Freud: a luta final contra o cancro e os nazis

Compilação de três capítulos sobre os dias finais da vida de Sigmund Freud da autoria do historiador António Araújo e publicados recentemente no Diário de Notícias.
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Viena (1ª parte)

Nunca como naquela terça-feira a hipótese de suicídio lhe pareceu tão nítida e convidativa.

Em Fevereiro de 1923, Freud detectou um inchaço na boca, uma leucoplaquia, que atribuiu - e bem - ao consumo imoderado de charutos, mas que decidiu - e mal - não comunicar a ninguém, para que o não maçassem com conselhos para deixar de fumar. Em Abril, confidenciou ao fiel discípulo Ernest Jones que tinha um tumor benigno na boca e o dermatologista que consultou aconselhou-o - e bem - a deixar de fumar, mas resolveu - e mal - ocultar-lhe o rápido crescimento do neoplasma. Mesmo o médico a que foi a seguir optou pelo eufemismo, falando numa "leucoplaquia má", mas Freud percebeu que algo de muito grave se passava. Acabou por ser operado por um terceiro clínico, que lhe removeu o tumor e reconstruiu o maxilar, mas que, uma vez mais, escondeu o nome da doença e açucarou o diagnóstico com (justificado) receio de que Freud se suicidasse.

A outra razão era o cão. Em 1928, sabendo já estar doente de cancro, Sigmund comprou uma cadela chow-chow chamada Lun-Yug à americana Dorothy Burlingham, que se notabilizará como psicanalista infantil e como amiga muito íntima de Anna Freud. Uns meses depois, a cadela Lun-Yug desapareceu na estação de comboios de Salzburgo, enquanto a transportavam para Viena, e, passados alguns dias, foi encontrada morta na linha ferroviária. Em 1930, Freud decidiu adquirir uma nova cadelinha chow-chow, Jo-Fi, irmã de Lun-Yug, que se tornaria famosa por passar longas horas sentada aos pés do dono enquanto este mergulhava nos abismos de alma dos seus pacientes, que lhe contavam as suas fantasias sexuais deitados num divã coberto por tapetes persas e almofadões de veludo (a partir da década de 1940, não muitos anos depois de Freud morrer, a Leather Furniture Company, uma empresa de Queens, Nova Iorque, faria bom dinheiro a comercializar sofás especiais para a prática de psicanálise).

A clientela do psicanalista ficava arrepiada com o odor característico do seu consultório, uma combinação explosiva de cheiro a cão peludo e a fumo de charuto (em média, 20 charutos por dia), mesclado com a fragrância própria de têxteis impregnados do suor e lágrimas de várias gerações de doentes do espírito. Mas o doutor Freud não só tinha o vício do tabaco como amava loucamente a sua chow-chow felpuda, pelo que os que queriam ter o privilégio de uma consulta no n.º 19 da Berggasse já sabiam o que os esperava. Um deles, um poeta norte-americano conhecido apenas pelas iniciais H.D., ficou deleitado com Jo-Fi, "uma criaturinha com ares de leão", mas, um dia, confessou ao seu diário que saíra do consultório algo agastado, ao ter a nítida sensação de que, durante todo o tempo da sessão, Freud esteve muito mais interessado nos humores da cadelinha do que nos traumas de infância do seu paciente.

Em Janeiro de 1937, Jo-Fi deu entrada numa clínica para uma operação rotineira de remoção de um par de quistos nos ovários. Dias depois, inexplicavelmente, teve um ataque cardíaco e morreu. O pai da psicanálise ficou devastado, a ponto de escrever ao seu amigo Arnold Zweig (escritor, pacifista e socialista alemão, sem qualquer relação de parentesco com Stefan Zweig), que "não era fácil ultrapassar sete anos de intimidade com alguém". Para superar a terrível perda, no dia seguinte comprou logo outro cão, o chow-chow Lün. Melhor dizendo, Lün já tinha sido seu, mas, por causa dos ciúmes da favorita Jo-Fi, teve de ser devolvido à procedência, isto é, a casa da discípula Dorothy Burlingham.

Indiferentes a estes psicodramas caninos, os nazis resolveram anexar a Áustria em Março de 1938. Mas nem o Anschluss demoveria Freud da sua paixão zoófila. O autor de Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade acreditava que os cães tinham uma natureza totalmente pura, não corrompida pela civilização, e sobre o chow-chow de Marie Bonaparte dirá que não era difícil explicar o amor de um ser humano por um cão como aquele, "pelo seu afecto incondicional, destituído de ambivalências, pela simplicidade de uma vida liberta dos insuportáveis conflitos da civilização, pela beleza de uma existência completa em si mesma".

Ao entregar-se à tradução de um livro sobre o cão de raça de uma princesa - ou, se preferirmos, de um livro de uma princesa sobre o seu cão de raça -, Sigmund e Anna Freud terão certamente pensado, mesmo que jamais o hajam dito, que ele poderia ter um destino semelhante ao de Topsy e salvar-se do tumor que o corroía. Até nós nos interrogamos sobre a singular circunstância de um cão ter fintado a morte, mas ele não. Depois de mais 30 cirurgias e de uma longa agonia de 16 anos, foi talvez um desfecho injusto, injustíssimo, tão ou mais injusto como ter sido doze vezes nomeado para o Nobel da Medicina e uma para o da Literatura e nunca ter ganho o prémio, ou de o livro que ele considerava a sua obra mais importante, A Interpretação dos Sonhos, ter vendido umas míseras 351 cópias nos primeiros seis anos após a publicação.

Em todo o caso, o mais admirável da história é que em momento algum Freud perdeu o bom humor ou censurou a sorte. Chegou a gracejar com a princesa e perguntar-lhe, numa das cartas, se Topsy iria ler a tradução em que ele e a filha estavam a trabalhar com tanto afinco, todas as noites, no escritório pestilento, quando o tempo e a vida lhe escapavam a cada instante e quando sobre a sua família e o seu povo pesava uma ameaça bem mais maligna do que o mais maligno dos cancros.

