, ainda sem saber que se tornariam fundamentais. Deixou o campo de refugiados, fugiu da Grécia num camião, encaixado no eixo entre as rodas. 52 horas sem comer nem dormir. Só descansou quando o condutor fez a travessia de barco, mas sem sair de baixo do veículo. Chegou à Itália durante a noite, descarregado num campo agrícola. De manhã apanhou o autocarro para Milão, onde encontrou amigos. E com eles seguiu até Paris, onde viveu 45 dias numa tenda debaixo da ponte, nas margens do Sena, comia o que aparecia, poucas vezes tomou banho. Recorda Ali: "Um amigo disse-me "vai para Portugal, lá é muito bom"." Veio num grupo de quatro, sem um tostão nos bolsos..Viajaram de comboio até perto da fronteira com a Espanha, apanharam um revisor "simpático" que os deixou passar. Saíram na última paragem, com o objetivo de chegar a Barcelona. Caminharam quatro horas de noite pelos Pirenéus. Chegados a Espanha foram apanhados e recambiados para França. Só à quarta tentativa conseguiram..Amizade, sorte e não só.A paragem seguinte foi Tavira, por vezes de comboio, muitas a pé, levaram 15 dias, chegou em outubro de 2016. A polícia descobriu-os e escoltou-os ao centro de detenção do Aeroporto de Lisboa, onde estiveram cinco dias. Encaminharam Ali para o Centro de Instalação Temporária do Porto; ficou dois meses. Era menor, com estatuto de proteção especial, foi acompanhado pelo CPR, primeiro no centro de acolhimento da Bobadela, depois na Casa de Acolhimento para Crianças Refugiadas na Bela Vista. Saiu há oito meses..Recebe 435 euros da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, paga 250 pela casa no Alto de São João. Encontra-se com o DN lá perto, na Alameda, num encontro que começa com Ali a apanhar cinco euros em moedas no chão. Diz logo: "Vou dar este dinheiro a quem encontrar na rua a pedir." Questionado o porquê, responde: "Não podemos ficar com o que encontramos, não é nosso, dá azar. E eu tenho tido muita sorte." Faria o mesmo se encontrasse um objeto ou uma peça de roupa, explica. Fala a sorrir, contando os maus bocados sem ressentimentos, sempre otimista..As voluntárias com quem esteve na Grécia revelaram-se preciosas para a sua integração. O valor da renda é um preço especial conseguido por Canelle Kraft, que viveu na mesma casa. Após o voluntariado em Atenas, Canelle voltou a Portugal. Quando soube que tinham detido um afegão em Tavira, menor e que lhe faltava um dente, correu para o Algarve porque sabia que faltava um dente a Ali. Mas o rapaz já não estava lá. Só o conseguiu encontrar na Bobadela. Mariana Cardoso faz investigação nos EUA, mas está em contacto com o Ali. E os pais e os irmãos são a família que o jovem aqui não tem, nos convívios ou nas emergências..Ali começou a treinar três meses após chegar a Portugal, aperfeiçoou técnicas que adquiriu em miúdo no Afeganistão e no Espaço Reaj, em Alvalade. Pratica kung-fu, kickboxing, muai thai e sanda (boxe chinês). Agradece aos treinadores a paciência, começou sem saber português e mal falava inglês. O que mais gosta é de sanda e vê no treinador, Diogo Rodrigues, um amigo. "Tenho entrado em combates e já ganhei sete medalhas. Quero ficar aqui, obter a nacionalidade portuguesa e combater por Portugal", diz entusiasmado..Gostaria, também, de ter emprego e voltar a estudar, mas precisa de obter equivalências aos estudos no Afeganistão. Trabalhou numa geladaria, de um cidadão do Bangladesh, que pagava mal e não fez contrato. "Faço qualquer coisa", diz. Mas o que queria mesmo era voltar a trabalhar com livros, como na última Feira do Livro de Lisboa, a atender o público no stand da Alêtheia, de Zita Seabra..Ali Nazari conheceu Zita Seabra no parque da Bela Vista, num dia em que ele não estava bem. "Disse-me que me ajudava e ajudou. E vão escrever um livro sobre mim, até já tem capa e nome: O Meu Amigo Bruce Lee."