Fugir dos ataques a Palma de muletas, a gatinhar, às cavalitas

Em Pemba, os deslocados continuam a aumentar, mas chega a haver "dois a três meses sem doações" e a fome grassa, permitindo fazer apenas uma refeição por dia.
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Marcos Afonso, 37 anos, vive paralisado das pernas e só graças a quem o carregasse às costas conseguiu sobreviver ao ataque à vila de Palma, no norte de Moçambique.

Agora, o que lhe mata a esperança é a falta de apoios para quem tem necessidades especiais. "Queimaram a minha cadeira de rodas" durante o ataque à vila, no passado dia 24 de março, conta.

Fugiu pelo mato e foram quase 30 quilómetros em que foi transportado "às cavalitas" de uns e outros, que também o escondiam quando era preciso evitar os grupos armados. "Ainda não sei o que fazer", afirma à Lusa, abrigado numa precária casa de amigos em Pemba, sentado numa esteira, sob uma mangueira, sem apoio social ou médico.

Abu Caísse, 70 anos, fugiu de barco a partir da zona baixa da vila, junto à praia - os ataques começaram no centro, na zona alta, o que lhe deu vantagem suficiente para poder fugir de muletas e a gatinhar devido à deficiência nas pernas.

"Eu saí, pouco a pouco e a gatinhar" e integrou um grupo em que várias pessoas o ampararam até entrar no barco.

Cipriano Pios, 63 anos, sobreviveu a três ataques a Mocímboa da Praia, norte de Moçambique, apesar de mal conseguir mexer os pés. Um filho foi assassinado, outros familiares degolados e, no final, ninguém era sepultado: "Os corpos ficavam ali ao ar livre e os cães a comer", descreve.

Decidiu que estava na hora de partir e em agosto de 2020 instalou-se junto de familiares em Pemba. "Pessoas de boa vontade carregaram-me" até apanhar um transporte para a capital provincial, onde vive confinado a um quarto numa casa precária de caniço e barro, sem apoio, nem social nem médico e poucas vezes alimentar.

Mesmo para chegar ao hospital público, em Pemba, seria preciso dinheiro para transporte que não tem - e sozinho não consegue chegar à paragem mais próxima.

Mesmo o apoio alimentar básico falta: "Chegamos a passar dois meses sem nada", refere, num relato repetido por outros habitantes, no bairro de Mahate, assim como noutras zonas da cidade. E quem chega é registado como deslocado interno, mas sem que os mais vulneráveis tenham especial amparo.

Duas mulheres, Niamo Rafim, 30 anos, e Nununi Balamar, 29 anos, vivem juntas depois de se terem perdido dos maridos durante a fuga e ambas se queixam da fome, com cinco crianças ao lado, na esteira, a esperar que o tempo passe.

Um grupo que vai crescer: Nununi está grávida de cinco meses, sem acompanhamento médico ou qualquer outro tipo de apoio que acautele a sua condição.

"Neste ano as coisas não estão a andar bem", queixa-se Ungone Amisse Ali, régulo (chefe tradicional) dos bairros de Mahate, Muxara e Mecula, ele próprio incapacitado de uma das pernas.

Os deslocados continuam a aumentar, mas chega a haver "dois a três meses sem doações" e a fome grassa, permitindo fazer apenas uma refeição por dia. "Precisamos da intervenção das organizações doadoras", apela.

É por isso que Cipriano Pios gostava de regressar a Mocímboa da Praia, porque acredita que se voltar a lavrar as suas machambas (hortas), não voltará a ter fome por só depender de ajudas.

Só não regressa porque há muitas incertezas sobre as condições de segurança nos distritos sob conflito. "Eu voltarei a Palma quando o governo disser. Não pode ser assim de qualquer maneira", diz Abu Caísse.

A crise humanitária cresce e já fez 700 mil deslocados em três anos e meio de conflito, além de um número incalculado de mortes, mas que superam os 2500.

Luís Fonseca é jornalista da Agência Lusa.

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