A 9 de Abril de 1938, o dia em que Adolf Hitler entrou triunfalmente em Viena de Áustria, Sigmund Freud anotou no seu diário, sem mais: "Tradução de Topsy concluída." Poucos dias antes, em final de Março, a Gestapo tinha estado no n.º 19 da Berggasse e levara Anna. Anna, a mais nova, a mais amada, aquela que, dos seis filhos de Sigmund Schlomo Freud, este considerava ser a única capaz de lhe seguir as pisadas e continuar a obra. Anna, que desistira de tudo para se dedicar ao pai, uma opção de vida que Freud talvez devesse ter questionado à luz das suas próprias teorias, mas que, ao invés, alimentou em termos não muito sadios.

Anna converteu-se em sua paciente, confessava-lhe todas as suas fantasias eróticas e as suas primeiras incursões na masturbação, Sigmund tornou-se um pai hiperprotector, que, quando ela chegou aos 20 anos e começou a despertar o interesse dos homens, insistiu que era nova de mais para casar. Num dia em que Anna o abandonou para um curto período de férias, Freud escreveu à amiga Lou Andreas-Salomé dizendo que compreendia que a filha estivesse farta de estar confinada em casa na companhia de dois velhos, ele e Martha, mas que, ao mesmo tempo, se ressentia por estar privado da sua companhia, que o ajudava em tudo, desde os trabalhos intelectuais aos cuidados de saúde e de higiene.

Pondo-se no lugar da mãe, num interessante complô freudiano, era Anna que o auxiliava na leitura e na escrita, que lhe dava os remédios a horas, que lhe removia a dolorosa prótese do maxilar, que indagava a todo o instante se Sigmund estava bem e se sentia confortável.

Ao contrário do que muitas vezes se julga, os nazis não eram, ou não começaram por ser, inimigos da psicanálise. Quando alcançaram o poder, em 1933, não encerraram o Instituto de Psicanálise de Berlim, como seria de esperar. O que fizeram, sim, foi despedir, naturalmente, todos os analistas judeus e colocar à frente no Instituto um primo de Hermann Göring, o psiquiatra e neurologista Matthias Göring, que, apesar de ser da linha adleriana, crítica de Freud, não descartava o legado do mestre vienense, considerando-o excessivamente materialista e pansexualista mas não inteiramente destituído de fundamento.

Com o tempo, as coisas iriam mudar, sem dúvida, mas nos seus alvores o nazismo entendia que a psicanálise era uma "ciência judaica" e, como tal, susceptível de explicar as muitas e muito antigas taras do povo semita. Carl Jung, o antigo e bem-amado discípulo de Freud, chegou a afirmar que o "inconsciente colectivo ariano" tinha muito mais potencialidades do que o judaico, pois era mais jovem e mais vigoroso, e, ao contrário deste, não estava ainda corrompido por milénios de barbárie.
Quando a Gestapo prendeu Anna Freud, fê-lo por suspeitar de que a Associação Psicanalítica Internacional era uma organização de fachada de um vasto movimento sionista e antinazi.

Naturalmente, visavam o alvo principal, Sigmund, mas Anna convenceu-os, com uma ponta de razão, de que o estado de saúde do pai não lhe permitia deslocar-se ao quartel-general da Gestapo e que um interrogatório na polícia poderia ser fatal, um risco que os nazis não estavam dispostos a correr. Quando entraram na casa de Freud, aliás, Marie Bonaparte estava lá, preparada para o pior, e ofereceu-se corajosamente para ser levada em lugar de Sigmund ou de Anna, mas os homens da Gestapo, como é óbvio, descartaram a possibilidade de prender uma sobrinha-bisneta de Napoleão Bonaparte, casada com o príncipe Jorge, irmão do rei Constantino da Grécia e primo de Cristiano X, monarca da Dinamarca.

Antes de Anna sair de casa, Max Schur, o médico pessoal de Freud, que estava no local, deu-lhe uma dose de Veronal, um veneno potente para a eventualidade de querer suicidar-se na sede da polícia, se acaso os nazis começassem a torturá-la, o que não aconteceu. Sigmund nunca soube deste gesto do seu médico assistente, que decerto teria asperamente censurado. Em contrapartida, foi ele que, nas longas horas de espera pelo regresso de Anna, fumando charuto atrás de charuto, mais pensou em suicidar-se. Não era a primeira vez que o fazia e, naqueles anos todos de cruciante luta com o cancro, em várias ocasiões ponderou terminar a vida. Mas nunca como naquela terça-feira, 22 de Março, a hipótese de suicídio lhe pareceu tão nítida e convidativa.
Anna retornou ilesa e, dias depois, os Freud recebiam uma boa notícia: Ernest Jones, que estivera em Inglaterra em contactos ao mais alto nível, chegou de Londres com a informação de que o Governo britânico lhes dava autorização de entrada, não apenas para os membros da família como para outros psicanalistas de Viena. Era tempo de fazer as malas.

O dia 17 de Abril, que marcava o 52.º aniversário do início da sua prática como psicanalista, foi ensombrado pela triste constatação de que Freud não mais teria capacidades para atender pacientes. Despedira-se dos dois últimos não muito depois do Anschluss, agora começava a tentar ordenar as coisas para a partida definitiva, em mais do que um sentido. A 19 de Abril, ofereceu ao seu irmão Alexander o stock de charutos, guardando naturalmente alguns para o seu consumo. Freud não era apenas um fumador inveterado, era um apologista dos prazeres do fumo, que cultivou até à morte. Também o seu pai fora um grande fumador até morrer, com 81 anos, e, quando um sobrinho de Freud fez 17 anos, este ofereceu-lhe o primeiro cigarro, que o jovem declinou. O psicanalista deu-lhe então um conselho muito pouco clínico: "Meu rapaz, fumar é um dos maiores e mais baratos prazeres da vida, mas, se decidiste não fumar, só posso ter pena por ti."

Para Sigmund Freud , o acto de fumar era "uma protecção e uma arma no combate da vida".
Agora, sob a pressão da doença e dos nazis, precisava de fumar mais do que nunca. Em Janeiro daquele ano, foi sujeito a mais uma operação, esta particularmente difícil e brutal, pois o tumor avançara para uma região de difícil acesso, na cavidade ocular, e o cirurgião teve de criar um instrumento próprio para a alcançar. Um mês depois, nova operação, enquanto o espectro de Hitler, como um tumor maligno, ia avançando rumo a Viena.

A Freud, porém, nunca faltaram os apoios, alguns deles de peso. Da América, nação que odiava, veio um auxílio decisivo: a 10 de Março, o encarregado de negócios da embaixada norte-americana em Viena deslocou-se a casa do psicanalista para o informar de que os Estados Unidos tudo fariam para o proteger. Freud gozava de imensa reputação no país, era uma figura popular a quem o director do Chicago Tribune oferecera 25 mil dólares para ir a Chicago analisar dois assassinos famosos, Leopold e Loeb, ou a quem o produtor cinematográfico Samuel Goldwyn prometera a astronómica quantia de cem mil dólares para ir viver para Hollywood e colaborar na feitura de filmes (afinal de contas, gracejava Goldwyn, quem sabia mais do que Freud sobre o amor e o riso, os dois ingredientes do cinema?).

Apesar de viver em constantes apertos financeiros, Freud recusara as duas propostas milionárias, mas nem isso fez esmorecer o fascínio dos americanos pela sua obra e, mais do que isso, pela sua figura de cavalheiro burguês, convencional e conservador, sempre impecavelmente vestido no seu fato de três peças, que descobrira os mistérios da alma e se movia com total à vontade nas mais aberrantes fantasias da mente humana. Agora, até o presidente Roosevelt se interessava pelo seu destino.

Na manhã de 12 de Março, os jornais anunciavam a chegada ao poder de um nazi tido por moderado, Arthur Seyss-Inquart. Freud anotou no seu diário, lacónica e certeiramente: "Finis Austria." À noite, ao percorrer os vespertinos, teve um acesso de cólera absolutamente invulgar no seu temperamento e Martin, um dos seus filhos, ficou estupefacto ao ver o pai enfurecido a atirar os jornais para o chão da sala. No dia seguinte, enquanto Hitler anunciava aos cidadãos de Viena a anexação da Áustria pela Alemanha, um bando de nazis invadiu os escritórios da Internationaler Psychoanalytischer Verlag, a casa editorial que Freud fundara em 1919 para publicar as suas obras e as de outros psicanalistas. Martin Freud, entretanto chegado ao local, chegou a ser ameaçado com uma pistola, e só mais tarde veio a saber-se que aqueles esbirros de Hitler não passavam de um gangue de pequenos criminosos do submundo de Viena. Em todo o caso, todos os livros foram apreendidos e vasculharam-se os arquivos em busca de provas incriminadoras.

Freud, como muitos cidadãos austríacos, tinha depósitos em contas bancárias no estrangeiro, o que, se fosse descoberto pelos nazis, teria levado ao seu confisco imediato e até, porventura, à prisão do psicanalista e da sua família. A sorte de todos estava nas mãos de uma figura enigmática, singularíssima: Anton Sauerwald, um doutorado em Química pela Universidade de Viena que há muito colaborava com a polícia em casos com explosivos e que os nazis nomearam, logo a seguir ao Anschluss, como comissário do Reich para tratar dos assuntos relacionados com os negócios judaicos na capital austríaca.

A caminho de Londres (2ª parte)

No final, num toque onírico digno das teses do doutor Sigmund Freud, entregaram a Martha um recibo formal da quantia que tinham esbulhado.

Uma vitória esmagadora. No plebiscito na Áustria, 99,73% dos votantes pronunciaram-se a favor da unificação com a Alemanha. Na Alemanha, 90,92% dos eleitores disseram Ja à anexação da Áustria e 99,8% aprovaram a lista de candidatos do partido nazi ao novo Reichstag.

Hitler proclamou, ufano, que aquele era o dia de mais orgulho da sua vida. Uma data histórica, 10 de Abril de 1938.

Pouco depois, começaram as perseguições. Os nazis assaltaram-lhes as casas e as lojas, vandalizaram tudo à sua passagem. Bateram-lhes, insultaram-nos, obrigaram-nos a limpar, nas ruas e nas paredes, os slogans favoráveis à independência da Áustria. Nos teatros de Viena, as actrizes judias, mesmo as mais famosas, foram obrigadas a limpar as casas de banho para serviço dos oficiais das SA. Por toda a parte, pilhagens e humilhações.

Enquanto isso, dois homens esperavam. O nazi aguardava notícias sobre o seu futuro. Tinha o destino daquela família nas mãos, bastava uma palavra sua para que não os deixassem partir. O judeu, um velho de barbas bíblicas, estava doente, ia durar pouco. Mas, com uma fibra tremenda, nunca desistiu de escrever, na ânsia de terminar o seu livro sobre Moisés e o monoteísmo, uma obra que iria enfurecer muitos dos seus irmãos por sustentar que o profeta "tirado das águas" nascera num lar egípcio e que, ao contrário do que sustentava o Livro do Êxodo, não era um escravo judeu adoptado pela filha do faraó.

Mais ainda, o seu escrito dizia que o culto a um só Deus não foi uma criação dos judeus, mas do faraó Akhenaton e da sua mulher, a bela e enigmática Nefertiti, o "casal solar" que fundou uma nova capital, Amarna, e a primeira religião monoteísta, crente no deus Áton (o sucessor, o célebre Tutankhamon, cujo túmulo foi descoberto em 1922 por Howard Carter, fez regressar a capital a Tebas e restaurou o culto de Ámon e o politeísmo).

O nazi Anton Sauerwald, um químico de 35 anos encarregado de controlar os negócios dos judeus de Viena, não sabia o que o Anschluss lhe traria. Enquanto esperava, começou a ler as obras de Sigmund Freud, apreendidas na Internationaler Psychoanalytischer Verlag, a casa editorial que este fundara anos antes, em 1919. Ao vasculhar os arquivos da editora, os dossiês com as contas e a papelada, descobriram que o psicanalista, como muitos outros judeus vienenses, tinha contas bancárias no estrangeiro, o que, além do confisco imediato, poderia impedi-lo, e à sua família, de abandonar a Áustria.

As hordas de nazis, muitas delas compostas por criminosos de delito comum ou rufias que gravitavam no submundo de Viena, tinham ido também a casa da família Freud, no n.º 19 da Bergasse. Paula Fichtl, a criada, contaria mais tarde que Martha, a matriarca, manteve-se espantosamente calma durante todo o tempo da rapina. Abriu a porta aos bandidos, disse-lhes para se sentarem nos sofás da sala, argumentando que em sua casa nenhuma visita esperava de pé. Chegou a propor-lhes que deixassem as espingardas e demais armas à entrada, para lhes ser mais fácil revistar todas as divisões da casa. Declinaram a oferta, era excessiva, desconcertante.

Mas quando Martha lhes disse que havia um cofre lá dentro, precipitaram-se sobre ele, vorazes. A senhora Freud abriu-lhes o cofre, convidou-os gentilmente a levar tudo quanto lá estava. "Sirvam-se, meus senhores", disse-lhes altivamente, enquanto eles metiam aos bolsos todo o dinheiro que viam, uns apreciáveis seis mil xelins. No final, num toque onírico digno das teses do doutor Sigmund Freud, entregaram a Martha um recibo formal da quantia que tinham esbulhado. Mal saíram, ela foi ao andar de cima contar ao marido o episódio bizarro. Sigmund, que se encontrava prostrado no famoso divã das consultas, deu mostras da sua proverbial sovinice e reagiu com ironia cortante: "Seis mil xelins? Nunca cobrei tanto por uma ida ao domicílio!"

No final de Abril, Freud sofreu um ataque de surdez que lhe retirou a audição durante vários dias. Uma dádiva dos deuses: assim, não pôde escutar os disparos com que os nazis celebraram nas ruas o 1.º de Maio. Segundo afirma Mark Edmundson em The Death of Sigmund Freud, foi nesse dia, muito provavelmente, que os sequazes de Hitler desfraldaram uma grande bandeira com a suástica à entrada da casa do psicanalista. Agora, o 1.º de Maio era deles, assinalado à sua maneira.

Cinco dias depois, Sigmund Freud celebrou o seu 82.º aniversário. Ou, melhor dizendo, sinalizou a passagem de mais um ano, provavelmente o último, no calendário da sua existência. Nunca fizera, de resto, questão de comemorar o aniversário, pois sempre entendeu que essa efeméride implicava estar mais próximo do fim, tinha ressonâncias de morte. Agora, em Maio de 1938, corroído há vários anos por um cancro na boca, a finitude estava ali, diante de si, como nunca estivera. Dois anos antes, no 80.º aniversário, e apesar de já estar minado pela doença, tudo fora diferente: algo a contragosto, tivera de aceitar as homenagens vindas de toda a parte, as saudações efusivas de Albert Einstein, Thomas Mann, H. G. Wells, Romain Rolland, Albert Schweitzer e tantos outros. Ainda assim, escreveu na altura a Stefan Zweig que, embora tenha sido sempre invulgarmente feliz no seu lar, na companhia da mulher e dos filhos e, em especial, de uma filha que muito amava, apesar de tudo isso, disse, não conseguia reconciliar-se com a ideia de ser um velho.

Com os nazis aos tiros pelas ruas de Viena, o 82.º aniversário foi ainda pior. Para evitar amarguras, decidiu pura e simplesmente ignorar a data, impedindo festejos e celebrações. Escreveu ao fiel discípulo Ernst Jones, agradecendo-lhe os cumprimentos que enviara, e disse-lhe que tinham adiado as comemorações para Agosto ou por volta disso, já que era provável que em Maio conseguissem obter a tão ansiada autorização para partir. Pela mesma altura, escreveu também a Ernst Ludwig, o filho mais novo, o arquitecto, e terminou a carta dizendo: "Só duas coisas me animam nestes tempos sombrios: juntar-vos a todos - e to die in freedom." A expressão, escrita em inglês, condensa aquilo que era a maior aspiração de Sigmund Freud naqueles dias cruéis: morrer em liberdade, longe dali.

A 6 de Maio, a data do aniversário de Sigmund Freud, o embaixador americano em Berlim, Hugh Robert Wilson, informou o secretário de Estado Cordell Hull de que só faltava resolver a questão do pagamento das dívidas da editora para que o psicanalista e a família pudessem partir para o exílio. E, de facto, uma semana depois, Sigmund e os seus familiares receberam novos passaportes. Os anteriores tinham sido confiscados por alturas do Anschluss e, além do mais, não tinham agora qualquer validade, pois eram passaportes austríacos e a Áustria, enquanto tal, deixara de existir. Os novos documentos, para horror de Freud, ostentavam na capa a águia e a cruz gamada.

A primeira a partir foi a cunhada de Sigmund, Minna, que decidiu exilar-se apesar de ser idosa e estar muito doente. No final de Maio, foram a filha Mathilde e o marido, Robert Hollitscher. Antes dela, Martin Freud tinha conseguido viajar até Paris, onde já se encontravam a mulher e os dois filhos. Foi quase um milagre: quando os nazis irromperam na editora, Martin fora apanhado a destruir documentos comprometedores, mas não tivera tempo de eliminar os que diziam respeito aos fundos no estrangeiro e aos empréstimos que a empresa tinha contraído ao longo da sua existência, à luz dos quais existiam dívidas por saldar junto de alguns credores - o que, nos termos das leis vigentes, era motivo para impedir em absoluto que os Freud abandonassem o país.

O novo subchefe da polícia de Viena, um indivíduo corrupto que no passado acumulara um volumoso cadastro criminal, era amigo do cozinheiro de Martin Freud e, graças a essa ligação inesperada, o filho do psicanalista conseguiu reaver boa parte dos documentos apreendidos na rusga dos nazis à Internationaler Psychoanalytischer Verlag. Alguns papéis perigosos continuavam, porém, nas mãos das autoridades e Martin foi informado, possivelmente pelo polícia corrupto, de que estava na iminência de ser preso. Foi isso que precipitou a sua fuga para Paris, por comboio, a qual assumiu contornos próprios de um thriller: Martin transportava consigo algum dinheiro, o que era terminantemente proibido pelas leis nazis, mas só à última hora se apercebeu do risco que corria se acaso o apanhassem com aquele punhado de moedas no bolso. Assim, a primeira coisa que fez ao chegar ao comboio foi dirigir-se à carruagem-restaurante, onde esbanjou tudo quanto tinha na compra de um frango assado, o que lhe permitiu, por um lado, iludir a vigilância fronteiriça dos nazis e, por outro, ter comida suficiente para a longa viagem de Viena até Paris.

Sigmund, por seu turno, continuava à espera, no martírio da paciência. Da imensa papelada exigida, faltava-lhe agora apenas um documento, uma "declaração de não impedimento de saída do país". A 21 de Maio, foi notificado da avaliação feita à sua colecção de antiguidades, com vista a calcular o imposto que deveria pagar para a levar para o estrangeiro. Uma vez mais, Freud contou com apoios que não estavam à disposição da esmagadora maioria dos judeus de Viena: Hans Demel, curador do departamento de antiguidades egípcias e orientais do Kunsthistorisches Museum, atribuiu à colecção o valor muito baixo, quase irrisório, de 30 mil marcos, o que permitiu ao psicanalista liquidar o respectivo imposto sem grandes problemas.

Saldadas as contas com as finanças, faltava apenas empacotar o acervo magnífico e ultimar os pormenores da viagem. Freud passou a dedicar uma parte do seu dia a organizar a biblioteca e a colecção de antiguidades, algo que, para o seu feitio pouco dado a arrumações, foi um tormento adicional, a juntar aos muitos de que já padecia.

A contemplação, com calma e vagar, de cada livro, de cada peça da sua colecção, trouxe-lhe recordações infindas, lembranças do esforço e do dinheiro que despendera para constituir aquele seu museu privado. Freud era um negociador difícil, que raramente comprava um objecto sem regatear o preço à exaustão. Muitas peças foram compradas após discussões épicas, de semanas, outras tinham-lhe sido oferecidas por pacientes ou até por admiradores anónimos das mais remotas partes do mundo. A amiga de sempre, Marie Bonaparte, aceitou transportar para Paris, no maior dos segredos, a obra que Freud mais apreciava, o seu tesouro íntimo, uma estatueta minúscula de Atena, a deusa grega da sabedoria, protectora das artes e da justiça. Nunca, como naqueles dias em Viena, Freud sentira tanto a falta do sopro da civilização, mesmo que sob a forma mitológica de uma divindade antiga, antiquíssima, das mais antigas do panteão helénico, que, segundo a lenda, jamais se casou ou teve amantes, vivendo em estado de virgindade perpétua. Que, nos seus dias derradeiros, o autor de O Mal-estar na Civilização de e Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade tenha tido o amparo de uma deusa castíssima, eternamente virgem, é só mais um detalhe singular, entre tantos outros, desta história do fim de Freud.

Estava tudo pronto, ou quase. Com as malas arrumadas e as despedidas feitas, faltava apenas a famigerada "declaração de não impedimento de saída". Para a obter, havia que liquidar as dívidas da editora, que, num gesto de esbulho final, os nazis calcularam na considerável soma de 32 mil xelins. O psicanalista não dispunha de tamanha quantia e, de novo, a princesa Bonaparte veio em seu socorro. Sem grandes delongas, pagou a fortuna em falta, os Freud eram agora livres de partir.
No derradeiro instante, as autoridades fariam uma última exigência: o psicanalista deveria subscrever uma declaração afirmando que os nazis tinham-no tratado bem e à sua família. No papel que lhe deram para assinar, escreveu então, num lampejo de génio: "Recomendo vivamente a Gestapo a toda a gente."

No sábado 4 de Junho de 1938, Freud subiu a bordo no Expresso do Oriente, à frente de uma comitiva composta pela sua mulher, Martha, por Anna, a filha muito querida, por Paula Fichtl e por Mitzi, as fiéis criadas, e por uma médica assistente, a doutora Josefine Stross, em substituição do clínico da família, Max Schur, chamado à última hora para uma operação de urgência a uma apendicite. E, claro, além de todos eles, o chow-chow Lün.

Quatro das cinco irmãs de Sigmund Freud morreriam em campos de concentração.

Londres (3ª parte)

Às primeiras horas da manhã, o comboio deu entrada na Victoria Station. A carruagem onde vinham parou lá atrás, num ponto recuado, para que Freud e a família pudessem apear-se longe da turba que os aguardava no cais.

Os jornais tinham anunciado entusiasticamente a sua chegada, Sigmund Freud e a psicanálise eram muito populares em Inglaterra. Para ele, que não desdenhava a fama, aquela segunda-feira, 6 de Junho de 1938, era um dia auspicioso. Na véspera, ao fazer a travessia do Canal, num ferry que o levara de França até Dover, tivera um sonho estranho, como sempre. Nesse sonho, o local onde desembarcava não era Dover, mas Pevensey, e, quando contou o episódio ao seu filho, teve de lhe explicar que Pevensey foi a terra onde Guilherme da Normandia desembarcou em 1066 para conquistar a Inglaterra.

Sigmund Freud não chegava a Londres como conquistador, longe disso. O seu propósito era fugir dos nazis para morrer em liberdade, to die in freedom, como confessou numa carta ao seu filho. Minado por um cancro há vários anos, sabia que lhe restava pouco tempo de vida. Ainda assim, não perdera a esperança de terminar o manuscrito do seu livro sobre Moisés e o monoteísmo.

A caminho da nova morada, fez questão de ir mostrando à mulher os pontos turísticos da cidade que conhecera na juventude. Passaram pelo Palácio de Buckingham, pelas Houses of Parliament, atravessaram Piccadilly Circus, Regent Street, por aí fora. Era feriado nesse dia, Martha e Sigmund puderam ver as enormes filas de automóveis que se encaminhavam em direcção à costa. Londres era então a cidade mais populosa do mundo, prestes a chegar aos oito milhões e 200 mil habitantes em 1939, e nem a iminência da guerra conseguira impor o confinamento. Nos cinemas, tal era a afluência de público, a Branca de Neve de Walt Disney passava em sessões contínuas, das onze da manhã às onze da noite. No dia em que Freud chegou a Londres, o zoo de Regent"s Park teve mais de 61 mil visitantes, enquanto nas imediações se realizava um desfile anual de animais de tiro, 574 cavalos em parada. E, no parque, entre os relvados, ópera ao ar livre, Così Fan Tutte.

Quem andasse pelas ruas e pelos jardins de Londres nunca diria que, por esses dias, os deputados do Parlamento tinham discutido o que aconteceria à cidade se fosse alvo de um bombardeamento aéreo alemão. Os especialistas, que também se enganam, asseguravam que, só nos primeiros 14 dias de ataque, cairiam cem mil toneladas de bombas sobre a cidade. Segundo os seus cálculos, que também se enganam, cada tonelada provocaria 50 mortes, o que daria um resultado final aterrador, com milhares ou milhões de vítimas (na realidade, os nazis nunca chegaram a lançar cem mil toneladas de bombas e estas nunca provocaram o número de baixas que os peritos previam).

Os Freud pararam à porta da sua nova casa, o n.º 39 de Elsworthy Road, que o filho Ernst arrendara temporariamente enquanto não encontrassem uma morada definitiva. Ao contrário da residência de Viena, a nova residência era estreita e desenvolvia-se na vertical, em vários pisos, o que não era muito prático para acomodar um doente terminal e os seus cuidadores. Apesar disso, Freud adorou a casa e, sobretudo, o jardim frondoso. Ao fim de meses confinado no n.º 19 da Berggasse, sem poder sair à rua com pânico dos ataques dos nazis, o psicanalista respirava o ar da liberdade e, enquanto caminhava no seu novo jardim, confessou que estava tentado a gritar "Heil Hitler!" a plenos pulmões.

O interior da residência encontrava-se repleto de ramos de flores enviados por admiradores e na mesa de entrada acumulavam-se as cartas a pedir autógrafos e entrevistas, até missivas de pintores que lhe queriam fazer o retrato. Freud, que nunca desdenhara a fama, e que sempre se sentira um injustiçado no seu país natal, rejubilava com tantas manifestações de carinho, que incluíam, para seu supremo deleite, várias ofertas de antiguidades feitas por gente que sabia que se ele vira temporariamente privado da sua colecção, retida na Áustria pela burocracia nazi e pela cupidez dos seus esbirros.

Dias depois, na sexta-feira 10 de Junho, o pai da psicanálise saiu de casa pela primeira vez. Para quê?, perguntamos. Para ir visitar o seu chow-chow, obrigado a permanecer em quarentena num canil de Ladbroke Grove, cujo director, claro, diria à imprensa nunca ter visto tanta alegria nos olhos de um cão como quando Lün avistou Sigmund Freud, como sempre vestido num pesado fato escuro de três peças, apesar do calor que então se fazia sentir na cidade.

A 23 de Junho, uma consagração retumbante. Os três secretários da Royal Society dirigiram-se à casa de Freud para que este assinasse o livro de honra daquela instituição, a academia científica mais antiga do mundo. Só o rei tinha a prerrogativa de assinar o livro da Royal Society no seu palácio, mas, tendo Freud alegado que estava demasiado doente para se dirigir à sede da academia, ninguém se atreveu a questionar como tivera saúde para, dias antes, ir visitar o seu chow-chow a um canil de quarentena. Assinou por baixo dos nomes de Isaac Newton e de Charles Darwin, duas figuras que sempre admirara, mas como em Inglaterra assinar apenas com o apelido era um privilégio reservado aos lordes, Sigmund Schlomo Freud teve, pela primeira vez em 40 anos, de escrever o nome completo.

Em meados de Julho, o n.º 39 de Elsworthy Road teve uma visita inesperada: na companhia de Stefan Zweig, Salvador Dalí concretizava o sonho, ou a fantasia mitómana, de conhecer Sigmund Freud, após várias tentativas frustradas para se avistar com ele em Viena. Uma vez, refere o pintor nas suas memórias, entrara em transe enquanto comia caracóis em França, ao ver na parede do restaurante um retrato de Freud. Deu então um grito sonoro, provavelmente assustando todos os presentes, pois, segundo ele, tinha descoberto o segredo da morfologia do cérebro do autor de Totem e Tabu. O crânio de Freud, de acordo com Dalí, assemelhava-se à casca de um caracol e, no interior, o cérebro tinha a forma de espiral para poder ser extraído com o auxílio de uma agulha... Ao chegar a Elsworthy Road, o pintor veria uma bicicleta encostada a um muro, em cima da qual passeava tranquilamente um caracol, como é óbvio. Todavia, nenhum destes delírios parece ter despertado o interesse do anfitrião, que praticamente não disse uma palavra enquanto Zweig e Dalí permaneceram no seu escritório. Freud fora vitimado há pouco por mais um ataque de surdez temporária, motivada por uma infecção, mas Dalí não o sabia e, por isso, falou torrencialmente dos seus próprios escritos acerca da paranóia. O psicanalista manteve-se impassível a olhar para ele durante longos minutos, talvez mesmo horas, após o que se limitou a olhar para o amigo Stefan Zweig e dizer, sem uma exaltação na voz: "Nunca vi um exemplo tão acabado de um espanhol. Que fanático!"

O pior, contudo, estava para vir. Quando trocaram algumas palavras sobre o surrealismo, Freud observou: "Na pintura clássica, procuro o subconsciente; nos quadros surrealistas, o consciente." Como refere Mark Edmundson no fascinante estudo The Death of Sigmund Freud, essa foi talvez a maneira elegante que Freud escolheu para dizer a Dalí que os seus quadros, que pareciam ser imensamente espontâneos e autênticos, vindos das profundezas da mente, eram, afinal, extremamente intelectualizados e, digamos assim, racionais e esquemáticos. Dalí parece ter acusado o toque e, ao recordar aquele diálogo, disse que aquela afirmação de Freud fora a sentença de morte do surrealismo. Paz à sua alma.

O psicanalista, contudo, parecia apreciar visitas como esta, que lhe amenizavam os dias, agora que o manuscrito do livro sobre Moisés estava concluído e que Freud vivia atormentando pela doença e pelo espectro do nacional-socialismo. Quatro das suas irmãs tinham ficado na Áustria, Sigmund receava pelo seu destino. Em Agosto, teve a feliz notícia de que o dinheiro que lhes deixara tinha chegado às suas mãos e que a amiga de sempre, a princesa Bonaparte, continuava a envidar esforços para resgatá-las das garras dos nazis. Marie Bonaparte chegou a propor, inclusivamente, que fosse comprada uma parcela do sul da Califórnia para alojar todos os judeus perseguidos por Hitler, e afirmou estar disposta a contribuir vultuosamente para esse projecto. Era tarde, porém. Dentro em breve, seis milhões de seres humanos, entre os quais as irmãs de Sigmund Freud, seriam devorados nos campos de concentração.

Em Londres, também ele se debatia com um inimigo devorador. Sigmund Freud convivia há longos anos com um cancro diagnosticado em finais de 1923. Eram tão íntimos que lhe chamava "o meu velho amigo". Agora, o mal regressara em força. Em finais de Agosto, o seu médico pessoal, Max Schur, ponderou a hipótese de uma nova intervenção, mais uma, e para o efeito conseguiu que da Áustria viesse Hans Pichler, o cirurgião que antes o operara. Juntos, decidiram operá-lo uma vez mais, o que obrigou Pichler a fazer uma incisão profunda no lábio superior e no nariz do paciente para poder alcançar a região afectada pelo tumor. Os exames vieram a mostrar que o tecido removido era pré-canceroso, o que levou Schur e alguns médicos ingleses a interrogarem-se se aquela intervenção fora mesmo necessária. É difícil sabê-lo, evidentemente. O que se sabe é que a operação foi particularmente brutal, deixando o paciente num estado de grande prostração durante várias semanas. Incapaz de trabalhar, de dormir, de falar convenientemente e até de fumar, Freud escreveu a Marie Bonaparte que aquela tinha sido a mais dolorosa das operações que sofrera desde 1923.

No final de Setembro, uma novidade animadora. Os Freud mudaram-se para a casa do n.º 20 de Maresfield Garden, que para sempre ficará ligada à sua memória (é hoje o Museu Freud de Londres, autointitulado "A Casa da Psicanálise"). Com oito quartos de dormir, três casas de banho, duas garagens, jardins à frente e atrás da casa e até um campo de ténis, a nova residência era, nas palavras dele, "demasiado bonita para nós". Endividara-se para a adquirir, fizera um empréstimo avultado no Barclays Bank, e, apesar de achar a casa formidável e "incomparavelmente melhor" do que o n.º 19 da Berggasse (actualmente o Museu Freud de Viena), começava a ficar preocupado pela dívida que contraíra: uma das razões por que se empenhou tão a fundo para ver publicada a edição americana de Moisés e o Monoteísmo teve justamente a ver com a necessidade desesperada de ganhar dinheiro para pagar ao banco. Freud, que sempre fora um homem frugal e avaro, comprazia-se agora com os confortos da nova casa - gás canalizado, iluminação eléctrica, telefone, água quente e aquecimento -, e dizia para a família que num piscar de olhos tinham passado "da pobreza para o pão branco".

Faltava, porém, o essencial, a biblioteca, o mobiliário, a colecção de antiguidades. Ao deixar Viena, pagara todos os impostos e todas as taxas possíveis, preenchera as centenas de papéis que os nazis lhe exigiram, mas o facto é que os contentores com nos seus bens tardavam a atravessar a Mancha. Acabariam por chegar, ao menos em parte (um carregamento com 800 volumes da sua biblioteca apareceria, sabe-se lá como, no porto de Nova Iorque...). Freud podia recriar agora o ambiente que o tornara famoso: o celebérrimo divã, que uma paciente, a senhora Benvenisti, lhe oferecera em 1891; as figurinhas de terracota, todas elas, incluindo a estatueta de Atena, a predilecta, que Marie Bonaparte conseguira trazer clandestinamente de Viena até Paris; o retrato de Charcot, o eminente médico francês que considerava ser o seu mestre, as fotografias da sua trindade erótica - Marie Bonaparte, Lou Andreas-Salomé e Yvette Guilbert, a cantora parisiense diversas vezes imortalizada por Toulouse-Lautrec, que não deixaria de o visitar em Maresfield Garden, quando foi em tournée a Londres, já em 1939.

Em Janeiro desse ano, Freud teria uma das visitas mais estranhas das muitas que recebeu em casa. Leonard e Virginia Woolf decidiram ir até Maresfield Garden, Freud ofereceu-lhes chá e, a ela, um narciso, algo que pode ter sido mais do que uma escolha fortuita, tendo em conta que, para ele, as mulheres tinham uma tendência quase natural e inata para o narcisismo, ao passo que ela defendia acerrimamente que eram os homens os mais afectados por essa tara. Leonard ficou extasiado com as boas maneiras do anfitrião, com a ambiência do seu escritório ("quase um museu"), com a lucidez cortante das suas palavras. Ela, pelo contrário, achou-o um velho acabado e decrépito. Durante o chá, pegaram-se. O tema, inevitável, foi Hitler e os nazis. Virginia defendeu que a guerra iminente se devia à forma humilhante como a Alemanha fora tratada em Versalhes, especialmente pela França. Freud discordou, zangou-se, disse-lhe que, se acaso os alemães tivessem ganho a Grande Guerra, o mundo estaria pior ainda. Um e outro não eram personalidades dispostas a ceder e Leonard, sob fogo cruzado, não chamou a si o papel de árbitro desse match de (maus) génios.

Apesar destes momentos de distração e lazer, as dores agravavam-se, o cancro avançava de dia para dia. Em finais de Fevereiro, Marie Bonaparte conseguiu trazer de Paris, para o observar, o médico que lhe salvara o cão, também ele afectado por um tumor maligno. As radiografias do doutor Lacassagne, assim se chamava o clínico, revelavam que o cancro se expandira terrivelmente, sem que Freud pudesse ser submetido a uma nova intervenção cirúrgica. Começaram, então, os horríveis tratamentos com raios X, que o fizeram perder a barba da face direita e sangrar frequentemente da boca, que lhe provocaram dores de cabeça inauditas. Ainda assim, Freud recusava quaisquer analgésicos, com receio que lhe toldassem o intelecto, a sua derradeira morada, a mais poderosa das suas armas. Aceitava, quando muito, ingerir uma aspirina nas fases mais críticas.

A 6 de Maio de 1939, dia do seu 83.º aniversário, desceu um pouco ao jardim, para estar com a família, com um par de amigos, e, claro, com o chow-chow Lün. Max Schur, o médico que Marie Bonaparte lhe recomendara, e que o acompanhava desde 1929, viajara durante uma temporada aos Estados Unidos, para ver se poderia fixar-se aí com a família e exercer a prática da medicina. Ao regressar a Londres, no início de Julho, encontrou o seu doente incrivelmente magro e apático, muito distante do vigor intelectual de outrora. Em tempos, Freud fizera-o prometer que, quando chegasse a sua hora, Schur não o deixaria sofrer desnecessariamente.

Ainda assim, ao debelar um ataque de asma cardíaca, o médico salvou-o quando ele já não se interessava em ser salvo. Depois disso, afirmaria Max Schur, as coisas entraram rapidamente em plano inclinado. A carne gangrenou, abriu-se uma cavidade imensa no seu rosto, o odor a putrefacção invadiu o quarto, a cama teve de ser coberta por uma rede mosquiteira para repelir as moscas. Até o cão - ou, melhor, a cadela, Lün, a chow-chow - passou a deitar-se num lugar mais afastado do quarto, tentando evitar o cheiro nauseabundo que exalava do seu dono.

Setembro trouxe o fim, de Freud e não só. Por uma estranha coincidência, Sigmund entrou em irreversível agonia na mesma altura em que as tropas de Hitler invadiam a Polónia, acabando de vez com quaisquer esperanças de paz e concórdia. O fim de Freud anunciou-se no dia 19, quando Ernest Jones, o fiel discípulo, foi despedir-se dele - incapaz de falar, o mestre abriu os olhos e acenou-lhe com a mão, em sinal de adeus. Dois dias depois, Max Schur acercou-se da cama, Sigmund Freud recordou-lhe a promessa feita de que não o deixaria sofrer inutilmente. O médico assentiu com a cabeça, sem uma palavra, ele agradeceu-lhe o gesto, "Ich danke Ihnen", e pediu-lhe que falasse com Anna, a filha bem-amada. Disse ao médico que, se Anna concordasse que era altura de pôr termo àquilo, se avançasse sem hesitações. Schur conversou com Anna e esta, devastada, concordou com os desejos do pai. Nesse mesmo dia, Schur ministrou a Freud três centigramas de morfina, uma dose muito superior à que deveria usar se o único objectivo fosse aliviar as dores do paciente. Repetiu a dose e, no dia seguinte, 22 de Setembro, deu-lhe uma terceira injecção. À meia-noite de 23, um sábado, dia do Yom Kippur, Sigmund Schlomo Freud continuava vivo.

Lá fora, nas ruas de Londres, trabalhava-se sem descanso a construir abrigos para os ataques aéreos iminentes. Nos edifícios, as portas e as entradas eram protegidas por sacos de areia e as janelas cobertas com fitas de papel ou com folhas de jornal. Nos céus, erguiam-se balões de protecção contra os alemães, os aviões de reconhecimento cruzavam o horizonte em busca de um inimigo que não tardaria a vir. Nas praças, cobriam-se com tijolos ou removiam-se as estátuas dos ilustres, hoje vandalizadas por quem nunca conheceu a guerra - e nada fez pela paz. Os cães, apavorados com tanto barulho, encheram a noite da cidade com uivos lancinantes. Terá Lün uivado à passagem do seu dono?

De cancro e morfina, Sigmund Freud morreu às três da madrugada de 23 de Setembro de 1939.

Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.

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